Processo nº 155/2018 Data: 19.04.2018
(Autos de recurso penal)
Assuntos : Crime de “burla informática”.
Absolvição.
Perda de bens.
Pressupostos.
SUMÁRIO
Uma “decisão absolutória” não implica que os bens aos arguidos apreendidos sejam – necessáriamente – devolvidos, possível sendo a declaração da sua perda a favor da R.A.E.M. desde que verificados os seus pressupostos legais.
O relator,
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José Maria Dias Azedo
Processo nº 155/2018
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. Por Acórdão do T.J.B. de 01.12.2017 decidiu-se absolver os (1° a 4°) arguidos, A, B, C e D, do crime que lhes era imputado, declarando-se, porém, o perdimento de diversos bens apreendidos nos autos; (cfr., fls. 399 a 406-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Inconformados com a referida “declaração de perda”, e em peça única, vêm os arguidos recorrer, alegando – em síntese – que o decidido viola os art°s 101° e 103° do C.P.M., pedindo a sua revogação e consequente devolução dos bens que lhes foram apreendidos; (cfr., fls. 410 a 414).
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Respondendo, diz o Ministério Público que o recurso não merece provimento; (cfr., fls. 425 a 427).
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Neste T.S.I., e em sede de vista, juntou o Ilustre Procurador Adjunto o seguinte douto Parecer:
“Na Motivação de fls.410 ver a 414 dos autos, os quatro recorrentes pediram, de acordo com as disposições nos n.°s1 e 2 do art.171° do CPP, a restituição dos objectos que tinham sido declarados perdidos a favor da RAEM pelo Tribunal a quo no Acórdão recorrido, assacando-lhe o vício de infringir o preceito nos arts.101° e 103° do Código Penal, bem como no n.°1 do art.400° do CPP, em virtude da absolvição da acusação.
Antes de mais, subscrevemos inteiramente as criteriosas explanações da ilustre Colega na douta Resposta (cfr. fls.425 a 427 dos autos), no sentido do não provimento do presente recurso.
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Ora bem, o disposto no n.°2 do art.101° do Código Penal demonstra inequivocamente que a perda de objectos relacionados com certo ilícito penal não depende da efectiva condenação. Pois, «O instituto de perda dos objectos é regulado, como regra geral, pelos artigos 101°, 102° e 103° do Código Penal, em que se inserem essencialmente dois requisitos para a perda dos instrumentos e do produto: a) o facto ilícito-típico e b) perigosidade, com a finalidade preventiva.» (cfr. Acórdão do TSI no Processo n.°82/2003)
Convém ter presente que alerta sensatamente o Alto TUI (cfr. aresto no Processo n.°84/2015): Para que objectos possam ser declarados perdidos a favor da Região Administrativa Especial de Macau com fundamento no disposto no artigo 101.°, n.°1, do Código Penal, é essencial que o tribunal dê como provados os factos que integram os pressupostos da aplicação desta norma, isto é, que os objectos serviram ou estavam destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico, ou que por este foram produzidos.
No vertente caso, não obstante a ser absolvidos os recorrentes da acusação, os factos provados 3 a 11 tomam inquestionável que «本案,獲證明四名嫌犯將內地POS機帶來澳門作移動跨境套現使用» e, de outro lado, que «四名嫌犯的行為屬於違背內地金融管理規定和違反澳門金融管理規定».
Sopesando os sobreditos factos provados à luz das iluminativas jurisprudências supra aludidas, sufragamos a acertada e prudentíssima observação da ilustre colega, no sentido de que «5. 卷宗第61-62頁、第70頁、第77頁及第86頁所載之扣押物,是現金、銀聯刷卡機、電源適配器……等犯罪工具,以及犯罪所得。該等物品被用於進行非法刷卡套現活動。考慮到案件的情節,一旦歸還上訴人,極有可能在別處重新設置及運作,極可能有用於再作出符合罪狀之不法事實之危險。因此,應宣告喪失而歸本特區所有。»
Nesta linha de consideração, colhemos tranquilamente que o douto Acórdão posto em crise na parte atinente à declaração da perda dos objectos apreendidos a favor da RAEM não infringe nenhuma das disposições invocadas pelos recorrentes na Motivação, e o pedido de restituição de tais objectos cai necessariamente no fatal descabimento.
Por todo o expendido acima, propendemos pela improcedência do recurso em apreço”; (cfr., fls. 444 a 445).
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Nada obstando, cumpre decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Estão “provados” e “não provados” os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 401 a 403, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.
Do direito
3. Como se deixou relatado, vêm os (1° a 4°) arguidos recorrer, pedindo a revogação do segmento decisório com o qual se decidiu declarar a perda de diversos bens seus que se encontravam apreendidos nos autos, alegando que o mesmo viola os art°s 101° e 103° do C.P.M..
Vejamos.
Desde já, importa ter em conta que os arguidos estavam acusados da prática, como co-autores, de 1 crime de “burla informática”, p. e p. pelo art. 11°, n.° 1 e 3 da Lei n.° 11/2009.
E, realizado o julgamento, perante a factualidade dada como provada, entendeu o Tribunal Colectivo a quo que a mesma não consubstanciava a prática do crime que aos arguidos era imputado, (ou de qualquer outro), nesta conformidade se decidindo pela sua absolvição.
Porém, não obstante esta “decisão absolutória”, invocando o art. 101°, n.° 1 e 2 e o art. 102° do C.P.M., declarou o Tribunal a quo a referida perda dos bens dos arguidos que se encontravam apreendidos nos autos.
E, perante o presente recurso, cremos que, em parte, tem os recorrentes razão, sendo de se julgar o mesmo procedente.
Eis o porque deste nosso entendimento.
Pois bem, in casu, em causa estão 3 “terminais de venda (móveis)”, quantias monetárias, telemóveis, 1 computador, documentos vários (recibos) e cartões de telemóveis; (cfr., fls. 61, 62, 70, 77 e 86).
Nos termos do art. 101° do C.P.M.:
“1. São declarados perdidos a favor do Território os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico, ou que por este tiverem sido produzidos, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas ou a moral ou ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos.
2. O disposto no número anterior tem lugar ainda que nenhuma pessoa possa ser punida pelo facto.
3. Se a lei não fixar destino especial aos objectos declarados perdidos nos termos dos números anteriores, pode o juiz ordenar que sejam total ou parcialmente destruídos ou postos fora do comércio”.
Por sua vez, preceitua o art. 102° do mesmo código que:
“1. Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, a perda não tem lugar se os objectos não pertencerem, à data do facto, a nenhum dos seus agentes ou beneficiários, ou não lhes pertencerem no momento em que a perda for decretada.
2. Ainda que os objectos pertençam a terceiro, é decretada a perda quando os titulares dos objectos tiverem concorrido, de forma censurável, para a sua utilização ou produção, ou do facto tiverem retirado vantagens, ou ainda quando os objectos forem, por qualquer título, adquiridos após a prática do facto, conhecendo os adquirentes a sua proveniência.
3. Se os objectos consistirem em inscrições, representações ou registos lavrados em papel, noutro suporte ou em meio de expressão audiovisual, pertencentes a terceiro de boa-fé, não tem lugar a perda, procedendo-se à restituição depois de apagadas as inscrições, representações ou registos que integrarem o facto ilícito típico; não sendo isso possível, o tribunal ordena a destruição, havendo lugar a indemnização nos termos da lei civil”.
E, não obstante na decisão recorrida se ter invocado os transcritos comandos como sua justificação legal, o certo é que, em nossa opinião, e com excepção dos referidos 3 “terminais de venda”, verificados não estão os pressupostos aí consagrados.
Desde já, há que consignar que uma “decisão absolutória” não implica que os bens aos arguidos apreendidos sejam – necessáriamente – devolvidos, afastada estando uma declaração da sua perda a favor da R.A.E.M.; (cfr., o n.° 2 do art. 101° do C.P.M.).
Porém, in casu, – para além de em causa não estar “bens ou objectos de terceiros”, e assim, aplicável não ser o art. 102° pelo Colectivo a quo invocado – da factualidade dada como provada não resulta a “prática de nenhum facto ilícito”, não se vislumbrando assim, (e também), nenhuma factualidade que permita considerar que o referido apreendido seja “produto de facto ilícito”, mostrando-se, ainda, de consignar que, atentos os bens em questão, motivo não parece haver para se entender que, “pela sua natureza ou circunstâncias do caso”, sejam de ter como passíveis de “por em perigo a segurança das pessoas ou a moral ou ordem pública, ou de oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos”.
Na verdade, provado não resultou a prática de nenhum crime, e os referidos “bens” não são bens cuja posse ou detenção seja “ilícita” ou sequer “condicionada”, nenhum motivo havendo para a declaração da sua perda; (cfr., v.g., o Ac. do Vdo T.U.I. de 21.06.2017, Proc. n.° 114/2016, quanto a “quantias monetárias”).
Porém, o mesmo já não sucede com os aludidos 3 “terminais de venda”, pois que, como em sede de fundamentação do Acórdão do T.J.B. se consignou, os mesmos foram trazidos do Continente para Macau, não estando o seu uso regularizado, apresentando também risco de serem utilizados para o cometimento de novos ilícitos.
Nesta conformidade, julgam-se parcialmente procedentes os recursos.
Decisão
4. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam conceder parcial provimento aos recursos, revogando-se, em parte, a decisão recorrida e ordenando-se a devolução dos bens apreendidos e declarados perdidos aos arguidos, com excepção dos 3 “terminais de venda”.
Custas pelos recorrentes pelo seu decaimento, com a taxa de justiça de 3 UCs.
Honorários ao Exmo. Defensor no montante de MOP$1.800,00.
Registe e notifique.
Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.
Macau, aos 19 de Abril de 2018
José Maria Dias Azedo
[Não obstante ter relatado o acórdão que antecede, concedia total procedência aos recursos, pois que, como tenho vindo a entender, a verificação do “sério risco de utilização dos bens para a prática de ilícitos”, implica um “juízo objectivo”, assente em “matéria de facto dada como provada”; (cfr., v.g., as declarações de voto juntas aos Acs. de 17.07.2003, Proc. n.° 119/2003 e de 25.06.2013, Proc. n.° 439/2013).
Por sua vez, venho também entendendo que a “declaração de perda de bens” deve ser (oportunamente) requerida na acusação, a fim de se evitar uma “decisão surpresa”, permitindo-se o contraditório, (cfr., v.g., declaração de voto de 13.11.2014, Proc. n.° 506/2014 e, mais recentemente, de 04.04.2018. Proc. n.° 519/2016) – do qual poderia resultar uma decisão em sede de “matéria de facto” – o que, no caso dos autos, não sucedeu].
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa
Proc. 155/2018 Pág. 2
Proc. 155/2018 Pág. 1