Processo n.º 308/2018
(Recurso em matéria cível)
Data: 10 de Maio de 2018
ASSUNTOS:
- Embargos à declaração da falência
- Fundamentos
SUMÁRIO:
I - Na oposição, à embargante cabe invocar os factos concretos para impugnar os fundamentos com base nos quais foi decretada a falência, ou apresentar planos concretos de cumprimento imediato das dívidas já verificadas (artigos 1082º e 1091º do CPC). Não assim fazendo, subsistindo a base fáctica e legal da falência, é de manter a decisão recorrida.
II - A figura do abuso do direito surge, assim, como um modo de adaptar o direito à evolução da vida, servindo como válvula de escape a situações que os limites apertados da lei não contemplam, por forma considerada justa pela consciência social, em determinado momento histórico, ou obstando a que, observada a estrutura formal do poder conferido por lei, se excedam manifestamente os limites que devem ser observados, tendo em conta a boa fé e o sentimento de justiça em si mesmo.
III - Não há abuso de direito quando a embargada, perante um avultado número das dívidas por saldar, decidiu pedir ao Tribunal declarar a falência da devedora. Quer quanto ao fim, quer ao modo, o exercício do direito pela embargada está dentro dos limites legais, obedecendo ao ditame de boa fé, como tal não merece censura.
O Relator,
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Fong Man Chong
Processo n.º 308/2018
Data : 10/Maio/2018
Recorrente : A Limitada (Embargante)
(A有限公司) (提出異議人)
Recorrida : B S.A. (Embargada)
(B有限公司) (被提出異議人)
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ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:
I - RELATÓRIO
A Limitada, (A有限公司) (Embargante), Recorrente nos presentes autos, declarada falida no processo CV1-16-0002-CFI-A, não se conformando com o decidido, deduziu embargos (fls. 261 a 269) que foram julgados improcedentes, e, contra esta decisão veio, em 10/11/2017, interpor o competente recurso para este TSI, alegou os fundamentos constantes de fls. 287 a 294, tendo formulado as seguintes conclusões :
A. O processo civil é, por natureza e definição legal, público, sendo improcedente - por ilegal, - o argumento do segredo de justiça, invocado na douta sentença recorrida;
B. O tribunal recorrido tinha conhecimento, no exercício das suas funções, dos factos relevantes, invocados nos embargos à falência, com base nos quais poderia e deveria ter decidido pela revogação da declaração de falência da ora recorrente;
C. Não só foram dados provados factos relativos à estratégia empresarial definida pelos sócios para ambas as sociedades requeridas, entre as quais a ora Recorrente, - cfr. em particular alíneas f) e g), - como também
D. Foi dado por demonstrado o encerramento forçado da única sala que se mantinha em actividade e que a Requerente da falência com isso impediu os sócios de continuarem a actividade de promoção de jogo da C (alíneas h) e i);
E. Com o que impediu a estratégia dos sócios e levou à paralisação total e impossibilidade de gerarem rendimentos (alínea j).
F. Tal conduta da Requerente da falência é manifestamente abusiva, - abuso de direito que se reafirma e que deverá sustentar a revogação da falência da Recorrente.
G. A douta sentença recorrida decidiu em violação das regras da experiência, recusando atender a factos de que teve conhecimento no exercício das suas funções os quais, em conjunto com os demais factos dados por provados, nomeadamente em resultado do depoimento de parte de um dos sócios da Requerida, de per si e ou por decorrência das regras da experiência, impunham uma decisão de sentido contrário.
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B S.A., (B有限公司)(Embargada), Recorrida nos presentes autos, apresentou as seguintes conclusões nas suas contra-alegações:
1. O presente recurso foi interposto da douta decisão dos embargos, ora em crise, que manteve a decisão de que a Recorrente se encontra em estado de falência.
2. Facto assente nestes autos é que a Recorrente é devedora de quantias avultadíssimas à Recorrida.
3. De todos os fados e argumentos trazidos à lide pela Recorrente, quer na sua oposição ao requerimento inicial de falência, quer nos embargos que promoveu, nunca referiu esta a existência de vontade, e/ou forma para liquidar as suas dívidas à Recorrida.
4. Nem conseguiu demonstrar a Recorrente ter capacidade financeira para o fazer, caso houvesse vontade.
5. Outrossim, invocou sempre que as dívidas da Recorrente seriam (potencialmente) pagas pela actividade comercial desenvolvida por outra sociedade ou por um grupo de empresas a que pertence.
6. Certo é que a dívida continua por pagar!
7. Ora, a Recorrida encetou inúmeras diligências extrajudiciais para cobrança e/ou resolução deste litígio, conforme já amplamente relatadas e documentadas no requerimento inicial de falência e na sua posição aos embargos, sempre sem sucesso.
8. Em adição às dívidas da Recorrente, uma outra sociedade também era devedora de quantias avultadíssimas à Recorrida.
9. Sendo que, igualmente, as mesmas nunca foram pagas, duvidando-se que essa outra sociedade tenha capacidade ou vontade de as pagar (as suas e as da Recorrente).
10. A Recorrida requereu, separadamente e em processos distintos, a falência de cada uma destas sociedades.
11. Os requerimentos de falência foram distribuídos ambos no 1.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Base, tendo aí sido tramitados sob os n.º CVl-16-0002-CFI e CVl-16-0003-CFI.
12. Ora, a Recorrente quer fazer-se valer de fados e do teor da decisão proferida no processo CV1-16-0003-CFI, invocando que tal seria do conhecimento do Tribunal a quo.
13. No entanto, bem andou o Tribunal a quo ao determinar que tais fados e decisão dizem respeito a um processo diferente e nada foi junto aos presentes autos relativamente ao outro processo.
14. E, mesmo que assim não fosse, a argumentação da Recorrente não pode colher provimento, porquanto, os factos dados como provados no processo CVl-16-0003-CFI, além de diferentes, dizem respeito a outra sociedade.
15. Como bem decidiu a douta Sentença Recorrida, a fls. 265 “As sociedades são pessoas colectivas – artigo 140º e sgts. do CC e 176º do CSC - e como tal gozam de personalidade jurídica sendo autónomas e independentes não se confundido entre si, ainda que tenham sócios iguais ou comuns”.
16. Invoca ainda a Recorrente que o Tribunal a quo não se pronunciou sobre o alegado abuso de direito.
17. No entanto, ao contrário do que alega a Recorrente, o Tribunal a quo pronunciou-se sobre esta questão, mantendo sempre a mesma decisão.
18. Não se vislumbra onde se pode alicerçar a tese da Recorrente, quer de omissão de pronúncia, quer do alegado abuso de direito por parte da Recorrida.
19. Pelo que, a douta Sentença ora recorrida não está inquinada do vício de omissão de pronúncia.
20. Nem se encontram preenchidos os pressupostos para tal nulidade ser procedente, nos termos dos artigos 571.°, n.º 1, alínea d) e 563.°, n.ºs 2 e 3, todos do CPC.
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Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre analisar e decidir.
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II - PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
Este Tribunal é o competente em razão da nacionalidade, matéria e hierarquia.
O processo é o próprio e não há nulidades.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e são dotadas de legitimidade “ad causam”.
Não há excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
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III - FACTOS
Com pertinência, têm-se por assentes os factos seguintes conforme o que consta do despacho ora posto em crise:
1) Quer a A, ora Requerida, quer a C, são detidas e administradas pelas mesmas pessoas físicas;
2) Ambas, A e C, têm o mesmo objecto social, que se resume à promoção do jogo em casino, e ambas exploravam a sua actividade em casinos da Requerente. A A uma sala VIP no Casino Galaxy, sito na Taipa, e a C uma sala VIP no casino Star World, em Macau;
3) Em finais de Agosto de 2016, a A encerrou, por acordo com a Requerente a sua sala no casino Galaxy;
4) A C continuou a sua actividade, no casino Star World;
5) Os sócios e administradores de ambas as sociedades promotoras de jogo são os mesmos;
6) A estratégia dos Administradores da C e da Requerida era reduzir os custos de operação, e canalizando a clientela para a sala remanescente potenciariam os ganhos operacionais da sala VIP com vista a atingir os objectivos, em termos de movimento e “turn-over” reclamados pela Requerente;
7) A solução encontrada pelos sócios da Requerida foi encerrar uma das Salas, e apostar todo o esforço na Sala restante, explorada por outra sociedade pelos mesmos titulada e detida, a C;
8) Sem pré-aviso, em Setembro de 2016, a Requerente encerrou a única Sala que se mantinha em actividade, a da C;
9) Com tal conduta, a Requerente impediu os sócios da requerida de continuarem a actividade de promoção de jogo na C;
10) A consequência para estas duas sociedades dos sócios da Requerida, foi a total paralisação e, correspondentemente, a impossibilidade de gerarem rendimentos;
11) As receitas do jogo em Macau têm vindo a incrementar sucessiva e continuamente desde Agosto de 2016, tendo sido referidos pelos órgãos de notícias que no mês de Março de 2017 atingiram um crescimento de 18%;
12) A actuação empresarial e resultados operacionais da Requerida estavam ligados com os da C;
13) Correu contra ambas as sociedades processos de falência, neste mesmo Juízo Cível, intentados pela Requerente, em tudo idênticas, com excepção dos montantes envolvidos, de forma que a audiência de julgamento em ambos as acções foi realizada em conjunto de uma só vez;
14) O encerramento da sala da C torna mais difícil a recuperação dos créditos da Requerida sobre terceiros (jogadores), pois sem as salas em funcionamento inexiste motivação para os jogadores voltarem;
15) A principal motivação para os jogadores irem cumprindo com o pagamento das suas dívidas às salas de jogo é a vontade destes em voltarem a jogar. Satisfazendo dívidas anteriores, conseguiriam, sendo necessário, novos créditos, mantendo assim o giro comercial das Salas;
16) Uma vez encerradas as Salas os jogadores não voltam, tornando o contacto físico entre credoras e devedores virtualmente inexistente senão em alguns dos casos quase impossível, e por conseguinte a contrapartida pecuniária, por via do pagamento, dos Marker’s subscritos pelos jogadores;
17) A actividade da Requerida e, bem assim, da outra sociedade, Sociedade de Promoção de Jogos C, detida e administrada pelos mesmos dois sócios, dependia integralmente do Know-how e dos conhecimentos num vasto círculo de pessoas das relações dos aludidos administradores, senhores D e E;
18) No que aos títulos diz respeito, os Marker´s, a Embargante, para além das cartas de interpelação nada mais fez para reaver os seus créditos nunca instaurando acções judiciais junto dos tribunais de Macau para tal fim;
19) O encerramento das salas VIP da Embargante e da C foi publicamente anunciado no dia 13 de Setembro, por notícia publicada em meio de comunicação social onde é invocado que tal encerramento foi efectivo à data de 10 de Setembro, como fazendo parte da redefinição da estratégia empresarial do grupo a que estas sociedades pertencem.
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Além disso, são também relevantes os factos provados, constantes da sentença (fls. 60 a 75) que decretou a falência da ora embargante, mormente os factos elencados a fls. 46 a 53 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido aqui para todos os efeitos legais.
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IV – FUNDAMENTAÇÃO
Como o Recorrente ataca a decisão de primeira instância, importa ver, antes de mais, o que o Tribunal a quo disse no caso sub judice. Este afirmou na sua douta sentença :
Sociedade Promoção de Jogos A Limitada, em Chinês A有限公司, e em inglês A Gaming Promotion Company Limited, sociedade comercial, com sede em Macau, na XXX, registada na Conservatória do Registo Comercial e de Bens Móveis sob o nº XXX,
vem deduzir embargos à declaração de falência proferida nos autos de que estes são apenso.
Para tanto alega a embargante que na sentença de declaração de falência consta que a ora requerente tem títulos de dívida assinados pelos seus clientes e que a requerente da falência ao fazê-lo actua com manifesto abuso de direito porquanto o foi esta quem encerrou a sala VIP de uma outra sociedade cujos sócios e administradores são os mesmos da aqui embargante e declarada falida, sendo que as sociedades tinham estratégias conjuntas visando com o encerramento da sala da aqui embargante reduzir custos e canalizar todo o negócio para a sala da outra sociedade, o que se tivesse acontecido permitiria que a aqui embargante conseguiria ter cobrado o passivo que tem sobre os seus clientes e com a retoma do negócio do jogo em Macau teria sido possível gerar fundos que permitiriam a reabertura da sala da aqui embargante. Pelo que, alegando que à omissão de pronúncia na sentença que declarou a falência, uma vez que não se pronunciou sobre a conduta abusiva da Requerente da falência ao encerrar a sala da outra sociedade dos mesmos sócios e que foi o encerramento dessa outra sala que gerou a situação de falência da embargante, vem pedir que se julguem procedentes os embargos e seja declarada nula e sem efeito a sentença antes declarada.
Notificada a embargada e o administrador da falência para querendo contestarem, vieram estes fazê-lo defendendo-se por impugnação, pedindo que sejam julgados improcedentes os embargos.
Procedeu-se a julgamento com observância do formalismo legal, mantendo-se a validade da instância.
O Tribunal é o competente.
O processo é o próprio e não enferma de nulidades que o invalidem.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e são legítimas.
Não existem outras excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa e de que cumpra conhecer.
Cumpre apreciar e decidir.
Salvo melhor opinião a embargante nada invoca de novo nestes autos que não houvesse já invocado na sua oposição à falência sustentando em síntese que se a sala da outra sociedade que pertencia aos mesmos sócios não tivesse sido encerrada poderia com o proveito que daí retiraria liquidar o passivo da sociedade declarada falida nestes autos.
Diz a Embargante e declarada falida que também foi requerida a falência dessa outra sociedade a qual o tribunal não declarou porque a sala foi encerrada pela Requerente da falida e alega que o tribunal tem desse facto conhecimento pelo exercício das suas funções.
Ora, esquece a Embargante que o tribunal está sujeito ao segredo de justiça e não pode usar num processo o que noutros processos se passou relativamente a outros sujeitos a menos que de tais factos sejam juntas aos autos certidões.
Assim sendo, nestes autos, não sabe, nem tem o tribunal que saber e menos ainda usar o que noutros processos se passou que não digam respeitos aos sujeitos processuais aqui envolvidos.
O mesmo se passa quanto à boa fortuna dos sujeitos no que concerne à declaração da falência.
Pretende a Embargante que porque a Requerente da falência encerrou a sala de jogo explorada por uma outra sociedade - que legalmente não tem nenhuma relação com a aqui Embargante a não ser terem as mesmas pessoas como sócios e administradores -, foi também ela Requerente da falência causadora da falência da ora Embargante, porque, se assim não fosse, segundo diz, aquela outra sociedade liquidaria o passivo da ora declarada falida.
Contudo, para além da embargante não juntar contrato, acordo ou documento de onde resulte que aquela outra sociedade iria responsabilizar-se pela liquidação do passivo desta, esquece que tal até só seria legalmente aceite se o fosse no interesse da sociedade garante face à disciplina do nº 3 do artº 177º do CSC, pelo que, de modo algum se pode retirar a conclusão que, por serem as mesmas os sócios e administradores, iria uma sociedade pagar as dívidas da outra.
As sociedades são pessoas colectivas – artº 140º e sgts. do C.Civ. e 176º do CSC – e como tal gozam de personalidade jurídica sendo autónomas e independentes não se confundindo entre si, ainda que tenham sócios iguais ou comuns.
Pelo que, salvo melhor opinião, não se percebe como pretende a Embargante fazer valer-se de tudo o que diz respeito a uma outra pessoa colectiva para afastar os fundamentos da falência que lhe foi declarada.
Quanto aos fundamentos que fundamentaram que fosse declarada a falência nada se demonstra que os afaste ou ponha em crise.
Alega a Embargante que na sentença de falência houve omissão de pronúncia porque o tribunal não se pronunciou quanto ao invocado abuso de direito por ter sido encerrada pela Requerente da falência a sala que a outra sociedade explorava.
Salvo melhor opinião, nos termos da al. d) do nº 1 do artº 571º do CPC, há omissão de pronúncia quando o tribunal não se pronuncia sobre questões que devesse apreciar.
Contudo, confunde a Embargante “questões” que o tribunal devesse apreciar com argumentos e razões invocadas.
Para o efeito veja-se o que a respeito se diz em Código do Processo Civil anotado de Abílio Neto, 17ª Ed. pág. 883 e 885 em anotação ao artº 668º do CPC Português, semelhante na sua redacção ao artº 571º do CPC de Macau.
«4. A nulidade prevista na lª parte da al. d) do nº 1 deste art. 668.º está directamente relacionada com o comando fixado no n.º 2 do art. 660.º, segundo o qual «o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras».
Tal norma suscita, de há muito, o problema de saber qual o sentido exacto da expressão «questões» ali empregue, o qual é comummente resolvido através do recurso ao ensinamento clássico de Alberto dos Reis Cod. Proc. Civ. Anot., 5.º-54, que escreve: «…assim como a acção se indentifica pelos seus elementos essenciais (sujeitos, pedido e causa de pedir) (...), também as questões suscitadas pelas partes só podem ser devidamente individualizadas quando se souber não só quem põe a questão (sujeitos), qual o objecto dela (pedido), mas também qual o fundamento ou razão do pedido apresentado».
No âmbito lógico deste raciocínio, doutrina e jurisprudência distinguem, por um lado, «questões», e, por outro «razões» ou «argumentos», e concluem que só a falta de apreciação das primeiras - das «questões» - integra a nulidade prevista no citado normativo, mas já não a mera falta de discussão das «razões» ou «argumentos» invocados para concluir sobre as questões (vid., assim, Alberto dos Reis, ob. e vol. cits., pág. 143; RT. 78.º-172, 89º-456, e 90.º-219; Acs. STJ, de 2.7.1974, de 6.1.1977, de 13.2.1985, de 5.6.1985, entre muitos outros, abaixo sumariados).
(…)
O vício a que se reporta a alínea d) do n.º 1 do art. 668.º do Cód. Proc. Civil, como é jurisprudência corrente, traduz-se no incumprimento, por parte do juiz, do dever prescrito no n.º 2 do art. 660.º do mesmo diploma (por todos, cfr. acórdão deste Supremo Tribunal, de 10 de Julho de 1979, no Boletim, n.º 289, pág. 235), não havendo omissão de pronúncia, mesmo que se não tome conhecimento de todos os argumentos apresentados, desde que se apreciem os problemas fundamentais e necessários à justa decisão da lide (acórdão deste mesmo Supremo Tribunal, de 29 de Junho de 1973, citado Boletim, n.º 228, pág. 245) (do Ac. STJ, de 5.11.1980: BMJ 301.º-395).»
O juiz na sentença tem de conhecer das questões que possam levar à absolvição da instância, daquelas cujo conhecimento é oficioso e daquelas que emergindo da causa de pedir levem à procedência do pedido ou das excepções que possam levar à improcedência daquele – artº 563º do CPC -.
O tribunal não tem que se pronunciar sobre todos os argumentos e razões invocados pelas partes e menos ainda, aquelas, como era o tal alegado abuso de direito, que apesar do nome jurídico de “abuso de direito” tudo o mais que se invocava nada tinha a ver com esta sociedade mas sim com outra.
O tribunal tinha que se pronunciar sim sobre a causa de pedir da falência e sobre eventuais excepções para que aquela não fosse decretada, tal como a boa fortuna da Requerida e da sua capacidade para solver o passivo, e sobre isso pronunciou-se referindo-se que a Requerida nada trouxe aos autos para justificar o seu atraso no pagamento, nem demonstrou que tenha activos – cf. fls. 1673/1674 -.
Quanto a argumentos invocados quanto ao que sucedeu com outras pessoas colectivas, nada tendo a ver com a matéria destes autos, não houve omissão de pronúncia alguma, critério que aliás também se usou para o que concerne à fortuna dos sócios – cf. fls. 1669v – a respeito do que também se disse na sentença da falência nada ter a ver com os autos.
E porque, no que concerne aos autos de falência a que estes respeitam e à sociedade declarada falida, nada de novo se trouxe que infirmasse os pressupostos da declaração de falência, outra solução não nos resta que não seja a de julgar improcedentes os embargos, porquanto uma vez mais se invocam apenas argumentos e razões que não constituem qualquer fundamento legal para obstar à declaração da falência.
Nestes termos e pelos fundamentos expostos julgam-se os embargos improcedentes mantendo-se a falência decretada.
Custas a cargo da Embargante.
Registe e Notifique.
Macau, 10.11.2017.”
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Neste recurso importa resolver 2 questões:
1) – Procedem ou não os fundamentos invocados como base de embargos; e
2) – Há ou não abuso de direito por parte da Requerente/Embargada da falência.
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Comecemos pela primeira questão.
Para o Tribunal decretar a falência de uma sociedade comercial ou de comerciante, é preciso preencher determinados pressupostos, nomeadamente os constantes do artigo 1082º (motivos de declaração da falência) do CPC, que tem o seguinte teor:
A declaração da falência, quando não resulte do que especialmente fica disposto na secção anterior, tem lugar desde que se prove algum dos seguintes factos:
a) Falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele que o devedor se encontra impossibilitado de cumprir pontualmente as suas obrigações;
b) Fuga do empresário comercial ou, caso este seja pessoa colectiva, dos titulares do seu órgão de administração, relacionada com a falta de liquidez do devedor e sem designação de substituto idóneo;
c) Abandono da administração principal ou, caso o empresário comercial seja pessoa colectiva, da respectiva sede ou da administração principal;
d) Dissipação ou extravio de bens, constituição fictícia de créditos ou qualquer outro procedimento abusivo que revele o propósito de o devedor se colocar em situação que o impossibilite de cumprir pontualmente as suas obrigações.
Uma vez declarada a falência, o legislador confere legitimidade a determinadas pessoas para deduzir embargos.
Nestes termos, dispõe o artigo 1091º do CPC (oposição, mediante embargos, à sentença de declaração da falência):
1. Podem opor embargos, alegando o que entenderem do seu direito contra a sentença de declaração da falência:
a) O falido, quando não tenha reconhecido expressamente a falência ou quando como tal não se tenha apresentado ao tribunal;
b) Qualquer credor que como tal se legitime;
c) O Ministério Público, quando os interesses que lhe estão legalmente confiados o justifiquem;
d) O cônjuge, os ascendentes ou descendentes e os afins no 1° grau da linha recta da pessoa declarada falida, no caso de a falência se fundar no disposto nas alíneas b) e c) do artigo 1082.º;
e) O cônjuge, herdeiro, legatário ou representante do que tiver sido declarado em falência depois de falecido, ou do que falecer antes de findo o prazo em que podia opor-se à sentença mediante embargos.
2. À declaração da falência de sociedade em nome colectivo, em comandita ou por quotas, feita por apresentação ao tribunal, pode opor embargos o sócio que não tenha votado a apresentação.
3. O prazo para a dedução dos embargos é, nos casos previstos nas alíneas a), b) e c) do n.º 1, de 10 dias a contar da publicação da sentença no Boletim Oficial; nos casos das alíneas d) e e), o prazo é de 20 dias a contar daquela publicação.
4. A dedução dos embargos suspende a liquidação do activo, sem prejuízo do disposto no artigo 1126.º, bem como os termos do processo subsequentes à sentença de verificação e graduação de créditos.
O que nesta oposição a embargante deve fazer é alegar e provar que não correspondem à verdade ou não são suficientes os fundamentos com base nos quais foi decretada a falência ou, apresentou planos concretos de cumprimento imediato das dívidas que determinam a falência. Ou seja, deve demonstrar a sua capacidade patrimonial para saldar imediatamente as dívidas existentes, a fim de evitar os efeitos negativos decorrentes da declaração da falência (artigo 1095º e seguintes do CPC).
É um ónus de prova que a embargante tem de cumprir, não basta produzir alegações vagas e abstractas.
O argumento de a falência representar um “corte” da estratégia empresarial da sociedade falida inicialmente projectada que permitisse eventualmente ganhar lucros é um “projecto bonito e interessante”, mas não basta para convencer que a embargante venha a ter capacidade financeira para saldar o avultado número das dívidas já verificadas (citadas mais frente), devidamente comprovadas na sentença que decretou a falência.
A propósito da repartição entre as partes de ónus de prova, diz o artº 335º do CC que:
1. Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado.
2. A prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita.
3. Em caso de dúvida, os factos devem ser considerados como constitutivos do direito.
O que, face às regras das coisas e à experiência de vida, evidencia a carência por parte do devedor dos meios financeiros suficientes para o pagamento das dívidas.
Na sentença que decretou a falência, entre os outros, os seguintes factos comprovativos das dívidas continuam a subsistir e carecem de uma “resposta” por parte da falida:
- Nos termos do Contrato B, a (sociedade) A utilizou a linha de crédito concedida pela Requerente, estando ainda em dívida, a título de capital, as quantias mutuadas melhor discriminadas na tabela infra, no valor global de HK$200,000,000.00.
- A Requerente levou a cabo diligências para a cobrança das dívidas junto das C e A e dos garantes, ou seja, E (E) e o Requerido, tendo sido realizadas várias reuniões para tentar encontrar uma solução amigável, nomeadamente, em 5 de Setembro de 2016, sem que, todavia, tenham as partes logrado obter um plano de pagamento.
- A Requerente enviou missivas às partes, incluindo ao Requerido, exigindo o cumprimento pontual e integral das obrigações assumidas por estes.
- Em 8 de Setembro de 2016, a Requerente enviou um carta de interpelação às C e A, entregue e recebida em mãos no mesmo dia, denominada Plano de Reembolso (em inglês “Repayment Plan”), relativa às dívidas assumidas nos termos do Contrato A e do Contrato B, informando-as do valor global em dívida (HK$312,000,000.00), e da cessão das linhas de crédito concedidas, exigindo o pagamento da dívida e interpelando-as a apresentar um plano de pagamento satisfatório até 9 de Setembro de 2016, sob pena da Requerente levar a cabo todas as diligências legais tidas por necessárias para a recuperação do seu crédito.
- As C e A nada disseram sobre o assunto (fls. 50 a 52 dos autos).
É de ver que estes factos assentes não foram minimamente postos em crise nem directamente impugnados.
Perante as afirmações abstractas, obviamente a embargante não cumpriu o ónus de prova dos factos impeditivo da pretensão da Requerente da declaração da falência, nos termos prescritos no acima citado artigo 335º/2 do CC.
Já em sede do presente apenso de embargos, para afastar o juízo bem formulado pelo Tribunal que declarou a falência, a embargante não fez mais do que a mera repetição daquilo que já foi alegado na resposta ao requerimento da declaração de falência.
Uma nota final, na parte conclusiva da oposição à declaração da falência, nenhum artigo normativo citado para fundamentar a sua posição juridicamente! Algo estranho!
Desta maneira, não pode deixar de improceder esta parte do recurso.
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Relativamente à 2ª questão, abuso de direito por parte da Embargada, Requerente da declaração da falência, adiantemos desde já, que esta invocação carece de fundamentos.
A propósito da figura de abuso de direito, o Prof. Manual Andrade ensinava:
“Há abuso do direito, legitimo (razoável) em princípio, é exercido, em determinado caso, de maneira a constituir clamorosa ofensa do sentimento jurídico dominante; e a consequência é a de o titular do direito ser tratado como se não tivesse tal direito ou a de contra ele se admitir um direito de indemnização baseado em facto ilícito extracontratual.” (in Teoria Geral das Obrigações, 3ª ed. Pág. 63 e 64)
Do mesmo modo, o Prof. Antunes Varela afirmava:
“para que haja lugar ao abuso de direito, é necessária a existência de uma contradição entre o modo ou fim com que o titular exerce o seu direito e o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito.”(in Das Obrigações em geral, Vol. I, 6ª ed. Pág. 516).
Para Fernando Cunha de Sá, “O abuso do direito traduz-se, pois, num acto ilegítimo, consistindo a sua ilegitimidade precisamente num excesso de exercício de um certo e determinado direito subjectivo: hão-de ultrapassar-se os limites que ao mesmo direito são impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo próprio fim social ou económico do direito exercido. Não é, aliás, qualquer excesso a esses limites que confere ao exercício do respectivo direito carácter abusivo, mas somente o excesso que seja manifesto.” (in Abuso do Direito, 2005, pág. 103/104).
Estipula o artigo 326º do CCM que é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
A figura do abuso do direito surge, assim, como um modo de adaptar o direito à evolução da vida, servindo como válvula de escape a situações que os limites apertados da lei não contemplam, por forma considerada justa pela consciência social, em determinado momento histórico, ou obstando a que, observada a estrutura formal do poder conferido por lei, se excedam manifestamente os limites que devem ser observados, tendo em conta a boa fé e o sentimento de justiça em si mesmo – cfr. Ac. STJ de 12/06/2012, in www.dgsi.pt.
Em teoria, são apontadas como manifestações do abuso de direito, duas situações: venire contra factum proprium (proibição) e a suppressio.
Na modalidade de “venire contra factum proprium”, o abuso de direito caracteriza-se pelo exercício de uma posição jurídica em contradição com uma conduta antes assumida ou proclamada pelo agente.
No que tange à suppressio, esta traduz a situação do direito que, não tendo sido, em certas circunstâncias, exercido durante um determinado lapso de tempo, não possa mais sê-lo por, de outra forma, se contrariar a boa fé – Cfr. Meneses Cordeiro, Da Boa Fé No Direito Civil, II volume, pag. 797.
É de ver que o instituto do abuso de direito constitui um último recurso, algo a que só se pode lançar mão, à falta de outro meio, com vista a evitar a produção de “situações clamorosamente injustas”, o que no caso dos autos não sucede, pois, não encontramos matérias suficientes para subsumir em nenhuma das modalidades apontadas.
No caso, à luz dos factos assentes constantes da sentença que decretou a falência, a Requerente chegou a apresentar planos tendentes a resolver os problemas das dívidas em causa, só que os devedores (incluindo a ora falida) ficaram silenciosos! Perante um avultado número de dívidas e a quase impossibilidade de saldar as dívidas num prazo razoável (nem se diga que as dívidas sejam sempre pagas, uma questão de tempo, cinquenta anos? cem anos?), a Embargada/Requerente decidiu pedir declarar a falência! Este modo e fim de exercer o direito vai além dos limites da boa fé? Obviamente não!
Na óptica da falida, qualquer tentativa de pedir declarar falência é um abuso de direito! Raciocínio manifestamente incoerente e insustentado!
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Resumindo e concluindo:
1) - Na oposição, à embargante cabe invocar os factos concretos para impugnar os fundamentos com base nos quais foi decretada a falência, ou apresentar planos concretos de cumprimento imediato das dívidas já verificadas (artigos 1082º e 1091º do CPC). Não assim fazendo, subsistindo a base fáctica e legal da falência, é de manter a decisão recorrida.
2) - A figura do abuso do direito surge, assim, como um modo de adaptar o direito à evolução da vida, servindo como válvula de escape a situações que os limites apertados da lei não contemplam, por forma considerada justa pela consciência social, em determinado momento histórico, ou obstando a que, observada a estrutura formal do poder conferido por lei, se excedam manifestamente os limites que devem ser observados, tendo em conta a boa fé e o sentimento de justiça em si mesmo.
3) - Não há abuso de direito quando a embargada, perante um avultado número das dívidas por saldar, decidiu pedir ao Tribunal declarar a falência da devedora. Quer quanto ao fim, quer ao modo, o exercício do direito pela embargada está dentro dos limites legais, obedecendo ao ditame de boa fé, como tal não merece censura.
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Pelo exposto, é de verificar que, em face das considerações e impugnações da ora Recorrente, a argumentação produzida pelo MMo. Juíz do Tribunal a quo continua a ser válida, a qual não foi contrariada mediante elementos probatórios concretos, trazidos por quem tem o ónus de prova, motivo pelo qual é de manter a decisão recorrida.
Tudo visto, resta decidir
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V - DECISÃO
Em face de todo o que fica exposto e justificado, os juízes do Tribunal de 2ª Instância acordam em negar provimento ao recurso, mantendo-se na íntegra a decisão recorrida que julgou improcedentes os embargos deduzidos pela Embargante falida.
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Custas pela Recorrente/Embargante(falida).
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Registe e Notifique.
RAEM, 10 de Maio de 2018.
Fong Man Chong
Ho Wai Neng
José Cândido de Pinho
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