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Processo n.º 817/2014 Data do acórdão: 2018-5-17 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– insuficiência para a decisão da matéria de facto provada
– art.o 400.o, n.o 2, alínea a), do Código de Processo Penal
– lacuna na investigação do objecto probando
– erro notório na apreciação da prova
– art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal




S U M Á R I O

1. Só existe o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada aludido na alínea a) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal, quando tiver havido alguma lacuna ou omissão, por parte do tribunal sentenciador, no apuramento da veracidade de algum ponto do tema probando.
2. Como após vistos, de modo crítico, os elementos de prova referidos na fundamentação probatória do aresto recorrido, não se vislumbra que o tribunal recorrido, aquando da formação da sua livre convicção sobre os factos, tenha violado quaisquer regras da experiência da vida humana em normalidade de situações, ou violado quaisquer normas jurídicas sobre o valor da prova, ou violado quaisquer leges artis a observar no julgamento dos factos, não pode o tribunal recorrido cometido o erro notório na apreciação da prova como vício previsto na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 817/2014
(Recurso em processo penal)
Recorrente (arguido): A




ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA
REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformado com a sentença proferida a fls. 659 a 665 do subjacente Processo Comum Singular n.o CR1-14-0254-PCS do 1.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base (TJB), que o condenou como autor material de um crime consumado de abuso de poder, p. e p. pelo art.o 347.o do Código Penal (CP), na pena de 210 dias de multa, à quantia diária de MOP250,00, no total, pois, de MOP52.500,00 de multa, convertível, se não paga nem substituída por trabalho, em 140 dias de prisão, veio o arguido A, aí já melhor identificado, recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), tendo levantado as seguintes questões para pedir a sua absolvição (cfr., em detalhes, a sua motivação apresentada a fls. 781 a 882 dos presentes autos correspondentes):
– erro notório do Tribunal sentenciador na apreciação da prova;
– e insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (por, no entender dele, os factos provados em primeira instância não serem suficientes para suportar a decisão condenatória recorrida, mormente em sede de preenchimento do tipo subjectivo do crime de abuso de poder, por nem da acusação ter constado qualquer facto (por exemplo, com referência à atitude ou à vontade dele ou aos seus efeitos pretendidos, ou à amizade de longa data com outrem, etc.) donde se pudesse retirar alguma intenção específica dele em conceder um benefício ao condutor do veículo automóvel MH-59-XX, ou retirar efectiva vontade do próprio recorrente de conceder a terceiro qualquer benefício).
Ao recurso, respondeu a Digna Delegada do Procurador a fls. 885 a 886v, no sentido de manutenção do julgado.
Subido o recurso, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer a fls. 897 a 898v, pugnando também pela manutenção do julgado.
Concluído o exame preliminar (com indeferimento liminar do pedido de renovação da prova) e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se que a sentença ora recorrida se encontra proferida a fls. 659 a 665 dos autos, cuja fundamentação fáctica, probatória e jurídica se dá por aqui inteiramente reproduzida.
Na sentença, deu-se inclusivamente por provado o seguinte:
– no ano de 2007, sensivelmente, o recorrente, funcionário de um Serviço público em Macau, descobriu que houve trabalhadores do seu Serviço a estacionar, sem autorização, veículos automóveis particulares em lugares de estacionamento n.os AI, AJ e AK identificados nos autos, pelo que, para além de apresentar queixa desse fenómeno a um trabalhador da administração do parque de estacionamento em causa, mandou uma inferior hierárquica dele próprio no Serviço para avisar o pessoal do mesmo Serviço que não era permitido estacionar, sem autorização, veículos nos referidos lugares de estacionamento, e ordenou a recolha dos passes de estacionamento automóvel respectivos, para evitar o estacionamento abusivo por trabalhadores do mesmo Serviço nesses lugares de estacionamento;
– em determinado dia de princípios do ano de 2008, o condutor do veículo MH-59-XX perguntou ao recorrente se podia pedir emprestar lugar de estacionamento do seu Serviço para estacionar, para facilitar um pouco, tendo o recorrente respondido que “sim la sim la”;
– depois, o dito condutor passou a estacionar o veículo automóvel MH-59-XX no lugar de estacionamento n.o AJ do referido parque de estacionamento;
– em determinado dia de meados do ano de 2008, uma chefe funcional do mesmo Serviço viu o veículo automóvel MH-59-XX estacionado no lugar de estacionamento n.o AJ, e assim, alguns dias depois, ela foi reportar a situação ao recorrente, tendo o recorrente dito a esta para não ligar ao assunto e deixar estar.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cabe notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver apenas as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Nesses parâmetros, conhecendo:
Apesar de o arguido ter usado muita tinta para tecer as razões da sua discordância em relação à decisão condenatória penal recorrida, essas razões reconduzem-se, ao fim e ao cabo, a duas questões seguintes como objecto do recurso: erro notório na apreciação da prova e erro de direito aquando da tomada de decisão de condenação em sede do tipo legal de abuso de poder (é que, nota-se, a argumentação concretamente tecida na motivação do recurso para fundar a tese de existência do vício, aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea a), do CPP, de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada não tem propriamente a ver com este vício, mas sim com a questão de erro de julgamento de direito manifestado na subsunção de factos ao direito, sendo de frisar que só existe o vício da alínea a) do n.o 2 desse preceito processual penal, quando tiver havido alguma lacuna ou omissão, por parte do Tribunal sentenciador recorrido, no apuramento da veracidade de algum ponto do tema probando, tema probando esse que, no caso dos autos, e na parte em que fosse desfavorável à posição do arguido ora recorrente, se encontrou já composto e só composto por toda a factualidade descrita no libelo acusatório, por o arguido não ter oferecido outra versão fáctica das coisas em sede de contestação à acusação, por um lado, e, por outro, o Tribunal recorrido ter já cumprido o seu dever de investigação sobre o tema probando (pois, do teor do aresto recorrido se vê que esse Tribunal já especificou quais os factos descritos no libelo acusatório é que foram dados por provados, e referiu também quais os factos dados por não provados).
Pois bem, após vistos, de modo crítico, os elementos de prova já referidos na fundamentação probatória do aresto recorrido, não se vislumbra que o Tribunal recorrido, aquando da formação da sua livre convicção sobre os factos, tenha violado quaisquer regras da experiência da vida humana em normalidade de situações, ou violado quaisquer normas jurídicas sobre o valor da prova, ou violado quaisquer leges artis a observar no campo jurisprudencial de julgamento da matéria de factos, pelo que não pode ter o arguido aproveitado a presente lide recursória para fazer impor o seu ponto de vista sobre os factos, ao arrepio do princípio da livre apreciação da prova do art.o 114.o do CPP. Não pode ter o Tribunal recorrido cometido, pois, erro notório na apreciação da prova como vício referido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP, porque, aliás, esse Tribunal já explicou conguentemente (no último pagrágrafo da fundamentação probatória da sentença recorrida, i.e., da página 10 do respectivo texto, a fl. 663v) o raciocínio aquando da formação da sua livre convicção sobre os factos.
Concluído, pois, pela inexistência de erro notório na apreciação da prova, é de decidir da restante parte do recurso com base na factualidade já dada por provada no texto da decisão recorrida.
Assim, no tangente ao alegado não preenchimento do tipo legal de abuso de poder:
Diversamente do sustenado pelo recorrente na sua motivação, a matéria de facto dada por provada deu para o fazer responsabilizar pela autoria material de um crime consumado de abuso de poder, ficando realmente já cabalmente preenchido todo o tipo-de-ilícito deste crime, estando a intenção dele de obter para terceiro benefício ilegítimo evidenciada pelos seguintes factos provados: no ano de 2007, sensivelmente, o recorrente descobriu que houve trabalhadores do seu Serviço a estacionar, sem autorização, seus veículos automóveis particulares em lugares de estacionamento n.os AI, AJ e AK identificados nos autos, pelo que, para além de apresentar queixa desse fenómeno a um trabalhador da administração do parque de estacionamento em causa, mandou uma inferior hierárquica dele próprio no Serviço para avisar o pessoal do mesmo Serviço que não era permitido estacionar, sem autorização, veículos nos referidos lugares de estacionamento, e ordenou a recolha dos passes de estacionamento automóvel respectivos, para evitar o estacionamento abusivo por trabalhadores do mesmo Serviço nesses lugares de estacionamento; em determinado dia de princípios do ano de 2008, o condutor do veículo MH-59-XX perguntou ao recorrente se podia pedir emprestar lugar de estacionamento do dito Serviço para estacionar, para facilitar um pouco, tendo o recorrente respondido que “sim la sim la”; depois, o dito condutor passou a estacionar o veículo automóvel MH-59-XX no lugar de estacionamento n.o AJ do referido parque de estacionamento; e em determinado dia de meados do ano de 2008, uma chefe funcional do mesmo Serviço viu o veículo automóvel MH-59-XX estacionado no lugar de estacionamento n.o AJ, e assim, alguns dias depois, ela foi reportar a situação ao recorrente, tendo o recorrente dito a esta para não ligar ao assunto e deixar estar.
Ou seja, no caso, o terceiro de que se fala na norma incriminatória do art.o 347.o do CP é tal condutor do veículo automóvel MH-59-XX, o benefício ilegítimo de que se fala na mesma norma é o uso do referido lugar de estacionamento n.o AJ por esse terceiro, e a maneira, totalmente diferente, de o recorrente se ter reagido, em 2007, perante trabalhadores do mesmo Serviço abusadores do uso dos lugares de estabelecimento n.os AI, AJ e AK e reagido depois, em meados de 2008, perante a reportagem, por uma chefe funcional do mesmo Serviço, do caso de estacionamento do referido veículo MH-59-XX no lugar de estabelecimento n.o AJ demonstra nitidamente a intenção do recorrente de obter para tal condutor desse veículo tal benefício ilegítimo.
Improcede, pois, o recurso, sem mais indagação por desnecessária ou prejudicada em face da análise acima feita.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em negar provimento ao recurso.
Custas pelo arguido recorrente, com três UC de taxa de justiça.
Comunique a presente decisão ao Comissariado contra a Corrupção e à Direcção dos Serviços para os Assuntos Laborais, para os efeitos tidos por convenientes.
Macau, 17 de Maio de 2018.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Chou Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)



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