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ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório
A intentou acção declarativa com processo ordinário contra B pedindo a sua condenação no pagamento de:
a) Parte da retribuição devida à autora, de que a Ré se apossou, acrescida de juros legais desde a citação;
b) Trabalho prestado pela autora durante os períodos de descanso anual, descanso semanal e feriados obrigatórios, no montante de novecentas e cinco mil, novecentas e quatro patacas, acrescido de juros legais desde a citação;
c) Indemnização por violação direitos não patrimoniais, a liquidar em execução de sentença;
d) Indemnização rescisória, no montante de cento e oitenta e seis mil e quatrocentas patacas, acrescido de juros legais desde a citação.
A Ex. ma Juíza-Presidente do Tribunal Colectivo do Tribunal Judicial de Base, julgou a acção parcialmente procedente, condenando a Ré a pagar à Autora a quantia de MOP$630,321.00, acrescida de juros legais desde o trânsito em julgado da decisão.
Em recurso interposto pela Ré, o Tribunal de Segunda Instância (TSI), oficiosamente, anulou o julgamento por obscuridade das respostas do Tribunal Colectivo aos quesitos 2.º a 7.º da base instrutória.
Inconformada, recorre a Ré B para este Tribunal de Última Instância, pedindo a revogação do Acórdão recorrido.
Para tal, formulou as seguintes conclusões úteis:
O Acórdão recorrido violou os arts. 571.º, 629.º e 108.º do Código de Processo Civil, este porque não se fundamenta a decisão de pôr as custas a cargo do vencido a final, que é a ora recorrente.
O que se verifica é contradição entre a matéria provada e a condenação da Ré pela sentença de primeira instância, pelo que o TSI deveria ter absolvido a Ré.
A jurisprudência do TUI de não conhecer as decisões do TSI que anulam julgamento com fundamento em obscuridade não tem fundamento legal e também aqui não teria aplicação, porque o TSI violou normas legais na utilização dos seus poderes cassatórios.
A anulação do julgamento pelo TSI não retira a contradição entre a matéria de facto e a decisão de direito.

II – Os factos
Os factos relevantes para o conhecimento do recurso são os seguintes:
  A) A matéria de facto relevante, fixada nos termos do art. 430.º do Código de Processo Civil foi a seguinte:
  2.1. Matéria de facto assente
  a)
Desde o início da década de 1960 que a Ré foi concessionária de uma licença de exploração, em regime de exclusividade, de jogos de fortuna ou azar ou outros jogos em casinos por adjudicação de então Território de Macau.
b)
Essa licença de exploração terminou em 31 de Março de 2002 por força do Despacho do Chefe do Executivo da RAEM n° 259/2001, de 18 de Dezembro de 2001.
c)
Por Despacho do Chefe do Executivo n° 76/2002, foi adjudicada uma licença de exploração à C.
d)
A autora começou a trabalhar para a Ré em 21 de Junho de 1990, na área de actividade desta ligada à exploração de jogos de fortuna ou azar.
e)
Na data referida na alínea anterior, a Ré pagava à autora, a título de remuneração fixa diária a quantia de HKD$10,00 e a partir de Maio de 1995 e até à cessação da relação laboral entre as partes, tal remuneração foi de HKD$15,00.
f)
Além disso, a Autora, ao longo do período em que esteve ao serviço da Ré recebeu uma quota-parte, variável, do total das gorjetas entregues pelos clientes da Ré a todos os trabalhadores, cujo montante era diariamente reunido e contabilizado por esta e, em cada dez dias, distribuído por ela a todos os seus trabalhadores e de acordo com a respectiva categoria profissional.
g)
Em 20 de Julho de 2002, a Autora celebrou com a referida C um acordo escrito cujo teor consta de fls. 202 a 204 e aqui se dá por integralmente reproduzido.
h)
Com data de 9 de Setembro de 2002, a Autora enviou à C que, por sua vez, recebeu, a carta cujo teor consta de fls. 212 e 213 (em língua chinesa) e 214 e 215 (em língua portuguesa) e que aqui se dá por integralmente reproduzido.
2.2. Matéria de facto que constitui a base instrutória
  1º
  Englobando a remuneração fixa e a quota-parte referidas nas alíneas e) e f) da matéria de facto assente, a Autora recebeu da Ré:
  - Durante o ano de 1990, a quantia de MOP$37,610.00?
  - Durante o ano de 1991, a quantia de MOP$94,588.00?
  - Durante o ano de 1992, a quantia de MOP$115,841.00?
  - Durante o ano de 1993, a quantia de MOP$137,126.00?
  - Durante o ano de 1994, a quantia de MOP$141,333.00?
  - Durante o ano de 1995, a quantia de MOP$165,787.00?
  - Durante o ano de 1996, a quantia de MOP$186,293.00?
  - Durante o ano de 1997, a quantia de MOP$185,829.00?
  - Durante o ano de 1998, a quantia de MOP$190,032.00?
  - Durante o ano de 1999, a quantia de MOP$172,054.00?
  - Durante o ano de 2000, a quantia de MOP$179,370.00?
  - Durante o ano de 2001, a quantia de MOP$170,008.00?

Enquanto esteve ao serviço da Ré, a Autora nunca gozou férias?

Nem chegou a gozar qualquer dia de descanso semanal?

E passou todos os feriados obrigatórios a trabalhar?

Sem que tenha recebido qualquer acréscimo salarial pelo trabalho prestado nos dias de férias descanso semanal e feriados obrigatórios?

Em consequência do referido nos pontos 2°, 3° e 4° que antecede a Autora nunca pôde passar férias e os feriados obrigatórios na companhia da sua família?

E viu-se privada da possibilidade de estar na companhia da família durante um dia inteiro uma vez por semana?

A Autora nunca pôde visitar os países que sempre sonhou conhecer desde há muitos anos?

O referido nos pontos 7º e 8º causou à Autora grande tristeza, desgosto e mágoa?
10º
Além de insónias e depressão que aumentavam constantemente?
11º
Quando a Autora foi admitido ao serviço da Ré, ambas acordaram entre si que o salário daquela fosse exclusivamente constituído pela quantia referida na alínea e) da matéria de facto assente?
12º
Na mesma altura, a Autora aceitou que as flutuações e até a eventual inexistência em determinado momento temporal da quota-parte referida na alínea f), corriam por sua conta?
13º
Autora e Ré acordaram expressamente entre si que, ao gozo de descanso anual e semanal e feriados obrigatórios por parte daquela, não corresponderia qualquer remuneração?
14º
Nos dias de descanso semanal, anual e feriados obrigatórios em que a Autora trabalhou, foi porque a mesma assim quis?
15º
Apenas porque queria auferir mais rendimento?
16º
Ao longo dos anos, quando gozaram dias de descanso, nunca os trabalhadores da Ré, nomeadamente a Autora, solicitaram àquela o pagamento de qualquer compensação ou remuneração nesses dias?
B) As respostas do Tribunal Colectivo à base instrutória, foram as seguintes:
Quesito 1º - Provado.
Quesitos 2º a 7º - Provado apenas que a A. precisava da autorização da R. para ser dispensado dos serviços e que durante estes períodos de dispensa autorizada a A. não recebia qualquer remuneração.
Quesitos 8.º a 10.º - Não provados.
Quesito 11º - Provado apenas o que consta nas alíneas e) e f) e da resposta dada ao quesito 1 °.
Quesito 12º - Provado.
Quesito 13º - Provado apenas o que consta na resposta dada aos quesitos 2° a 7°.
Quesitos 14º e 15º - Não provados.
Quesito 16º - Provado.

III – O Direito
1. A questão a resolver
Importa apurar se o TSI violou a lei ao anular o julgamento do Tribunal Colectivo no que respeita às respostas aos quesitos 2.º a 7.º da base instrutória.

2. Anulação do julgamento da matéria de facto com fundamento em obscuridade. Art. 629.º, n.º 4 do Código de Processo Civil
O TSI, oficiosamente, anulou o julgamento do Tribunal Colectivo às respostas dos quesitos 2.º a 7.º da base instrutória, com fundamento em obscuridade das respostas.
A primeira questão que se deve colocar a qualquer Tribunal é a de saber se tem poderes para sindicar a apreciação que o Tribunal e o Acórdão recorridos fizeram ao proferirem a decisão que vem impugnada sob recurso.
Ora, sobre esta questão, já o TUI tomou posição mais do que uma vez.
Passaremos a citar o nosso Acórdão 19 de Outubro de 2005, no Processo n.º 18/2005, onde, por sua vez se cita o Acórdão de 23 de Maio de 2001, no Processo n.º 5/2001, ambos proferidos a propósito de anulação por contradição da decisão de facto, mas onde também se aborda a anulação por obscuridade da decisão de facto:
“3. Poder de cognição do TUI relativamente a matéria de facto
O Acórdão recorrido entendeu que havia contradição entre, por um lado, um facto constante da especificação [alínea G)] e, por outro lado, as respostas aos quesitos n. os 24, 26, 27 e 28 do questionário.
...
A recorrente insurge-se contra esta pronúncia e pretende que o TUI conheça da questão, opinando que este Tribunal pode da mesma conhecer visto que a contradição entre factos é uma questão de direito.
Já para a recorrida trata-se de uma questão de facto, para a qual o TUI não tem competência.
É o que se irá começar por examinar.
O TUI já teve oportunidade de reflectir sobre o seu poder de cognição em matéria de facto e em matéria de direito, em processo civil. Fê-lo no Acórdão de 23 de Maio de 2001, no Processo n.º 5/2001, em que estava em causa questão diversa da que agora se põe, e que era a de saber se o TUI pode censurar o uso que o TSI faça do poder de anulação (oficiosa ou não) de despacho saneador-sentença, por este TSI ter entendido indispensável a ampliação da matéria de facto (ou ter decidido a anulação da decisão do colectivo, pelo mesmo motivo), faculdade essa prevista no art. 712.º, n.º 2, do Código de Processo Civil de 1961 e no art. 629.º, n.º 4, do actual Código de Processo Civil.
Nesse Acórdão acentuou-se o seguinte:
“Dispõe o n.º 2, do art. 47.º da Lei de Bases de Organização Judiciária (Lei n.º 9/1999, de 20.12), que:

«Excepto disposição em contrário das leis de processo, o Tribunal de Última Instância, quando julgue em recurso não correspondente a segundo grau de jurisdição, apenas conhece de matéria de direito».

É o art. 639.º do Código de Processo Civil que estabelece o poder cognitivo deste Tribunal, nos seguintes termos:
«Salvo no caso previsto na alínea c) do n.º 2 do artigo 583.º, o recurso para o Tribunal de Última Instância pode ter como fundamento a violação ou a errada aplicação da lei substantiva ou da lei de processo, bem como a nulidade do acórdão recorrido».
Deste modo, salvo no caso previsto na alínea c) do n.º 2 do artigo 583.º (recurso de decisão proferida contra jurisprudência obrigatória), bem como caso de recurso com base em nulidade1 do acórdão recorrido, o recurso para o Tribunal de Última Instância só pode ter como fundamento matéria de direito, a violação ou a errada aplicação da lei substantiva ou da lei de processo.
Mas há mais duas disposições no Código que relevam para caracterizar o poder cognitivo do Tribunal em matéria cível. São elas os arts. 649.º e 650.º, que estatuem:
«Artigo 649.º
(Âmbito do julgamento)
1. Aos factos materiais que o tribunal recorrido considerou provados, o Tribunal de Última Instância aplica definitivamente o regime que julgue adequado em face do direito vigente.
2. A decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo se houver ofensa de disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.
Artigo 650.º
(Insuficiência da matéria de facto e contradição na decisão de facto)
1. Se entender que a matéria de facto pode e deve ser ampliada para fundamentar a decisão de direito, ou que ocorrem contradições na decisão de facto que inviabilizam a decisão de direito, o Tribunal de Última Instância manda julgar novamente a causa no Tribunal de Segunda Instância.
2. O Tribunal de Última Instância fixa logo o regime jurídico aplicável ao caso; se, por insuficiência da matéria de facto, ou contradição na decisão de facto, o não puder fazer, fica a nova decisão que o Tribunal de Segunda Instância proferir sujeita a recurso para o Tribunal de Última Instância, nos mesmos termos que a primeira».

Constatamos da leitura destas normas que a decisão do Tribunal de Segunda Instância quanto aos factos não pode ser alterada pelo Tribunal de Última Instância, salvo se houver ofensa de disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.
Mas se o Tribunal de Última Instância entender que a matéria de facto é insuficiente ou que ocorrem contradições na matéria de facto deve mandar baixar o processo para que o Tribunal de Segunda Instância julgue novamente a causa.
Em conclusão, o conhecimento do Tribunal de Última Instância é restrito à matéria de direito, mas pode:
- Alterar a decisão em matéria de facto quando houver ofensa de disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova;
- Anular a decisão recorrida quando ocorram contradições na matéria de facto ou mandar ampliar a matéria de facto, quando esta seja insuficiente (desde que os factos pertinentes tenham sido alegados pelas partes2).
É com base nestas directrizes que se deve examinar a questão de saber se o Tribunal de Última Instância pode sindicar o uso que o Tribunal de Segunda Instância faça do poder de anulação oficiosa de despacho saneador-sentença, por este Tribunal ter entendido indispensável a ampliação da matéria de facto (ou da anulação da decisão do colectivo, pelo mesmo motivo), faculdade essa prevista no art. 712.º, n.º 2, do Código de Processo Civil de 1961 e no art. 629.º, n.º 4, do actual Código de Processo Civil.
Ora, apurar se um facto é ou não destituído de relevância jurídica para a decisão da causa constitui, manifestamente, matéria de direito e não de facto.
Neste sentido se pronunciaram, por exemplo, ALBERTO DOS REIS3 e A. ANSELMO DE CASTRO4.
Também ANTUNES VARELA5 se pronunciou, não só sobre este ponto, mas sobre a questão mais vasta, a de saber se o tribunal supremo pode conhecer «dos casos em que a Relação considera indispensável a formulação de outros quesitos, nos termos da alínea f) do n.º 2 do artigo 650.º do mesmo Código.
E esta indispensabilidade da formulação de novos quesitos mede-se por uma regra de direito importantíssima – por um preceito que é uma das regras de ouro da organização do questionário.
Essa regra, que o Código de 1961 explicitamente fixou, baseada na formulação de MANUEL ANDRADE, através da nova redacção do n.º 1 do artigo 511.º do Código de Processo Civil (correspondente ao art.º 515.º do Código de 39), é a de que o questionário deve ser elaborado, tendo em vista, não apenas a solução que o organizador da peça considera a boa decisão da causa, mas todas as soluções plausíveis das questões de direito debatidas na causa.
...
A fiscalização da aplicação desta regra é questão de direito, perfeitamente enquadrada na competência do tribunal de revista (o sublinhado é nosso).
Quer isto dizer que a remissão feita no n.º 2 do artigo 712.º do Código de Processo Civil para o disposto na alínea f) do n.º 2 do artigo 650.º não deve nunca perder de vista o esquema traçado no n.º 1 do artigo 511.º para a organização, tanto da especificação como do questionário, porque é à luz desse programa genérico que cumpre ajuizar da indispensabilidade da formulação de novos quesitos.
A necessidade da inclusão de novos quesitos não se medirá apenas em função da solução que o juiz da causa (ou o próprio presidente do colectivo, ao usar da faculdade conferida pela alínea f) do n.º 2 do artigo 650.º) julgue na altura ser a boa decisão jurídica do litígio, mas em face também das outras soluções plausíveis das questões de direito debatidas na acção».
Pelo contrário, em regra, a decisão do Tribunal de Segunda Instância que anule a decisão de primeira instância por reputar deficiente, obscura ou contraditória a mesma decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, é matéria de facto, insindicável, em princípio, pelo Tribunal de Última Instância6.
E dizemos, em princípio, porque tal decisão do Tribunal de Segunda Instância já estará sujeita a censura do Tribunal de Última Instância, quando houver ofensa de disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova ou quando o tribunal recorrido violar qualquer norma legal, na utilização dos seus poderes”.
E a propósito da interpretação do n.º 2 do art. 649.º do Código de Processo Civil este TUI referiu o seguinte, nos Acórdãos de 27 de Novembro de 2002 e de 23 de Abril de 2003, respectivamente, nos Processos n. os 12/2002 e 6/2003:
«É que, como adverte RODRIGUES BASTOS, 7 em anotação a preceito semelhante do Código de Processo Civil português, “repare-se, porém, que ainda aqui – e sempre – a actividade do Tribunal se situa no estrito campo da observância da lei; ele não faz a censura da convicção formada pelas instâncias quanto à prova; limita-se a reconhecer e a declarar, em qualquer dos casos, que havia obstáculo legal a que tal convicção se tivesse formado. É uma censura que se confina à legalidade do apuramento dos factos – e não respeita directamente à existência ou inexistência destes”.»
Concluindo, o TUI só conhece de matéria de direito podendo, excepcionalmente, conhecer de matéria de facto nas seguintes situações:
- Alteração da decisão em matéria de facto quando houver ofensa de disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova;
- Anulação da decisão recorrida quando ocorram contradições na matéria de facto que inviabilizam a decisão de direito ou mandar ampliar a matéria de facto, quando esta seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito (desde que os factos pertinentes tenham sido alegados pelas partes8)”.

4. O caso dos autos. Obscuridade de respostas do Tribunal Colectivo detectada pelo TSI
O TSI considerou que as respostas do Tribunal Colectivo aos quesitos 2.º a 7.º são obscuras, ou seja, não inteligíveis.
A base instrutória é uma peça que só contém factos.
O acórdão com as respostas do Tribunal Colectivo aos quesitos da base instrutória é, por isso e por natureza, uma peça processual apenas com factos, em que o direito está ausente, o que também resulta do disposto no n.º 4 do art. 549.º do Código de Processo Civil, que considera não escritas as respostas do tribunal colectivo sobre questões de direito.
O TSI ao exercer os seus poderes, previstos no n.º 4 do art. 629.º do Código de Processo Civil, não praticou ofensa expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.
A alegação da recorrente em sentido contrário de que o TUI poderia sindicar a apreciação da decisão recorrida não merece acolhimento.
Menos acolhimento merece a sua tese de que o art. 629.º do Código de Processo Civil de Macau não contém norma semelhante à do n.º 6 do art. 712.º do Código português, pelo que o TUI poderia sempre apreciar a questão da anulação do julgamento de facto por obscuridade das respostas do tribunal colectivo.
A questão não é de inadmissibilidade de recurso do TSI para o TUI, mas de falta de poder de cognição do TUI para apreciar matéria de facto, como expressamente resulta do n.º 2 do art. 47.º da Lei de Bases da Organização Judiciária e dos arts. 639.º, 649.º e 650.º do Código de Processo Civil.
Claro que o TUI pode revogar a decisão que anula julgamento com fundamento em obscuridade das respostas do tribunal colectivo, se entendesse que os factos dos quesitos eram irrelevantes para a decisão final, porque esta já é uma questão de direito.
Mas tais factos são manifestamente relevantes, porque se inserem na causa de pedir invocada pela autora na petição inicial e respeitam aos pedidos formulados.
Ora, como saber se as respostas do Tribunal Colectivo aos quesitos 2.º a 7.º são obscuras, ou seja, não inteligíveis, envolve apenas uma questão de facto e não de direito, não tem o TUI poder de censura do TSI, salvo se tivesse havido ofensa expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova, o que não aconteceu.
Assim, não iremos conhecer da questão da obscuridade.
Por outro lado, a tese da recorrente de que se verifica contradição entre a matéria provada e a condenação da Ré pela sentença de primeira instância, pelo que o TSI deveria ter absolvido a Ré, não é apreciada, exactamente por força da anulação do julgamento de facto. Diremos apenas que nunca seria questão de contradição mas de erro de julgamento, por má interpretação e aplicação do direito aos factos. A contradição formal causa nulidade da decisão, nos termos da alínea c) do n.º 1 do art. 571.º do Código de Processo Civil, mas não é esta a figura que cabe à argumentação da Ré.

5. Custas pelo vencido a final
A impugnação que a Ré faz da condenação em custas (a cargo do vencido a final), suscita algumas perplexidades. Parece que Ré não percebeu a condenação, porque diz que ela recorrente nunca poderia ter sido condenada em custas.
Ora, a recorrente não foi condenada em custas. As custas serão pagas pela parte que ficar vencida no final do processo – ou na respectiva proporção se o vencimento não for total - o que ainda não aconteceu, pois o processo ainda vai a meio. E não poderia ter sido de outro modo, porque nenhuma das partes ficou vencida no recurso, uma vez que a decisão de anulação foi oficiosa e não foi pedida por nenhuma das partes.
O decidido quanto a custas resulta, pois, do disposto no art. 376.º, n. os 1 e 2 do Código de Processo Civil.

IV - Decisão
Face ao expendido negam provimento ao recurso
Custas pela recorrente (Ré), por ter ficado vencida no presente recurso (art. 376.º, n. os 1 e 2 do Código de Processo Civil).
Macau, 11 de Março de 2008.

Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Sam Hou Fai – Chu Kin

1 Quando o recurso tem como fundamento a nulidade do acórdão recorrido, ainda se trata de violação ou a errada aplicação da lei de processo, mais concretamente dos arts. 571.º, n.º 1 e 633.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
2 Sem prejuízo do disposto nos n.os 2 e 3 do art. 5.º do Código de Processo Civil.
3 ALBERTO DOS REIS, obra citada, III volume, p. 197 e 198, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 79.º, p. 94 e nas Actas da Comissão Revisora do Código de Processo Civil, sessão de 23 de Novembro de 1937, em Boletim do Ministério da Justiça, n.º 116, p. 202.
4 A. ANSELMO DE CASTRO, Direito Processual Civil Declaratório, Livraria Almedina, Coimbra, 1982, volume III, p. 279 e 280, que não se acompanha, no entanto, na parte em que considera que todas as questões concernentes à especificação e questionário são questões de direito.
5 ANTUNES VARELA, em anotação a decisão judicial na Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 125.º, p. 331.
6 ANTUNES VARELA, estudo citado, p. 309, também entende que nestes casos o Supremo não pode conhecer da decisão da Relação, pois que «está-se, efectivamente, numa zona de declarações que, não pertencendo embora ao puro domínio da investigação factual, nem ao puro reino da preceptologia normativa, está mais próxima do alicerce dos factos, porque lhes diz respeito, do que da cimalha das normas jurídicas».
7 RODRIGUES BASTOS, Notas ao Código de Processo Civil, Lisboa, 2001, vol. III, 3.ª ed., p. 278.
8 Sem prejuízo do disposto nos n.os 2 e 3 do art. 5.º do Código de Processo Civil.
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Processo n.º 51/2007