Processo nº 376/2018 Data: 07.06.2018
(Autos de recurso penal)
Assuntos : Crime de “usura para jogo com exigência ou aceitação de documento”.
Erro notório na apreciação da prova.
Reenvio.
SUMÁRIO
1. “Erro” é toda a ignorância ou falsa representação de uma realidade. Daí que já não seja “erro” aquele que possa traduzir-se numa “leitura possível, aceitável ou razoável, da prova produzida”.
Sempre que a convicção do Tribunal recorrido se mostre ser uma convicção razoavelmente possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve a mesma ser acolhida e respeitada pelo Tribunal de recurso.
O princípio da livre apreciação da prova, significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que pré-determinam ou hierarquizam o valor dos diversos meios de apreciação da prova, pressupondo o apelo às “regras de experiência” que funcionam como argumentos que ajudam a explicar o caso particular com base no que é “normal” acontecer.
Quando a atribuição de credibilidade ou falta de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear em opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção não tem uma justificação lógica e é inadmissível face às regras da experiência comum.
2. Padecendo a decisão recorrida do vício de “erro notório na apreciação da prova”, e sendo o mesmo insanável pelo Tribunal de recurso, há que se reenviar o processo para novo julgamento nos termos do art. 418° do C.P.P.M..
O relator,
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Processo nº 376/2018
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. Por Acórdão do T.J.B. de 02.02.2018 decidiu-se absolver o (3°) arguido, A, da imputada prática como co-autor material de 1 crime de “usura para jogo com exigência ou aceitação de documento”, p. e p. pelo art. 14° da Lei n.° 8/96/M; (cfr., fls. 321 a 328 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Inconformado com a decretada absolvição do (3°) arguido, o Ministério Público recorreu, imputando ao Acórdão recorrido o vício de “erro notório na apreciação da prova”; (cfr., fls. 335 a 340-v).
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Sem resposta e admitido o recurso, vieram os autos a este T.S.I., onde, em sede de vista, juntou o Exmo. Representante do Ministério Público douto Parecer, onde considerando também existir o dito “erro”, pugna pela procedência do recurso com o reenvio dos autos para novo julgamento; (cfr., fls. 409 a 410).
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Adequadamente processados os autos e nada parecendo obstar, passa-se a decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Deu o Colectivo a quo como provados os factos seguintes:
“ 1.
Cerca das 20H00 do dia 10/08/2014, dois indivíduos masculinos desconhecidos estavam, no recinto do meio do Casino B, a persuadir o ofendido pedir empréstimo para jogo.
2.
Os dois indivíduos masculinos levaram o ofendido ao casino C para encontrar com o arguido D, a fim de negociar sobre as condições do empréstimo.
3.
O arguido D aceitou conceder empréstimo no montante de 300 mil HK dólares (HKD$300,000.00) ao ofendido para jogo, com condição de descontar primeiro trinta mil HK dólares de juros (HKD$30,000.00), depois cobrar 15% de juros em cada aposta ganha, bem como, exigiu a entrega do passaporte da Formosa do ofendido como garantia do empréstimo e assinatura de uma declaração de dívida que promete devolver a respectiva quantia no prazo de 24 horas.
4.
Depois do consentimento do ofendido, o arguido D e os dois indivíduos masculinos desconhecidos levaram o ofendido à zona de refeitório da Sala VIP F, o arguido E depois de exigir ao ofendido a entrega do passaporte da Formosa como garantia do empréstimo e assinar uma declaração de dívida, os arguidos D, E e os 3 indivíduos masculinos desconhecidos levaram o ofendido à sala VIP F. Seguidamente, o arguido A e um indivíduo masculino desconhecido vieram ajudar o arguido E para entregar as duzentas e vinte e sete mil HK dólares (HKD$270,000.00) em fichas ao ofendido.
5.
Durante o jogo, o arguido E encarregou de trocar fichas e descontar os juros, quanto ao arguido A e os 3 indivíduos masculinos desconhecidos encarregavam de vigia (vide relatório de visionamento de fls. 100 e vídeo de fls. 102 dos autos).
6.
Até cerca das 3H00 da madrugada do dia 11/08/2014, aquando o ofendido restou pouco mais de cem mil HK dólares em fichas, o jogo terminou, durante o jogo, os arguido e tais indivíduos desconhecidos descontaram no total de cento e sessenta mil HK dólares (HKD$160,000.00) de juros.
7.
Durante a investigação, o policial encontrou no corpo do arguido E, o passaporte de Taiwan pertencente ao ofendido G, cento e sessenta e cinco mil HK dólares em fichas (HKD$165,000.00), um telemóvel e uma cópia do passaporte de Taiwan do ofendido G, com impressão digital e assinatura do ofendido (vide auto de vistoria e apreensão fls. 25 dos autos).
8.
O policial encontrou no corpo do arguido A, um telemóvel (vide auto de vistoria e apreensão fls. 43 dos autos).
9.
As fichas supracitadas foram obtidas através da prática ilícita dos arguidos; os telemóveis supracitados foram utilizados pelos dois arguidos como instrumento de comunicação para a prática da actividade de empréstimo ilícito.
10.
Os arguidos D e E livres, conscientes e voluntariamente, com o objectivo de obter para si ou para outros vantagens patrimoniais ilícitas, em conluio com os outros, decisão conjunta e distribuição de tarefas, dolosamente concederam fichas para os outros jogar, bem como, exigiram ao ofendido entregar o documento de identificação como garantia do empréstimo.
11.
Os arguidos D e E bem sabiam que a sua conduta é proibida e punida por lei.
Conforme o CRC do 1º arguido:
No acórdão do proc. nº CR4-16-031-PCC proferido no dia 04/09/2017, o Tribunal condenou o arguido, pela prática de 1 crime de 1 crime de exigência ou aceitação de documentos p.p.p. artº 14º da Lei nº 8/96/M, a pena de 2 anos e 3 meses de prisão e 1 crime de sequestro, a pena de 1 ano e 6 meses de prisão, em cúmulo das duas penas, foi condenado a pena única de 2 anos e 9 meses de prisão, suspensa a sua execução pelo período de 2 anos e a pena acessória de proibição de entrada nos casinos pelo período de 3 anos; o acórdão foi transitado em julgado no dia 25/09/2017, a pena ainda não foi extinta.
Conforme o CRC dos 2º e 3º arguidos, eles são primários.
O 1º arguido prestou declarações no MP, afirmou ter como habilitações literárias o ensino Universitário, é desempregado, não tem rendimento, tem a cargo os pais, a esposa e uma filha menor.
O 2º arguido prestou declarações no MP, afirmou ter como habilitações o ensino Universitário, é desempregado, não tem rendimentos, nem encargos familiares.
O 2º arguido prestou declarações no MP, afirmou ter como habilitações o ensino Universitário, é desempregado, não tem rendimentos, tem a cargo os pais”.
Seguidamente, e em sede de “factos não provados” consignou o que segue:
“Outros factos não provados constantes na acusação que não correspondem com os factos provados, designadamente:
Factos não provados: Seguidamente, o arguido A e um indivíduo masculino desconhecido vieram ajudar.
Factos não provados: Durante o jogo, o arguido A e os 3 indivíduos masculinos desconhecidos encarregavam de vigia.
Factos não provados: O A livre, consciente e voluntariamente, com o objectivo de obter para si ou para outros vantagens patrimoniais ilícitas, em conluio com os outros, decisão conjunta e distribuição de tarefas, dolosamente concedeu fichas para os outros jogar, bem como, exigiu ao ofendido entregar o documento de identificação como garantia do empréstimo.
Factos não provados: O arguido A bem sabia que a sua conduta é proibida e punida por lei”; (cfr., fls. 322-v a 324).
Do direito
3. Vem o Ministério Público recorrer do Acórdão proferido pelo Colectivo do T.J.B. que absolveu o (3°) arguido da prática como co-autor material de 1 crime de “usura para jogo com exigência ou aceitação de documento”, p. e p. pelo art. 14° da Lei n.° 8/96/M que lhes era imputado.
E, como se referiu, entende que incorreu o Colectivo a quo no vício de “erro notório na apreciação da prova”.
Apresenta-se-nos evidente que tem o Exmo. Recorrente razão.
Vejamos.
Repetidamente tem este T.S.I. considerado que “O erro notório na apreciação da prova apenas existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores”.
De facto, “É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 08.06.2017, Proc. n.° 286/2017, de 14.09.2017, Proc. n.° 729/2017 e de 04.04.2018, Proc. n.° 912/2017).
Como também já tivemos oportunidade de afirmar:
“Erro” é toda a ignorância ou falsa representação de uma realidade. Daí que já não seja “erro” aquele que possa traduzir-se numa “leitura possível, aceitável ou razoável, da prova produzida”.
Sempre que a convicção do Tribunal recorrido se mostre ser uma convicção razoavelmente possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve a mesma ser acolhida e respeitada pelo Tribunal de recurso.
O princípio da livre apreciação da prova, significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que pré-determinam ou hierarquizam o valor dos diversos meios de apreciação da prova, pressupondo o apelo às “regras de experiência” que funcionam como argumentos que ajudam a explicar o caso particular com base no que é “normal” acontecer.
Com o mesmo, consagra-se um modo não estritamente vinculado na apreciação da prova, orientado no sentido da descoberta da verdade processualmente relevante pautado pela razão, pela lógica e pelos ensinamentos que se colhem da experiência comum, e limitado pelas excepções decorrentes da “prova vinculada”, (v.g., caso julgado, prova pericial, documentos autênticos e autenticados), estando sujeita aos princípios estruturantes do processo penal, entre os quais se destaca o da legalidade da prova e o do “in dubio pro reo”.
Enformado por estes limites, o julgador perante o qual a prova é produzida – e que se encontra em posição privilegiada para dela colher todos os elementos relevantes para a sua apreciação crítica – dispõe de ampla liberdade para eleger os meios de que se serve para formar a sua convicção e, de acordo com ela, determinar os factos que considera provados e não provados.
E, por ser assim, nada impede que dê prevalência a um determinado conjunto de provas em detrimento de outras, às quais não reconheça, nomeadamente, suporte de credibilidade.
O acto de julgar é do Tribunal, e tal acto tem a sua essência na operação intelectual da formação da convicção.
Tal operação não é pura e simplesmente lógico-dedutiva, mas, nos próprios termos da lei, parte de dados objectivos para uma formação lógico-intuitiva.
Como ensina Figueiredo Dias, (in “Lições de Direito Processual Penal”, pág. 135 e ss.) na formação da convicção haverá que ter em conta o seguinte:
- a recolha de elementos – dados objectivos – sobre a existência ou inexistência dos factos e situações que relevam para a sentença, dá-se com a produção da prova em audiência;
- sobre esses dados recai a apreciação do Tribunal que é livre, mas não arbitrária, porque motivada e controlável, condicionada pelo princípio da persecução da verdade material;
- a liberdade da convicção, aproxima-se da intimidade, no sentido de que o conhecimento ou apreensão dos factos e dos acontecimentos não é absoluto, mas tem como primeira limitação a capacidade do conhecimento humano, e portanto, como a lei faz reflectir, segundo as regras da experiência humana;
- assim, a convicção assenta na verdade prático-jurídica, mas pessoal, porque assume papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis- como a intuição.
Esta operação intelectual não é uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis).
Para a operação intelectual contribuem regras, impostas por lei, como sejam as da experiência, a percepção da personalidade do depoente (impondo-se por tal a imediação e a oralidade), a da dúvida inultrapassável, (conduzindo ao princípio in dubio pro reo).
A lei impõe princípios instrumentais e princípios estruturais para formar a convicção. O princípio da oralidade, com os seus corolários da imediação e publicidade da audiência, é instrumental relativamente ao modo de assunção das provas, mas com estreita ligação com o dever de investigação da verdade jurídico-prática e com o da liberdade de convicção; com efeito, só a partir da oralidade e imediação pode o juiz perceber os dados não objectiváveis atinentes com a valoração da prova.
A oralidade da audiência, (que não significa que não se passem a escrito os autos, mas que os intervenientes estejam fisicamente perante o Tribunal), permite ao Tribunal aperceber-se dos traços do depoimento, denunciadores da isenção, imparcialidade e certeza que se revelam, v.g., por gestos, comoções e emoções, da voz.
A imediação que vem definida como a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de tal modo que, em conjugação com a oralidade, se obtenha uma percepção própria dos dados que haverão de ser a base da decisão.
É pela imediação, também chamado de princípio subjectivo, que se vincula o juiz à percepção à utilização à valoração e credibilidade da prova.
Não basta uma “dúvida pessoal” ou uma mera “possibilidade ou probabilidade” para se poder dizer que incorreu o Tribunal no vício de erro notório na apreciação da prova; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 21.09.2017, Proc. n.° 837/2017, de 07.12.2017, Proc. n.° 877/2017 e de 04.04.2018, Proc. n.° 151/2018).
Com efeito, importa ter em conta que “Quando a atribuição de credibilidade ou falta de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear em opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção não tem uma justificação lógica e é inadmissível face às regras da experiência comum”; (cfr., o Ac. da Rel. de Coimbra de 13.09.2017, Proc. n.° 390/14).
Aqui chegados, julga-se pertinente consignar o que segue no intuito de melhor evidenciar o imputado “erro notório”.
Com efeito, verifica-se que o Colectivo a quo deu, simultaneamente, como “provado” e “não provado”, que “arguido, (ora recorrido), A e um indivíduo desconhecido vieram ajudar”, (cfr., “facto provado n.° 4” e o 1° § dos “factos não provados”), o mesmo sucendo quanto ao facto de o mesmo arguido recorrido se ter encarregue da “vigia”, (cfr., “facto provado n.° 5” e o 2° § dos “factos não provados”).
E, para além de se notar que o “facto provado n.° 5” tem como elemento probatório – e o próprio Tribunal o afirma – o “relatório de visionamento do vídeo que gravou as respectivas imagens”, apresentam-se-nos totalmente acertadas as considerações pelo Ministério Público tecidas nos seu douto Parecer, em especial, onde sublinha que: “dada a forma como se estrutura, na prática, a acção de usura para jogo em Macau, aliás descrita na acusação, afigura-se que o crime não se consuma por inteiro e imediatamente com a mera combinação do empréstimo e com a sua concessão inicial. É que o mutuante acompanha o mutuário, ou providencia para que alguém o acompanhe, a fim de ir cobrando os juros “limpos” do empréstimo, à medida que o mutuário vai jogando, e como forma de assegurar que este não foge com o produto do empréstimo”, e que, “De acordo com a prova supra aludida, esta foi a tarefa atribuída ao arguido A e que ele assumiu voluntariamente e com conhecimento do que estava em causa”, afirmando, de seguida, que “a conclusão que se impõe é a de que ele tomou parte directa e consciente na execução do ilícito, com a missão específica de vigiar o ofendido e não o deixar fugir com as fichas”.
De facto, sendo este o “modus operandi” da prática do crime de “usura” em Macau, e sendo o que se passou nos presentes autos (em relação aos outros arguidos), sentido não faz a decisão proferida.
Por fim, importa sublinhar que inadequada porque ilógica se apresenta também a já referida matéria de facto “não provada” em confronto com a decisão de se ter dado, (simultaneamente), como “provado” que “o telemóvel apreendido ao arguido A fora utilizado como instrumento de comunicação para a prática da actividade do empréstimo ilícito”, o que, em nossa opinião, constitui, igualmente, o apontado “erro” – e “contradição” – com o que se decidiu, a impor – porque por esta Instância insanável – o reenvio dos autos para novo julgamento sobre a matéria referente a este (3°) arguido A.
Decisão
4. Nos termos e fundamentos que se deixaram expostos, acordam conceder provimento ao recurso, decretando-se o reenvio dos presentes autos para novo julgamento nos termos do art. 418° do C.P.P.M..
Custas pelo arguido recorrido, com 4 UCs de taxa de justiça.
Registe e notifique.
Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.
Macau, aos 07 de Junho de 2018
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José Maria Dias Azedo
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Chan Kuong Seng
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Tam Hio Wa
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Proc. 376/2018 Pág. 19