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Processo nº 446/2017
(Autos de recurso cível)

Data: 7/Junho/2018

Assuntos: Parques de estacionamento
      Partes comuns do prédio


SUMÁRIO
Os parques de estacionamento, por serem partes comuns de prédio, não são passíveis de apropriação individual, designadamente por meio de aquisição prescritiva, se e enquanto se mantiver inalterada aquela natureza.



O Relator,

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Tong Hio Fong

Processo nº 446/2017
(Autos de recurso cível)

Data: 7/Junho/2018

Recorrente:
- A (opoente)

Recorrido:
- B (Autor)

Objecto do recurso: Despacho que indeferiu liminarmente a oposição espontânea

Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:

I) RELATÓRIO
Inconformado com o despacho que indeferiu liminarmente o pedido de oposição espontânea por si formulado, interpôs o oponente A, com sinais nos autos, recurso jurisdicional para este TSI, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
“1…
      2…
      3…
      4. Nos presentes autos, veio o ora Recorrente pedir que seja declarada, a seu favor, a aquisição, por usucapião, como fracção autónoma, do lugar de estacionamento n.º 75, do 2º andar do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 2XXX8, e que, em consequência, se declare, por efeito da mesma usucapião, a formação a partir da actual fracção autónoma “33K” de duas fracções autónomas.
5. O Senhor Juiz a quo indeferiu a pretensão do ora Recorrente por entender que a mesma “está em manifesta revelia do regime estatuído e disciplinador da propriedade horizontal”, porquanto a alteração do título constitutivo só pode ter lugar nos casos em que o próprio título o permita ou a assembleia de condóminos se pronuncie e aprove as alterações sem qualquer oposição.
6. Em resumo, entende o Senhor Juiz a quo que “o direito de propriedade exclusiva só se pode exercer sobre fracções autónomas, perfeitamente individualizadas no título constitutivo e não sobre parte delas, logo, estando o lugar de estacionamento em causa inserido fisicamente no espaço que é pertença também do A., não pode a R. vir opor enquanto a situação de indivisibilidade se mantiver, o que só poderia vir a acontecer se entretanto se tivesse tornado possível a alteração do título constitutivo da propriedade horizontal”.
7. A propriedade horizontal traduz-se num direito complexo que relaciona o direito de propriedade sobre a fracção autónoma e a compropriedade (em rigor, comunhão na propriedade) das partes comuns.
8. Quanto às partes comuns, umas são necessariamente comuns e outras presumem-se comuns, sendo exemplo desta última modalidade os lugares de estacionamento (cf. artigos 1315º, n.ºs 2 e 3, e 1324º, n.º 1, alínea i) do Código Civil).
9. O lugar de estacionamento objecto do presente litígio está afectado ao uso exclusivo da fracção autónoma designada por “33K”, pelo que está juridicamente inserido no espaço que é pertença do Autor.
10. Não concorda o Recorrente com a decisão recorrida quando aí se diz que a autonomização do lugar de estacionamento, com a consequente criação de mais uma fracção autónoma, estaria sujeita ao regime previsto no artigo 1321º do Código Civil.
11. É que sobre a matéria rege o n.º 3 do artigo 5º do Decreto-Lei n.º 39/99/M, de 3 de Agosto, o qual dispõe que “os lugares de estacionamento afectados a fracções autónomas poderão ser autonomizados na memória descritiva pelos respectivos proprietários, mediante acordo dos condóminos com direito a lugar de estacionamento, desde que preencham os requisitos constantes do regime da propriedade horizontal estabelecido no novo Código”.
12. Contudo, tal norma não tem aplicação no caso concreto uma vez que o escopo da norma circunscreve-se a negócio jurídico promovido pelo proprietário do lugar de estacionamento afectado a fracção autónoma, algo que é substancialmente distinto da invocação da usucapião pelo possuidor.
13. O mesmo se pode dizer a propósito de lugar de estacionamento que é parte comum de um edifício uma vez que o escopo do artigo 1321º do Código Civil circunscreve-se à modificação do título constitutivo por iniciativa do proprietário e não por iniciativa do possuidor. Do que se trata é de impedir que a posição relativa de cada condómino seja alterada por via negocial sem o seu consentimento; mas tão só por via negocial, não por qualquer outra forma de aquisição, designadamente por usucapião!
14. Como refere Sandra Passinhas, o regime da propriedade “não obsta a que um condómino adquira a propriedade sobre uma coisa comum através de usucapião” (cf. A Assembleia de Condóminos e o Administrador na Propriedade Horizontal, ap. 153).
15. Se não fosse possível a usucapião de partes comuns do edifício ou uma parte de fracção autónoma, desde que autonomizáveis, como acontece com os lugares de estacionamento, como justificar, por exemplo, a possibilidade de expropriações parciais de edifícios constituídos em regime de propriedade horizontal? E como justificar também a possibilidade do parcelamento de terrenos, consequência da aquisição por usucapião de parcela de terreno? E na constituição da propriedade horizontal por efeito da aquisição de uma fracção por usucapião? Não se está nestes casos perante situações que provocam alterações urbanísticas de relevo? Por acaso são legalmente impossíveis? Tanto assim é que o n.º 3 do artigo 1322º permite a divisão de fracções contíguas sem que haja sequer a necessidade de autorização dos restantes condóminos, pese embora, como é óbvio, essa mudança tenha implicações na estrutura e no uso do edifício.
16. E no mesmo sentido, Manuel Henrique Mesquita defende categoricamente a aquisição por usucapião de áreas comuns do edifício e de partes de uma fracção autónoma (cf. A propriedade horizontal no Código Civil português, RDES, Ano XXIII, n.ºs 1, 2, 3 e 4, Jan/Dec, 1976, pp. 107-108, nota 73 e p. 118).
17. E no sumário do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27.01.1994 (JTRL00016089) pode ler: “O disposto no n.º 1 artigo 1419º do CC (similar ao nosso 1321º, n.º 1) não impede que um condómino adquira por usucapião parte de uma fracção autónoma ou de uma coisa comum, ainda que sem o acordo de todos os condóminos. Tal aquisição, porém, impõe a alteração do título constitutivo da propriedade horizontal”.
18. Por tudo o que fica dito, conclui-se que nada obsta a que a autonomização do lugar de estacionamento objecto dos autos se dê por força da sua aquisição por usucapião.”
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Notificado das alegações, o Autor não apresentou resposta.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
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II) FUNDAMENTAÇÃO
O despacho recorrido tem o seguinte teor:
“Do pedido reconvencional da 2ª Ré e da oposição de A
Ora, a 2ª Ré pretende com o pedido reconvencional, fazer valer o direito por usucapião sobre uma parte comum em que através da memória descritiva foi atribuído o direito a uso a determinada fracção autónoma.
E o oponente A na sequência do pedido reconvencional supra, vem deduzir a oposição espontânea para também fazer valer o direito por usucapião do parque em causa e a formação de uma nova fracção autónoma em que incide o parque em causa.
Salvo o devido respeito, parece-nos que o pretendido da 2ª Ré e do oponente A que por via da aquisição originária – a usucapião – para reconhecer a propriedade de uma significativa parte de uma dada fracção autónoma do prédio “XX Tower”, para o qual pretendendo também alterar o título constitutivo da propriedade horizontal respectiva, está em manifesta revelia do regime estatuído e disciplinador da propriedade horizontal.
Em sistema comparado, o acórdão do STJ de Portugal de 20-10-2011 diz que a propriedade horizontal é uma “figura jurídica nova, de um direito real novo que, embora moldado sobre os direitos reais à custa dos quais se formou, é mais do que a sua justaposição, reunindo uma teia de relações num complexo incindível de propriedade singular que recai sobre uma parte determinada de um prédio urbano e de compropriedade sobre outras partes dele, essenciais tanto à sua estrutura como à sua utilização funcional, quer dizer, ao exercício do domínio pleno sobre ele” – cfr. OLIVEIRA ASCENSÃO, A Tipicidade dos Direitos Reais, 1965, p. 195, CARVALHO FERNANDES, Lições de Direitos Reais, 2009, p. 335, MANUEL H. MESQUITA, A propriedade horizontal…, Separata da RDES, 53.
Salienta ainda MANUEL H. MESQUITA que “o que há de específico no direito de propriedade sobre as fracções autónomas é apenas o facto de sobre tal direito impenderem restrições que não derivam do regime normal do domínio mas que a lei estabelece ou permite em virtude de o objecto do direito de cada condómino se integrar num edifício de estrutura unitária, onde existem outras fracções pertencentes a proprietários diversos”.
Assim, denota que num prédio constituído em propriedade horizontal a posição jurídica dos respectivos titulares não é a mesma que a dos proprietários de prédios a ela não sujeitos, pois existem partes próprias e partes comuns, e, mesmo nas partes próprias, existem limitações sérias ao poder de alterar o seu conteúdo e objecto. Cfr. OLIVEIRA ASCENSÃO, in Direitos Reais, 1971, p. 498: a propriedade horizontal é caracterizada como um novo direito real, de estrutura composta e complexa, que não corresponde exactamente à junção de propriedade plena sobre as fracções próprias com o regime da compropriedade das partes comuns, havendo sérias limitações aos poderes e deveres numa noutra situação, desde logo a sujeição a um regime próprio de relações, poderes e deveres.
No direito real de propriedade horizontal a questão do domínio encontra-se repartida em vários sujeitos, os condóminos, entrelaçando-se os interesses de uns, de forma inseparável, com os interesses dos demais condóminos, através de regras próprias, sendo de destacar que não está na disponibilidade de um ou de vários deles, conseguir(em), só por si, a alteração do título de constituição desse tipo de propriedade.
Dispõe o artigo 1321º do CCM que “o título constitutivo da propriedade horizontal pode ser modificado mediante deliberação tomada pela unanimidade dos condóminos de todo o condomínio…”. Daí que é importante realçar que para a alteração do título de constituição, é indispensável que o mesmo título de constituição o permita ou a assembleia de condóminos se pronuncie e aprove as alterações sem qualquer oposição.
Note-se que, no caso sub judice, não estamos perante uma situação de constituição da propriedade horizontal por via de decisão judicial e com suporte na usucapião – permitida nos termos do artigo 1317º do CCM, incluindo quanto a lugares de estacionamento (artigo 1315º, n.º 2 do CCM) – mas, ao invés, uma desejada alteração do título constitutivo.
Por outro lado, para a garantia de todos os cidadãos de que não ficam postos em causa interesses próprios protegidos (e.g. o direito à habitação, de saúde, higiene e de bem estar e o da defesa do ambiente) ou até mesmo outros interesses mais vastos da comunidade e que se encontram em ascensão (e.g., o urbanismo, o planeamento e o desenvolvimento da comunidade), exige-se que quer a constituição da propriedade horizontal quer as suas eventuais e posteriores alterações, sejam objecto de sindicalização e licenciamento pela autoridade competente, por forma a garantir a sua conformidade às leis e regulamentos em vigor.
In casu, a alegada detenção pela 2ª Ré dos lugares de estacionamento consubstanciando actos de posse porque assentes na prática reiterada, com publicidade de actos materiais de gozo e fruição do referido espaço, como sendo um direito próprios, ao longo do tempo, portanto com relevo para a usucapião, não tem, no entanto, vocação para que à luz dela se constituam outras fracções para além das que como tal estão identificados no título constitutivo.
É que, no âmbito do direito a reconhecer não pode extravasar o respectivo suporte sobre o qual a posse é exercida.
Assim, no domínio da propriedade horizontal, a usucapião, como fonte aquisitiva de direitos, só pode actuar nos estritos limites em que a propriedade horizontal se enquadra (art. 1187º-a) do CCM. e nunca extravasa-la. Cfr. DGSI, acórdão do STJ de 13/12/2007, Processo n.º 07A3023).
Nestes termos, a usucapião só opera a aquisição do direito real por forma correspondente ao direito sobre o qual se exerce a posse.
No caso, o direito que se alega ter exercido é o da posse sobre uma parte física de uma fracção autónoma de que o A. também é titular, em prédio submetido ao regime de propriedade horizontal. Cfr. OLIVEIRA ASCENSÃO, in Direitos Reais, 1971, p. 336, “a usucapião é uma das formas de aquisição de direitos reais, pelo que, como a lei admite, pode operar, efectivamente, no âmbito da aquisição da propriedade horizontal, através da posse e do factor tempo. No entanto, o exercício dessa posse teria de ser em consonância com a estrutura do próprio direito, ao mesmo tempo complexo e composto, … pelo que a usucapião só pode operar na aquisição da fracção autónoma ou sua compropriedade, como um todo indiviso dentro da fracção autónoma, e nunca apenas actuando em parte de fracção autónoma (ob cit. P. 498).
Ora, se na propriedade horizontal o direito de propriedade exclusiva só se pode exercer sobre fracções autónomas, perfeitamente individualizadas no título constitutivo e não sobre parte delas, logo, estando o lugar de estacionamento em causa inserida fisicamente no espaço que é pertença também do A., não pode a R. vir opor enquanto a situação de indivisibilidade se mantiver, o que só poderia vir a acontecer se entretanto se tivesse tornado possível a alteração do título constitutivo da propriedade horizontal. Cfr. ARAGÃO SEIA, in Propriedade Horizontal, p. 55 e ss; também Acs. Do STJ in www.dgsi.pt, de 23/09/2003, proc. n.º 03ª1835 (Nuno Cameira) e de 03/10/2006, proc. n.º 06ª 2497 (Sebastião Póvoas): “… esse objectivo é legalmente impossível sem a alteração do título constitutivo da propriedade horizontal, área em que o Tribunal não pode actuar porque se exige acordo prévio de todos os condóminos.”
Destarte, não pode operar aqui a usucapião para adquirir a propriedade sobre aquela parte do lugar de estacionamento de um todo mais vasto que compõe dada fracção. Cfr. CARVALHO FERNANDES, in Lições de Direitos Reais p. 313 “relativamente a usucapião há uma particularidade a assinalar. Para além de se recordar que, naturalmente, a correspondente posse há-de traduzir-se num comportamento que seja equivalente ao que assumiria um condómino, em relação a uma certa unidade de um prédio urbano, vale também para a usucapião a exigência de requisitos legalmente impostos para a constituição da propriedade horizontal. Se eles se não verificam, tal como sustentámos noutro local, só pode ter-se como adquirida uma situação de compropriedade próprio sensu.”
Pelo exposto:
- indefiro liminarmente o pedido reconvencional da 2ª Ré e consequentemente devem ser considerados como “NÃO ESCRITA” os artigos 8º a 71º da Contestação a fls. 183 a 193; e
- indefiro liminarmente a oposição espontânea deduzida por A.
Custas pela 2ª R. e pelo oponente A, fixando-se, cada um, em 2UC.”
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Analisada a douta sentença de primeira instância que antecede, louvamos a acertada decisão com a qual concordamos e que nela foi dada a melhor solução ao caso, pelo que, considerando a fundamentação de direito constante da sentença recorrida, cuja explanação sufragamos inteiramente, remetemos para os seus precisos termos ao abrigo do disposto o artigo 631º, nº 5 do CPC.
Aliás, este TSI já teve oportunidade de se pronunciar sobre a questão em dois arestos anteriores, a saber, no âmbito dos Processos n.º 780/2016 e 1047/2017, respectivamente, nos termos dos quais se decidiu que os lugares de estacionamento, por serem partes comuns de prédio, não são passíveis de apropriação individual, designadamente por meio da aquisição prescritiva, se e enquanto se mantiver inalterada aquela natureza.
Nestes termos, sem necessidade de delongas considerações, alinhando pelo entendimento expresso nos referidos Acórdãos, há-de negar provimento ao recurso.
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III) DECISÃO
Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso interposto pelo recorrente A, confirmando a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente.
Registe e notifique.
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RAEM, 7 de Junho de 2018
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Tong Hio Fong
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Lai Kin Hong
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Fong Man Chong




Recurso Cível 446/2017 Página 11