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Processo nº 337/2018 Data: 17.05.2018
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Liberdade condicional.
Pressupostos.


SUMÁRIO

1. A liberdade condicional não é uma “medida de clemência”, constituindo uma medida que faz parte do normal desenvolver da execução da pena de prisão, manifestando-se como uma forma de individualização da pena no fito de ressocialização, pois que serve um objectivo bem definido: o de criar um período de transição entre a prisão e a liberdade, durante o qual o delinquente possa, equilibradamente, recobrar o sentido de orientação social fatalmente enfraquecido por efeito da reclusão.

2. É de conceder caso a caso, dependendo da análise da personalidade do recluso e de um juízo de prognose fortemente indiciador de que o mesmo vai reinserir-se na sociedade e ter uma vida em sintonia com as regras de convivência normal, devendo também constituir matéria de ponderação, a defesa da ordem jurídica e da paz social.

O relator,

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José Maria Dias Azedo


Processo nº 337/2018
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. A, com os restantes sinais dos autos e ora preso no Estabelecimento Prisional de Coloane (E.P.C.), vem recorrer da decisão que lhe negou a concessão de liberdade condicional, motivando para, a final, concluir, imputando à decisão recorrida o vício de violação do disposto no art. 56° do C.P.M.; (cfr., fls. 66 a 71 que como as que adiante se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os legais efeitos).

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Em resposta, pugna o Exmo. Magistrado do Ministério Público no sentido da improcedência do recurso; (cfr., fls. 73 a 74).

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Em sede de vista, juntou o Exmo. Representante do Ministério Público o seguinte douto Parecer:

“Inconformado com o despacho de 9 de Março de 2018, que lhe recusou a liberdade condicional com o fundamento de que não estavam verificados os requisitos para o efeito exigidos pelo artigo 56.°, n.° 1, alíneas a) e b), do Código Penal, dele recorre o recluso A.
Sustenta, na sua motivação de recurso, que todos os requisitos necessários para a concessão da liberdade condicional estavam preenchidos, pelo que, ao denegar-lhe a pretendida libertação condicional, a decisão recorrida teria incorrido em erro de direito na aplicação do artigo 56.°, n.° 1, do Código Penal.
Na contraminuta de recurso apresentada pelo Ministério Público preconiza-se a improcedência do recurso e a manutenção do julgado, explicando-se com clareza as razões da tal posição.
Também nos parece que a decisão recorrida não merece reparo que a possa pôr em xeque.
Estão em discussão os requisitos materiais exigidos pelo artigo 56.° do Código Penal.
É sabido que a liberdade condicional é de aplicação casuística, dependendo a sua concessão do juízo de prognose indiciador de que o recluso vai reinserir-se na sociedade e ter uma vida em consonância com as regras de convivência, bem como da ponderação da compatibilidade entre a libertação antecipada e a defesa da ordem jurídica e da paz social. Trata-se, no fundo, de verificar se estão satisfeitas as exigências de prevenção especial e de prevenção geral preconizadas no artigo 56.°, n.° 1, alíneas a) e b), do Código Penal.
No caso em apreço, tal como a decisão recorrida ponderou, não obstante a evolução favorável que é possível vislumbrar no trajecto penitenciário do recorrente, persistem dúvidas sobre a sua preparação para, no imediato, conduzir a sua vida de modo socialmente responsável. O recorrente adoptou comportamento prisional adequado, sem registo de transgressões, é certo, o que é normal e é aquilo que se espera de um recluso, requereu a frequência de formação profissional e participou em actividades ocupacionais. Mas importa ter presente que uma recente condenação anterior em pena efectiva de prisão, por crime idêntico, não logrou afastá-lo do trilho da delinquência, tendo-se também alheado das responsabilidades inerentes à reparação dos encargos a que a sua conduta deu causa (custas), circunstâncias que não podem deixar de ser analisadas e ponderadas enquanto indiciadores da falta de arrependimento sincero que deve nortear a expiação da pena. Digamos que, neste contexto, ainda não é possível arriscar um juízo de prognose favorável sobre a sua reinserção na sociedade em conformidade com as regras de convivência, corno acabou por concluir o despacho recorrido.
Por outro lado, e não menos importante, subsiste a questão da prevenção geral. Prevenção geral positiva ou de integração, enquanto exigência de tutela do ordenamento jurídico, que se manifesta primordialmente no momento chave da aplicação da pena, mas que não pode menosprezar-se na avaliação das condições de concessão da liberdade condicional – cf. Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, parágrafos 283 e 852.
Também deste ponto de vista é possível acompanhar as considerações aduzidas no despacho recorrido para julgar não satisfeito o requisito da prevenção geral. Face à gravidade e impacto social dos crimes relativos ao tráfico ilícito de droga, que, como se sabe, são objecto de uma especialmente acentuada reprovação ético-jurídica da comunidade, particularmente quando estão em causa estrangeiros que se deslocam à RAEM para aqui introduzirem ilicitamente droga, como sucedeu, a libertação do recorrente, neste momento do cumprimento da pena, pode acarretar desconfiança quanto à efectiva vigência e eficácia das normas violadas e colocar em causa as finalidades de prevenção positiva que não podem deixar de ser salvaguardadas na concessão da liberdade condicional, as quais em Macau são particularmente prementes.
Somos, assim, a concluir que a decisão recorrida efectuou uma correcta ponderação dos aspectos a considerar na concessão da liberdade condicional, em consonância com os comandos do artigo 56.° do Código Penal, pelo que, na improcedência da argumentação do recorrente, deverá ser negado provimento ao recurso”; (cfr., fls. 120 a 121-v).

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Corridos os vistos legais dos Mmos Juízes-Adjuntos, e nada obstando, vieram os autos à conferência.

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Passa-se a decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Flui dos autos a factualidade seguinte (com relevo para a decisão a proferir):

– por Acórdão do T.J.B. de 20.05.2016, foi, A, ora recorrente, condenado pela prática como autor e em concurso real de 1 crime de “tráfico ilícito de estupefacientes”, na pena de 3 anos e 9 meses de prisão;
– o mesmo recorrente, deu entrada no E.P.C. em 11.09.2015, e em 10.03.2018, cumpriu dois terços da referida pena, vindo a expiar totalmente a mesma pena em 10.06.2019;
– se lhe vier a ser concedida a liberdade condicional, vai regressar a Hong Kong, de onde é natural, vivendo com a sua família.

Do direito

3. Insurge-se o ora recorrente contra a decisão que lhe negou a concessão de liberdade condicional, afirmando, em síntese, que se devia considerar que reunidos estão todos os pressupostos do art. 56° do C.P.M. para que tal libertação antecipada lhe fosse concedida.

Vejamos.

— Preceitua o citado art. 56° do C.P.M. (que regula os “Pressupostos e duração” da liberdade condicional) que:

“1. O tribunal coloca o condenado a pena de prisão em liberdade condicional quando se encontrarem cumpridos dois terços da pena e no mínimo 6 meses, se:
a) For fundadamente de esperar, atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da prisão, que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes; e
b) A libertação se revelar compatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social.
2. A liberdade condicional tem duração igual ao tempo de prisão que falte cumprir, mas nunca superior a 5 anos.
3. A aplicação da liberdade condicional depende do consentimento do condenado”; (sub. nosso).

Constituem, assim, “pressupostos objectivos” ou “formais”, a condenação em pena de prisão superior a seis (6) meses e o cumprimento de dois terços da pena, num mínimo de (também) seis (6) meses; (cfr. n.° 1).

“In casu”, atenta a pena que ao recorrente foi fixada, e visto que se encontra ininterruptamente preso desde 11.09.2015, expiados estão já dois terços de tal pena, pelo que preenchidos estão os ditos pressupostos formais.

Todavia, e como é sabido, tal “circunstancialismo” não basta, já que não sendo a liberdade condicional uma medida de concessão automática, impõe-se para a sua concessão, a verificação cumulativa de outros pressupostos de natureza “material”: os previstos nas alíneas a) e b) do n.° 1 do referido art. 56°.

Com efeito, importa ter em conta que a liberdade condicional não é uma “medida de clemência”, constituindo uma medida que faz parte do normal desenvolver da execução da pena de prisão, manifestando-se como uma forma de individualização da pena no fito de ressocialização, pois que serve um objectivo bem definido: o de criar um período de transição entre a prisão e a liberdade, durante o qual o delinquente possa, equilibradamente, recobrar o sentido de orientação social fatalmente enfraquecido por efeito da reclusão; (cfr., v.g., J. L. Morais Rocha e A. C. Sá Gomes in “Entre a Reclusão e a Liberdade – Estudos Penitenciários”, Vol. I, em concreto, “Algumas notas sobre o direito penitenciário”, IV cap., pág. 41 e segs.).

Na esteira do repetidamente decidido nesta Instância, a liberdade condicional “é de conceder caso a caso, dependendo da análise da personalidade do recluso e de um juízo de prognose fortemente indiciador de que o mesmo vai reinserir-se na sociedade e ter uma vida em sintonia com as regras de convivência normal, devendo também constituir óbviamente matéria de ponderação, a defesa da ordem jurídica e da paz social”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 25.01.2018, Proc. n.° 14/2018, de 22.03.2018, Proc. n.° 205/2018 e de 19.04.2018, Proc. n.° 272/2018, podendo-se também sobre o tema ver o Ac. da Rel. de Coimbra de 24.01.2018, Proc. n.° 540/16).

Assim, detenhamo-nos na apreciação de tais pressupostos de natureza material.

Ponderando na factualidade atrás retratada, poder-se-á dizer que é fundadamente de esperar, atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da prisão, que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes, mostrando-se a pretendida liberdade condicional compatível com a defesa da ordem jurídica e paz social?

Ponderando nas circunstâncias do cometimento do crime, e atento o que se deixou adiantado, temos para nós que de sentido negativo terá de ser a resposta.

De facto, (e não se olvidando a relativa proximidade do términus da pena), inviável se nos mostra o necessário juízo de prognose favorável, pois que o ora recorrente, não é primário, tendo antes sofrido uma outra condenação em pena de prisão em Hong Kong (pelo crime de “tráfico ilícito de estupefacientes”), e volta, novamente, a incorrer na prática do mesmo crime dos autos, revelando, assim, uma personalidade com tendência para a prática de ilícitos, (avessa ao direito), a que importa acautelar.

Dest’arte, afigura-se-nos evidente que, não existem indícios seguros para se formular o necessário “juízo de prognose favorável”.

Por sua vez, em causa está uma conduta que pelo recorrente vinha sendo desenvolvida “há meses”, adquirindo estupefaciente, (Cocaína), dividindo-a posteriormente em doses individuais para a sua venda.

Ora, como temos vindo a consignar, em sede de uma decisão como a dos presentes autos, importa também acautelar a repercussão do crime cometido na sociedade, o que equivale a dizer que não podem ser postergadas as exigências de tutela do ordenamento jurídico, (cfr., F. Dias in “Dto Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, pág. 528 e segs.), havendo igualmente que salvaguardar a confiança e as expectativas da comunidade no que toca à validade da norma violada através do “restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada”, impondo-se, também por isso, uma reafirmação social mais intensa da validade das normas jurídicas violadas; (cfr., F. Dias in “Temas Básicos da Doutrina Penal”, pág. 106 e o Ac. da Rel. do Porto de 10.01.2018, Proc. n.° 417/15).

E, como no recente Ac. da Rel. do Porto de 18.04.2018, (Proc. n.° 678/14), se ponderou:

“A gravidade do crime é um elemento de ponderação relevante para a concessão de liberdade condicional, por razões que têm a ver com os fins de prevenção especial e geral. Actos criminosos mais ilícitos e praticados com maior grau de culpa exigem maiores cuidados na fase de execução da pena para garantir que o seu agente não incorrerá em novo acto criminoso e também para garantir que outras pessoas, através desse exemplo, serão positivamente influenciadas a respeitarem esses bens jurídicos. Quanto mais grave é o crime mais intensa é a necessidade de garantir o êxito das finalidades da prevenção geral e especial, precisamente porque o que está em causa nestes casos é a protecção de bens jurídicos mais valiosos.
As razões de prevenção geral que devem ser ponderadas no momento da decisão de conceder ou não a liberdade condicional têm a ver sobretudo com a preservação da ordem e paz social. A libertação só pode ocorrer num momento em que já se tenham esbatido na sociedade os efeitos negativos do crime e a necessidade da execução da pena. A validade das normas jurídicas, essencial para o sistema de protecção dos valores comunitários garantidos pela tutela penal, assenta numa relação de confiança. A imperatividade da norma é garantida pela confiança social na efectividade da consequência prevista para a sua violação”.

No caso, atentas as circunstâncias da prática do crime, e a parcela da pena que ainda falta cumprir, cremos que, por ora, não se mostra de considerar que a libertação do ora recorrente se apresenta compatível com as assinaladas razões de prevenção geral.

Assim, em face das expostas considerações, e sendo que verificados não estão os pressupostos do art. 56°, n.° 1, al. a) e b) do C.P.M., há que decidir em conformidade.

Decisão

4. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam julgar improcedente o recurso.

Pagará o recorrente a taxa de justiça de 4 UCs.

Honorários ao Exmo. Defensor no montante de MOP$1.800,00.

Registe e notifique.

Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos com as baixas e averbamentos necessários.

Macau, aos 17 de Maio de 2018
José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa
Proc. 337/2018 Pág. 16

Proc. 337/2018 Pág. 17