Processo n.º 994/2015 Data do acórdão: 2018-5-3 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– erro notório na apreciação da prova
– art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal
– ausência de registos de saída do arguido de Macau
– prova sobre a presença física do arguido em Macau
– grau de certeza sobre a veracidade do facto
– dúvida razoável
– dúvida desrazoável
– princípio de in dubio pro reo
– livre convicção sobre os factos
– violação das regras da experiência da vida humana
– reenvio do processo para novo julgamento
S U M Á R I O
1. Há erro notório na apreciação da prova como vício aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal, quando se mostra patente que o tribunal tenha violado, aquando da formação da sua convicção sobre os factos, quaisquer regras da experiência da vida humana em normalidade de situações, ou quaisquer normas jurídicas sobre o valor legal da prova, ou ainda quaisquer leges artis a observar no campo de julgamento da matéria de facto.
2. No caso dos autos, na fundamentação da sentença recorrida, vê-se que o tribunal recorrido concluiu que não havia qualquer prova a revelar que o arguido tinha consumido droga em Macau, por o que se via nos registos de entrada e saída de Macau do arguido não dar para afastar de modo absoluto a entrada e saída de Macau por parte do arguido.
3. Para formar a livre convicção sobre a efectiva comprovação do acusado facto de o arguido ter consumido ketamina em Macau antes de ser apanhado numa operação policial, não se exige ao ente julgador um grau de certeza absoluta sobre a ocorrência desse facto acusado, pois basta um grau de certeza sem dúvida razoável sobre a própria certeza.
4. Daí que sempre se compreende que a dúvida de que se fala no princípio de in dubio pro reo é uma dúvida razoável, e nunca uma dúvida desrazoável.
5. Dizer que a ausência de registos de entrada e saída do arguido de Macau num certo período de tempo não afasta de modo absoluto a entrada e saída do arguido de Macau nesse mesmo período é pretender um grau de certeza absoluta sobre a presença física do arguido em Macau nesse período de tempo. Sucede, porém, que esta exigência da certeza absoluta fere manifestamente as regras da experiência da vida humana em normalidade de situações, porque para qualquer homem médio colocado na situação concreta dos autos, perante a ausência de registos de saída do arguido de Macau nesse período de tempo, e sem outros elementos probatórios concretos a revelar a saída efectiva do arguido de Macau no mesmo período, é razoável acreditar que o arguido se encontrou em Macau durante esse período.
6. Assim sendo, por ter a fundamentação probatória invocada pelo tribunal recorrido violado as regras da experiência da vida humana em normalidade de situações nos termos acima analisados, é de reenviar todo o objecto do processo para novo julgamento por um tribunal colectivo, nos termos ditados pelos art.os 418.o, n.os 1 e 2, do Código de Processo Penal.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 994/2015
(Recurso em processo penal)
Recorrente: Ministério Público
Recorrido (arguido): A
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA
REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por sentença proferida a fls. 181 a 183 do ora subjacente Processo Comum Singular n.o CR3-15-0302-PCS do 3.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base (TJB), foi absolvido o arguido A da acusada prática, em autoria material, de um crime consumado de consumo ilícito de estupefaciente, p. e p. pelo art.o 14.o da Lei n.o 17/2009.
Inconformado, veio a Digna Delegada do Procurador recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), tendo rogado, na sua motivação de fls. 189 a 191v dos presentes autos correspondentes, o reenvio do processo para novo julgamento com base na verificação do vício de erro notório na apreciação da prova do art.o 400.o, n.o 2, alínea a), do Código de Processo Penal (CPP), por a livre convicção do Tribunal autor da sentença recorrida ter violado as regras da experiência da vida humana.
Ao recurso, não respondeu o arguido recorrido.
Subido o recurso, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer a fl. 202 a 202v, no sentido de provimento do recurso.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Com pertinência à decisão, é de coligir dos autos os seguintes elementos:
1. A sentença ora recorrida encontra-se proferida a fls. 181 a 183 dos autos, cujo teor integral se dá por aqui inteiramente reproduzido.
2. No texto dessa sentença, a M.ma Juíza deu material e inclusivamente por provado que:
– em 28 de Maio de 2014, o pessoal policial de segurança pública, em operação policial, mandou parar um táxi que transportou no interior o arguido e um outro passageiro;
– como o arguido e esse outro passageiro apresentavam ar não lúcido, e ambos com pó branco em buraco do respectivo nariz, o pessoal policial, mediante o consentimento prestado por esses dois indivíduos, retirou espécimes de pó branco em causa;
– feito o exame laboratorial desses espécimes, comprovou-se que se tratava de vestígios de ketamina;
– o arguido recusou fazer exame de detecção de estupefaciente; enquanto segundo o resultado do mesmo tipo de exame feito ao outro passageiro, não se detectou a existência de estupefaciente;
– desde o dia 6 de Maio de 2014 em que entrou o arguido em Macau pelo Posto Fronteiriço da Porta do Cerco e até ao dia de ocorrência do incidente em causa, não houve registos de saída do arguido de Macau.
3. No mesmo texto decisório ora recorrido, a M.ma Juíza deu por não provado o seguinte:
– antes de ser apanhado, o arguido consumiu ketamina dentro de um estabelecimento de karaoke, e o pó branco em buraco do seu nariz era vestígio desse consumo;
– o arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, com intenção de praticar o acto referido;
– o arguido sabia da natureza da droga acima referida, e da ilegalidade e punibilidade da sua conduta.
4. Na fundamentação probatória da sua decisão sobre a matéria de facto, a M.ma Juíza afirmou que nos autos não há qualquer elemento de prova a revelar que o arguido consumiu droga em Macau, e o revelado nos registos de entrada e saída de Macau não pode afastar de modo absoluto a entrada e saída de Macau por parte do arguido.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cabe notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver apenas as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Sempre se diz que há erro notório na apreciação da prova como vício aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do CPP, quando se mostra patente que o tribunal tenha violado, aquando da formação da sua convicção sobre os factos, quaisquer regras da experiência da vida humana em normalidade de situações, ou quaisquer normas jurídicas sobre o valor legal da prova, ou ainda quaisquer leges artis a observar no campo de julgamento da matéria de facto.
No caso dos autos, da leitura da fundamentação da sentença recorrida, vê-se que o Tribunal recorrido concluiu que não havia qualquer prova nos autos a revelar que o arguido tinha consumido droga em Macau, já que no entender do Tribunal recorrido o que se via nos registos de entrada e saída de Macau do arguido não dava para afastar de modo absoluto a entrada e saída de Macau por parte do arguido.
Pois bem, desde já, quanto à questão do conteúdo dos registos de entrada e saída de Macau:
Para formar a livre convicção sobre a efectiva comprovação do acusado facto de o arguido ter consumido ketamina num estabelecimento de karaoke em Macau antes de ser apanhado pela Polícia de Segurança Pública na operação de 28 de Maio de 2015, não se exige ao ente julgador um grau de certeza absoluta sobre a ocorrência desse facto acusado, pois basta um grau de certeza sem dúvida razoável sobre a própria certeza. Daí que sempre se compreende que a dúvida de que se fala no princípio de in dubio pro reo é uma dúvida razoável, e nunca uma dúvida desrazoável.
Dizer que a ausência de registos de entrada e saída do arguido de Macau no período de 6 de Maio de 2014 a 28 de Maio de 2014 não afasta de modo absoluto a entrada e saída do arguido de Macau nesse período é pretender um grau de certeza absoluta sobre a presença física do arguido em Macau nesse período de tempo. Sucede, porém, que esta exigência da certeza absoluta fere manifestamente as regras da experiência da vida humana em normalidade de situações, porque para qualquer homem médio colocado na situação concreta dos autos, perante a ausência de registos de saída do arguido de Macau no período de tempo referido, e sem outros elementos probatórios concretos a revelar a saída efectiva do arguido de Macau no mesmo período de tempo, é razoável acreditar que o arguido se encontrou em Macau durante esse período de tempo.
Assim sendo, e por ter a fundamentação probatória invocada pelo Tribunal recorrido violado as regras da experiência da vida humana em normalidade de situações nos termos acima analisados, é de reenviar todo o objecto do processo para novo julgamento por um Tribunal Colectivo, nos termos ditados pelos art.os 418.o, n.os 1 e 2, do CPP (precisamente por constatação do vício de erro notório na apreciação da prova, invocado na motivação do recurso do Ministério Público).
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar provido o recurso, reenviando todo o objecto do processo para novo julgamento, por um Tribunal Colectivo.
Sem custas.
Macau, 3 de Maio de 2018.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Chou Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)
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