Processo n.º 705/2014 Data do acórdão: 2018-5-17 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– burla
– insuficiência para a decisão da matéria de facto provada
– art.o 400.o, n.o 2, alínea a), do Código de Processo Penal
– lacuna na investigação do objecto probando
– hipoteca sobre o bem objecto do contrato
S U M Á R I O
1. No caso dos autos, à falta de apresentação de contestação penal por parte dos arguidos, todo o objecto probando já se encontrou delimitado e apenas delimitado pela factualidade imputada aos mesmos no despacho de pronúncia, e tendo o tribunal recorrido especificado, no seu acórdão proferido, quais os factos descritos nesse despacho é que foram julgados como provados e quais os factos descritos nesse despacho com relevância para a decisão é que não foram julgados como provados, não pôde ocorrer o assacado vício referido na alínea a) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP, pois só existe este vício quando tiver havido omissão ou lacuna no apuramento da veracidade de determinado ponto da matéria de facto constitutiva do objecto probando, o que não sucede no caso.
2. Se no contrato assinado entre os dois primeiros arguidos e o recorrente já consta convencionado que a parte alienante fica responsável pelo tratamento de quaisquer assuntos relativos à hipoteca sobre o bem identificado nesse contrato, sob pena de ficar responsável pela indemnização de prejuízos da parte adquirente por causa disso, sendo certo que todo o conflito surgido depois entre o recorrente e os arguidos o foi por causa desse contrato, então é razoável a livre convicção do tribunal recorrido no sentido de não estar provado ter sido o recorrente enganado acerca da existência do empréstimo com hipoteca sobre o bem referido nesse primeiro contrato.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 705/2014
(Recurso em processo penal)
Recorrente: Assistente A
Recorridos: 1.o arguido B
2.a arguida C
3.a arguida D
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA
REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformado com o acórdão proferido a fls. 531 a 537 do subjacente Processo Comum Colectivo n.o CR2-12-0243-PCC do 2.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base (TJB), absolutório dos 1.o arguido B, 2.a arguida C e 3.a arguida D da pronunciada prática, em co-autoria material, de um crime consumado de burla em valor consideravelmente elevado, p. e p. pelo art.o 211.o, n.o 4, alínea a), do Código Penal (CP), veio o ofendido constituído assistente Arecorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), tendo levantado concretamente as seguintes questões para pedir a condenação directa dos três arguidos pelo dito crime ou, subsidiariamente, o reenvio do processo para novo julgamento (cfr., em detalhes, a sua motivação apresentada a fls. 571 a 587 dos presentes autos correspondentes):
– insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (porque nem dos factos provados nem dos factos não provados tenha constado qualquer referência expressa sobre quando é que o próprio ofendido assistente tenha conhecido ou tenha tido oportunidade de conhecer ou possibilidade de conhecer a existência de hipoteca bancária ou encargo no bem em causa, e inclusivamente, na hipótese de existência de hipoteca, sobre o montante do empréstimo bancário ainda em dívida, etc., sendo certo que esse conhecimento ou não ou a possibilidade desse conhecimento, ou não, por parte do assistente era facto decisivo para a decisão da causa dos autos, de maneira que à falta de indagação disso, não pôde o Tribunal recorrido ter concluído logo que os três arguidos não tinham utilizado estratagemas astuciosos contra o assistente, razão por que a decisão absolutória estava a padecer do vício referido na alínea a) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal (CPP));
– e erro notório na apreciação da prova (como vício aludido na alínea c) do n.o 2 do ar.o 400.o do CPP, por a livre convicção formada pelo Tribunal recorrido ter ferido as regras da experiência da vida humana) (sendo de notar que apesar de o recorrente ter falado, na motivação, da contradição insanável da fundamentação, ele não chegou a tecer considerações concretas a respeito deste vício referido na alinea b) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP).
Ao recurso, respondeu a Digna Delegada do Procurador a fls. 596 a 599v, no sentido de improcedência do recurso.
Responderam também a 3.a arguida a fl. 600, o 1.o arguido a fls. 604 a 607 e a 2.a arguida a fls. 608 a 612, no convergente sentido de manutenção do julgado.
Subido o recurso, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer a fls. 630 a 631v, opinando pela manutenção do julgado.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte:
1. O acórdão ora recorrido encontra-se proferido a fls. 531 a 537 dos autos, cujo teor se dá por aqui inteiramente reproduzido.
2. Os factos do crime de burla pronunciado aos três arguidos encontram-se descritos no despacho de pronúncia de fls. 304 a 307, cujo teor se dá por aqui inteiramente reproduzido.
3. Os três arguidos não chegaram a apresentar contestação aos factos pronunciados.
4. O Tribunal recorrido especificou no acórdão recorrido quais os factos descritos no despacho de pronúncia é que foram considerados provados, e quais os factos descritos nesse mesmo despacho com relevância é que não foram considerados provados. O mesmo Tribunal fundamentou a sua decisão absolutória dos três arguidos com base, principamente, na entendida não comprovação judicial de terem os três arguidos ocultado a existência do empréstimo bancário com hipoteca sobre o bem em questão nos autos.
5. No contrato (em chinês) assinado em 13 de Agosto de 2009 entre o 1.o arguido (como procurador de um dos dois titulares do direito a alienar) e a 2.a arguida (como o outro titular desse direito), por um lado, e, por outro lado, o ofendido assistente como parte adquirente, consta convencionado que a parte alienante fica responsável pelo tratamento de quaisquer assuntos relativos à hipoteca sobre o bem identificado nesse contrato, sob pena de ficar responsável pela indemnização de prejuízos da parte adquirente por causa disso (cfr. o teor desse contrato a que se refere a fl. 5 a 5v).
6. E é esse contrato que está referido materialmente no facto provado 9 como tal descrito na fundamentação fáctica do acórdão recorrido.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cabe notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver apenas as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Nesses parâmetros, conhecendo:
Desde já, da questão de alegada insuficiência para a decisão da matéria de facto provada:
No caso dos autos, à falta de apresentação de contestação penal por parte dos arguidos, todo o objecto probando já se encontrou delimitado e apenas delimitado pela factualidade imputada aos mesmos no despacho de pronúncia, e tendo o Tribunal recorrido especificado, no seu acórdão proferido, quais os factos descritos nesse despacho é que foram julgados como provados e quais os factos descritos nesse despacho com relevância para a decisão é que não foram julgados como provados, não pôde ocorrer o assacado vício referido na alínea a) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP, pois só existe este vício quando tiver havido omissão ou lacuna no apuramento da veracidade de determinado ponto da matéria de facto constitutiva do objecto probando, o que, como se diz atrás, não sucede no caso.
E da questão de erro notório na apreciação da prova:
Após vistos, de modo crítico, os elementos de prova referidos na fundamentação probatória do aresto recorrido, não se vislumbra que o Tribunal recorrido, aquando da formação da sua livre convicção sobre os factos, tenha violado quaisquer regras da experiência da vida humana em normalidade de situações, ou violado quaisquer normas jurídicas sobre o valor da prova, ou violado quaisquer leges artis a observar no julgamento da matéria de factos, pelo que não pôde o Tribunal recorrido ter cometido qualquer erro notório na apreciação da prova como vício aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do CPP.
Aliás, se no contrato (em chinês) assinado em 13 de Agosto de 2009 entre os dois primeiros arguidos e o recorrente já consta convencionado que a parte alienante fica responsável pelo tratamento de quaisquer assuntos relativos à hipoteca sobre o bem identificado nesse contrato, sob pena de ficar responsável pela indemnização de prejuízos da parte adquirente por causa disso, sendo certo que todo o conflito surgido depois entre o recorrente e os arguidos o foi por causa desse contrato, então, aos olhos do presente Tribunal ad quem, é razoável a livre convicção do Tribunal recorrido no sentido de não estar provado ter sido o recorrente enganado acerca da existência do empréstimo com hipoteca sobre o bem referido nesse primeiro contrato.
(Nota-se que ao imputar à decisão recorrida o vício de erro notório na apreciação da prova, falou o recorrente também da existência de contradição insanável da fundamentação, sem a ter alegado concretamente. Assim, é de considerar que o vício referido na alínea b) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP não pode fazer parte do objecto do recurso sub judice. Contudo, mesmo que assim não se entendesse, sempre se diria que a fundamentação da decisão recorrida não se mostra contraditória, nem tão-pouco irredutivelmente contraditória).
Concluído acima pela inexistência de erro notório na apreciação da prova, é de manter realmente a decisão absolutória recorrida. De facto, não se provando que os três arguidos tenham ocultado a existência da hipoteca em questão nos autos, não pôde o assistente invocar que ele próprio tenha sido enganado pelos três arguidos acerca da existência dessa hipoteca.
Improcede, assim, o recurso, sem mais indagação por desnecessária ou prejudicada em face da análise acima feita.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em negar provimento ao recurso.
Custas pelo assistente recorrente, com três UC de taxa de justiça.
Fixam em mil e quinhentas patacas os honorários da defesa oficiosa do 1.o arguido (cabendo 4/5 desta quantia ao Ex.mo Defensor que subscreveu a resposta ao recurso, e o remanescente 1/5 à Ex.ma Defensora que o veio substituir), em mil e oitocentas patacas os honorários da Ex.ma Defensora Oficiosa da 2.a arguida, e em mil patacas os honorários da defesa oficiosa da 3.a arguida (cabendo 7/10 desta quantia à Ex.ma Defensora que subscreveu a resposta ao recurso, e os remanescentes 3/10 ao Ex.mo Defensor que a veio substituir), quantias todas essas a serem suportadas pelo Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância.
Macau, 17 de Maio de 2018.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Chou Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)
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