Proc. nº 864/2017
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 17 de Maio de 2018
Descritores:
- Anulação do casamento
- Boa-fé dos cônjuges
SUMÁRIO:
I – Se na acção de anulação do casamento não for peticionada a boa fé dos cônjuges, nem pelo autor na petição inicial, nem pelos RR na contestação em pedido reconvencional, o tribunal não pode declará-la oficiosamente, nem mesmo perante a presunção de que trata o art. 1520º, nº2, do CC.
2 – Não tendo ainda sido reconhecida e declarada judicialmente a boa-fé de um dos ex-cônjuges, não pode este requerer com êxito contra o outro a partilha de bens em processo de inventário.
Proc. nº 864/2017
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM
I – Relatório
Por apenso à acção que no TJB corre com o nº FM1-14-0015-CAO, instaurada por A contra B e C, veio esta requerer processo de inventário para partilha dos bens comuns de ambos, em resultado do casamento entre si, porém anulado no âmbito da referida acção.
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Por despacho do juiz titular do processo, datado de 28/07/2017, foi liminarmente indeferido o pedido de abertura do pretendido processo de inventário.
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Contra este despacho veio a requerente apresentar o presente recurso jurisdicional, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
«I. Conforme o entendimento do Tribunal de Segunda Instância no acórdão do recurso da acção principal (não se pode deduzir no processo a reconvenção por motivo processual, e o artigo 1519.º do Código Civil não exige ao tribunal que deva declarar oficiosamente sobre isso, pelo que, o Tribunal de Segunda Instância não podia declarar isso e entendeu que caso a parte pretendesse a declaração do tribunal, a parte devia invocar o seu pedido em outra acção), o Tribunal a quo entendeu que na altura o tribunal não declarou que o referido casamento é um casamento putativo e em consequência entendeu que entre ambas as partes não existem bens comuns do casal, não estando reunido o requisito para abrir o processo de inventário. Salvo o respeito por opinião diferente, a recorrente não pode dar a sua concordância.
II. O tribunal não tem o dever de declarar oficiosamente que o casamento anulado é um casamento putativo nem tem o dever de declarar a boa- fé de qualquer uma das partes. Esta conclusão refere-se apenas ao âmbito do poder judicial quando o tribunal conhece da acção de anulação do casamento, não se referindo a que o casamento anulado pode ou não produz efeitos nos termos lei.
III. De facto, a lei não exige que o casamento anulado só pode produzir efeitos patrimoniais após a declaração do tribunal.
IV. O mais importante é que, fazendo uma retrospectiva sobre o artigo 1520.º n.º 2 do Código Civil e do artigo 343.º n.º 1 do Código Civil, pode-se ver que a lei já prevê expressamente que não é necessário que as partes do casamento anulado provam a sua boa-fé por si próprias, presumindo-se que existe a boa-fé, e nos termos do artigo 1519.º n.º 1 do Código Civil, o casamento anulado, quando contraído de boa-fé, ainda produz os seus efeitos até ao trânsito em julgado da respectiva sentença.
V. Assim sendo, independentemente de o tribunal ter declarado ou não, nos termos do artigo 1520,º n.º 2 e 1519.º do Código Civil, as partes do casamento anulado, salvo sentença contrária, ainda devem beneficiar dos efeitos patrimoniais produzidos pela presunção legal. Caso qualquer uma das partes entenda que a outra parte não é de boa- fé, deve intentar outra acção para ilidir esta presunção legal.
VI. Pelo que, dado que in casu não existe qualquer sentença que ilidiu a boa-fé da recorrente legalmente presumida, deve-se, no presente processo de inventário, considerar que a recorrente contraiu o casamento de boa-fé, produzindo o casamento anulado os efeitos patrimoniais previstos no artigo 1519.º do Código Civil e em consequência considera-se que a recorrente tem o direito a abrir o processo de inventário.
VII. Caso o aludido entendimento não seja acolhido pelo MM.º Juiz, tendo em conta que na acção principal já se provou que a recorrente só tomou conhecimento do casamento entre o requerido e A na acção de divórcio litigioso e estava sempre convencida de que o casamento entre ela e o requerido era válido e legal, a recorrente preenche o requisito de boa-fé previsto no artigo 1520.º n.º 1 do Código Civil. Considerando o princípio da economia processual e nos termos do artigo 971.º do Código de Processo Civil, deve-se conhecer e provar directamente no presente processo de inventário que a recorrente tem o direito a invocar os efeitos patrimoniais do casamento anulado e em consequência deve ser deferida a abertura do presente processo de inventário.
Pelos acima expostos, solicita que os MM.ºs Juízes julguem procedentes todos os fundamentos de facto e de direito invocados nas presentes alegações de recurso, e com base nisso, revogue a sentença proferida pelo Tribunal a quo e julgue deferida a abertura do presente processo de inventário.
Solicita que o MM.º Juiz faça a Justiça!»
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O requerido, citado nos termos do art. 395º, nº3, do CPC, B, respondeu à matéria do recurso, nos seguintes termos:
«1) Salvo o devido respeito, o réu manifesta a sua discordância com os factos invocados nos pontos 6 a 15 das alegações de recurso apresentadas pela recorrente e invoca a impugnação.
2) Em primeiro lugar, na acção principal n.º FM1-14-0015-CAO, o tribunal declarou anulado o casamento contraído entre o réu B (ora recorrido) e a autora C (ora recorrente) em 15 de Outubro de 1984 em Macau.
3) O tribunal proferiu a aludida sentença com base em que o réu (ora recorrido) é impedimento dirimente absoluto, juridicamente não tendo capacidade para contrair casamento, pelo que, nos termos do artigo 1504.º do Código Civil, declarou anulado o casamento contraído entre o recorrido e a recorrente em 15 de Outubro de 1984 em Macau.
4) Para isso, após a sentença proferida pelo tribunal que declarou anulado o casamento contraído entre o recorrido e a recorrente, os efeitos produzidos pela anulação do casamento já podem ser invocados em acção judicial ou extrajudicial.
5) Na sentença da acção n.º FM1-14-0015-CAO, com excepção de declarar-se anulado o casamento contraído entre o recorrido e a recorrente em 15 de Outubro de 1984 em Macau, não se declarou que o casamento contraído entre o recorrido e a recorrente é um casamento putativo nem se declarou a boa-fé de qualquer uma das partes.
6) Por outras palravas, após a anulação do casamento contraído entre o recorrido e a recorrente, não existe a relação matrimonial entre o recorrido e a recorrente, pelo que, sob o pressuposto de não existir a relação matrimonial, também não existem quaisquer bens comuns do casal.
7) Além disso, conforme os títulos e os dispostos legais do Código Civil, o casamento putativo integra-se no Capítulo V do Título IV Direito da Família, constitui um capítulo independente e está previsto nos artigos 1519.º a 1520.º do Código Civil.
8) Esta organização, evidentemente, destina-se a distinguir do capítulo anterior Invalidade do Casamento (Capítulo IV do Título IV Direito da Família do Código Civil).
9) Obviamente, o casamento putativo é uma espécie das acções. Os efeitos do casamento putativo devem depender da declaração do tribunal e devem ser invocados em acção própria.
10) Porém, in casu, o casamento contraído entre o recorrido e a recorrente é apenas um casamento inválido - casamento anulável, não foi declarado pelo tribunal como casamento putativo.
11) Pelo que, antes de conhecido ou declarado pelo tribunal como casamento putativo, o casamento anulado deve apenas produzir os efeitos anulados, ao qual não devem ser aplicados quaisquer dispostos legais do regime de casamento putativo (ou seja, artigos 1519.º e 1520.º do Código Civil), incluindo se o casamento foi contraído de boa- fé e outros efeitos produzidos por se considerar como casamento putativo.
12) Tal como referido pelo MM.O Juiz do Tribunal Judicial de Base:
“Tal como referido no acórdão proferido pelo Venerando Tribunal de Segunda Instância no Processo n.º 157/2016 (recurso da acção declarativa com processo ordinário n.º FM1-14-0015-CAO): “(...) Isto quer dizer que, o tribunal não tem o dever de declarar oficiosamente que o casamento contraído entre a requerente C e o requerido B em 15 de Outubro de 1984 em Macau é um casamento putativo nem declarar a boa-fé da requerente C. Caso a requerente C pretenda tal pedido, a requerente deve intentar outra acção.
Dado que o casamento contraído entre a requerente C e o requerido B já foi anulado e o tribunal não declarou que o referido casamento é um casamento putativo, não existem bens comuns do casal entre os dois, não estando reunido o requisito para abrir o presente processo de inventário.”
13) No presente processo, o casamento contraído entre o recorrido e a recorrente já foi anulado e o tribunal não declarou que o referido casamento é um casamento putativo. Sob o pressuposto de não existir a relação matrimonial, não existem quaisquer bens comuns do casal entre a recorrente e o recorrido.
14) Sob o pressuposto de não existir bens comuns do casal entre a recorrente e o recorrido, não existem quaisquer bens para partilhar, pelo que, não está reunido o requisito para abrir o processo de inventário.
15) Pelos acima expostos, solicita que os MM.ºs Juízes mantenham a decisão proferida pelo MM.º Juiz do Tribunal Judicial de Base, julguem improcedente o pedido da recorrente e neguem provimento ao recurso da recorrente».
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Cumpre decidir.
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II – Os Factos
De acordo com os elementos dos autos e, face ao conhecimento que temos da situação, devido à intervenção deste TSI em processo de recurso jurisdicional aqui interposto (cfr. art. 434º, nº2, do CPC), podemos considerar assentes os seguintes factos:
- Aos 13 de Fevereiro de 1982, a autora A e o réu B casaram-se nos termos legais filipinos na República das Filipinas (Proc. Nº FM1-14-0015-CAO)
- Aos 15 de Outubro de 1984, o réu B casou-se com a 2.ª ré C em Macau. (Proc. nº FM1-14-0015-CAO)
- Em 18/09/2013 C requereu no TJB contra o requerido um procedimento cautelar no TJB (Proc. nº FM1-13-0001-CPV) de arrolamento especial de bens do casal e uma providência cautelar comum, com vista a limitar os poderes de operação, administração e disposição das contas de acções
- Em 25/10/2013 a requerente C instaurou contra o requerido no TJB (Proc. nº FM1-13-0165-CDL) acção de divórcio.
- A instaurou no TJB (Proc. nº FM1-14-0015-CAO) contra o requerido B e contra a ora requerente C uma acção pedindo a anulação do casamento destes.
- A acção foi julgada procedente e, em recurso jurisdicional interposto para este TSI (Proc. nº 157/2016), por acórdão proferido em 19/01/2017 foi a sentença da 1ª instância confirmada.
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III – O Direito
O despacho em crise apresenta o seguinte teor:
«In casu, a requerente C referiu ter intentado, em 25 de Outubro de 2013, a acção de divórcio litigioso n.º FM1-13-0165-CDL contra o requerido B, acção essa encontra-se suspensa por causa do processo n.º FM1-14-0015-CAO. A requerente veio solicitar que se mandasse a abertura do presente processo de inventário.
Além disso, mediante a acção declarativa com processo ordinário n.º FM1-14-0015-CAO, a autora A pediu a anulação do casamento entre a requerente C e o requerido B, e afinal, o Tribunal julgou procedente a acção e declarou anulado o casamento contraído entre a requerente C e o requerido B em 15 de Outubro de 1984 em Macau, sentença essa que já transitou em julgado.
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Nos termos do artigo 1519.º do Código Civil, “1. O casamento anulado, quando contraído de boa-fé por ambos os cônjuges, produz os seus efeitos em relação a estes e a terceiros até ao trânsito em julgado da respectiva sentença. 2. Se apenas um dos cônjuges o tiver contraído de boa-fé, só esse cônjuge pode arrogar-se os benefícios do estado matrimonial e opô-los a terceiros, desde que, relativamente a estes, se trate de mero reflexo das relações havidas entre os cônjuges”.
Ao abrigo do artigo 1520.º do Código Civil, “1. Considera-se de boa-fé o cônjuge que tiver contraído o casamento na ignorância desculpável do vício causador da anulabilidade, ou cuja declaração de vontade tenha sido extorquida por coacção física ou moral. 2. A boa-fé dos cônjuges presume-se.”
Conforme o artigo 1028.º do Código de Processo Civil:
“1. Decretado o divórcio ou a separação judicial de bens, ou anulado o casamento, qualquer dos cônjuges pode requerer inventário para partilha dos bens, salvo se o regime de bens do casamento for o de separação.
2. Se o regime de bens do casamento for o da participação nos adquiridos, observa-se o seguinte:
a) Qualquer dos cônjuges pode requerer inventário para relacionação e avaliação dos patrimónios em participação, tendo em vista a determinação do titular e do montante do crédito na participação;
b) Determinado o titular e o montante do crédito na participação, o juiz convoca os cônjuges para uma conferência e condena o devedor no respectivo pagamento em dinheiro ou na entrega de bens ao outro cônjuge, nos termos dos n.ºs 1 a 3 do artigo 1598.º do Código Civil.
3. As funções de cabeça-de-casal incumbem ao cônjuge mais velho.
4. O inventário corre por apenso ao processo de divórcio, separação judicial de bens ou anulação do casamento e segue, com as necessárias adaptações, os termos prescritos nos capítulos anteriores.
5. Quando, em virtude de convenção pós-nupcial, haja lugar a inventário nos termos dos n.ºs 4 e 5 do artigo 1578.º do Código Civil, seguem-se, com as necessárias adaptações, os termos prescritos nos capítulos anteriores e nos n.ºs 1 a 3 deste artigo.”
Por outras palavras, não existe a relação matrimonial entre a requerente C e o requerido B.
Tal como referido no acórdão proferido pelo Venerando Tribunal de Segunda Instância no Processo n.º 157/2016 (recurso da acção declarativa com processo ordinário n.º FM1-14-0015-CAO):
“Realmente, do art. 1519º do CC nada resulta que imponha ao julgador o dever de declarar oficiosamente a boa fé dos cônjuges do casamento anulado. Mas, estando na disponibilidade da 2ª ré o ter interposto a acção, bem podia ela cumular com o pedido principal de declaração dos efeitos do casamento putativo (no direito comparado, Ac. STJ, de 15/03/1988, Proc. nº 076048).
Ora, se o pedido inicial da acção era apenas a anulação do casamento, não podia oficiosamente o tribunal conhecer dos seus efeitos putativos (no direito comparado, Ac. RL, de 7/5/1987, in CJ, 1987, III, pág. 78).
Ou seja, e em suma, se a boa-fé é um instituto que só é útil à 2ª ré enquanto fundamento para conferir eficácia ao casamento putativo, somos a pensar que, ou ela formula o pedido em acção própria contra a autora e o 1º réu com esse exclusivo propósito (caso em que futuramente, e dotada de uma sentença favorável, poderá fazê-la valer contra terceiros com a força ou autoridade de caso julgado), ou então em acção destinada a obter os efeitos putativos específicos do casamento anulado numa situação material concreta onde defenda os direitos próprios de uma situação jurídica substantiva que acuda aos seus intentos enquanto cônjuge (putativa) de boa fé.”
Isto quer dizer que o tribunal não tem o dever de declarar oficiosamente que o casamento contraído entre a requerente C e o requerido B em 15 de Outubro de 1984 em Macau é um casamento putativo nem declarar a boa-fé da requerente C. Caso a requerente C pretenda tal pedido, a requerente deve intentar outra acção.
Dado que o casamento contraído entre a requerente C e o requerido B já foi anulado e o tribunal não declarou que o referido casamento é um casamento putativo, não existem bens comuns do casal entre os dois, não estando reunido o requisito para abrir o presente processo de inventário.
Nestes termos, nos termos do artigo 394.º n.º 1 alínea d) do Código de Processo Civil, este Juízo decide indeferir o requerimento de abertura do presente processo de inventário formulado pela requerente C.
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Custas pela requerente.
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Notifique e D.N..
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O Juiz do Juízo de Família e de Menores,
Aos 28 de Julho de 2017».
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Como se pode extrair do texto do despacho transcrito, o indeferimento liminar decorreu da circunstância de o tribunal “a quo” ter considerado que, no âmbito dos presentes autos de processo de inventário instaurado pela requerente (que foi casada com o requerido em casamento anulado), não era possível efectuar a partilha, sem que antes fosse judicialmente decidido que a requerente esteve de boa fé no casamento anulado.
Tal como este TSI afirmou, precisamente na situação concernente a estas partes, no âmbito da acção de anulação:
“Sabemos muito bem que a boa fé neste caso se presume, nos termos abstractos do art. 1520º do CC. E é certo que nos autos ninguém contrariou tal presunção, tendo a ré conseguido demonstrar a ignorância do vício causador da anulação (resposta aos quesitos 16º e 17º). À partida, por conseguinte, nenhum obstáculo haveria a que se declarasse a sua boa fé.
Só que aquela matéria de facto, por si só, não pode relevar sem que pudesse ser impugnada pelo 1º réu. E ele não o pôde fazer!
De resto, a declaração de boa fé da 2ª ré não faz parte do dever de decisão do tribunal, se ninguém lhe formulou nenhum pedido formal nesse sentido. Realmente, do art. 1519º do CC nada resulta que imponha ao julgador o dever de declarar oficiosamente a boa fé dos cônjuges do casamento anulado. Mas, estando na disponibilidade da 2ª ré o ter interposto a acção, bem podia ela cumular com o pedido principal de declaração dos efeitos do casamento putativo (no direito comparado, Ac. STJ, de 15/03/1988, Proc. nº 076048).
Ora, se o pedido inicial da acção era apenas a anulação do casamento, não podia oficiosamente o tribunal conhecer dos seus efeitos putativos (no direito comparado, Ac. RL, de 7/5/1987, in CJ, 1987, III, pág. 78).
É certo que a ré/recorrente pediu na sua peça contestatória que fosse reconhecida a sua boa fé. Todavia, não o fez em termos processualmente operantes. Quer dizer, parece que não bastaria à ré pedir o reconhecimento como se este pedido fosse algo que fizesse parte de um poder potestativo que vinculasse o julgador e não fosse tido como uma mera pretensão como outra qualquer que pudesse merecer uma oposição das partes interessadas e, finalmente, não fizesse parte de uma avaliação jurisdicional.
Contudo, se em tais termos esse pedido não podia relevar na hipótese concreta, também não podia valer pela via da reconvenção até porque a 2ª ré disse expressamente, como já vimos, que não pretendeu arguir a reconvenção.
De qualquer maneira, também nos parece que a reconvenção estaria fora de causa. É que a reconvenção só poderia ser uma contra-acção contra a autora e não contra o co-réu dos autos (cfr. art. 218º, nº1, do CPC). E sendo assim, que efeitos podia ter uma tal sentença contra o co-réu que apreciasse a pretensão reconvencional apenas contra a autora, apesar de o co-réu ser um dos mais importantes interessados na resolução dessa questão?!
Pensamos, então, que o reconhecimento da boa fé haverá de ser feito em acção de apreciação positiva intentada pela 2ª ré contra o 1º réu e, segundo parece, também contra a aqui autora, mas não no âmbito dos presentes autos.
Ou seja, e em suma, se a boa fé é um instituto que só é útil à 2ª ré enquanto fundamento para conferir eficácia ao casamento putativo, somos a pensar que, ou ela formula o pedido em acção própria contra a autora e o 1º réu com esse exclusivo propósito (caso em que futuramente, e dotada de uma sentença favorável, poderá fazê-la valer contra terceiros com a força ou autoridade de caso julgado), ou então em acção destinada a obter os efeitos putativos específicos do casamento anulado numa situação material concreta onde defenda os direitos próprios de uma situação jurídica substantiva que acuda aos seus intentos enquanto cônjuge (putativa) de boa fé”.
Quer isto dizer que o tribunal do processo de anulação do casamento não podia declarar a boa fé dos cônjuges, sem que esse pedido lhe tivesse sido apresentado. E, efectivamente, nenhuma das partes pediu a declaração de boa fé dos cônjuges.
A ora requerente teve a oportunidade de suscitar a questão em audiência de julgamento, quando lhe foi perguntado se a referência que tinha efectuado na sua contestação à sua boa fé deveria ser interpretada como pedido reconvencional, mas a resposta foi negativa. Ou seja, não pretendia deduzir esse pedido reconvencional. Desta maneira, não pôde o tribunal da anulação declarar a boa fé, tendo o objecto daqueles autos ficado cingido à anulação do casamento.
Ora, se a boa fé ainda não foi declarada judicialmente, não pode a requerente invocar essa boa fé para requerer a partilha dos bens que diz serem comuns.
É verdade que o art. 1519º preceitua que:
“1. O casamento anulado, quando contraído de boa fé por ambos os cônjuges, produz os seus efeitos em relação a estes e a terceiros até ao trânsito em julgado da respectiva sentença.
2. Se apenas um dos cônjuges o tiver contraído de boa fé, só esse cônjuge pode arrogar-se os benefícios do estado matrimonial e opô-los a terceiros, desde que, relativamente a estes, se trate de mero reflexo das relações havidas entre os cônjuges”.
Mas, o certo é que, como se disse, e mesmo que a boa fé se presuma, para se poderem extrair os efeitos desse casamento anulado é necessário esse reconhecimento judicial em petitório próprio, ou na própria acção anulatória.
Já o tinha este TSI, de resto, avisado no quadro do recurso jurisdicional nº 157/2016, quando afirmámos que a interessada, aqui requerente/recorrente, deveria formular o «pedido em acção própria contra a autora e o 1º réu com esse exclusivo propósito (caso em que futuramente, e dotada de uma sentença favorável, poderá fazê-la valer contra terceiros com a força ou autoridade de caso julgado), ou então em acção destinada a obter os efeitos putativos específicos do casamento anulado numa situação material concreta onde defenda os direitos próprios de uma situação jurídica substantiva que acuda aos seus intentos enquanto cônjuge (putativa) de boa fé».
Ora, a acção de inventário em que nos encontramos está a jusante, por ser já de partilha de bens, em que a requerente pretende a divisão destes, no pressuposto de que ela tivesse estado de boa-fé quando contraiu o casamento, o que só a montante deve ser apurado.
Como ainda não foi apurada essa alegada boa-fé, nem reconhecida judicialmente, então, para os efeitos dos presentes autos, não é possível no âmbito do inventário accionar a presunção de que trata o art. 1520º, nº2, do CC. A presunção abstractamente estabelecida na lei só pode ter reflexos concretos, como tivemos ocasião de dizer, no âmbito de uma pretensão com esse fim específico da declaração de boa-fé em momento e espécies próprios, que não este em que ora nos encontramos. É nessa acção que a boa-fé da requerente terá que ser invocada através dos factos pertinentes, bem como será nela – e não no processo de inventário - que o interessado poderá contrariar a sua existência, ilidindo a presunção, nos termos do art. 343º do CC.
Andou bem, pois, a 1ª instância com o despacho impugnado.
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IV – Decidindo
Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando o despacho judicial recorrido.
Custas pela recorrente.
T.S.I., 17 de Maio de 2018
José Cândido de Pinho
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong
864/2017 15