Processo nº 72/2018
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data: 17 de Maio de 2018
ASSUNTO:
- Nulidade processual
- Princípio da livre apreciação das provas
SUMÁRIO:
- A falta da pronúncia de um requerimento probatório não constitui nulidade da sentença, mas sim apenas e máxime uma nulidade processual nos termos do artº 147º do CPC, caso se existir norma legal que a qualifica como tal, ou se esta falta possa influir no exame ou na decisão da causa.
- Não tendo agido a devida diligência contra tal nulidade/irregularidade processual no momento oportuno, jamais podem fazer em momento posterior, uma vez que a mesma é considerada como sanada.
- Segundo o princípio da livre apreciação das provas previsto n° 1 do artigo 558.° do CPC, “O tribunal aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”.
- A justificar tal princípio e aquilo que permite a existência do mesmo, temos que o Tribunal a quo beneficia não só do seu prudente juízo e experiência, como da mais-valia de um contacto directo com a prova, nomeadamente, a prova testemunhal, o qual se traduz no princípio da imediação e da oralidade.
- Assim, a reapreciação da matéria de facto por parte deste TSI tem um campo muito restrito, limitado, tão só, aos casos em que ocorre flagrantemente uma desconformidade entre a prova produzida e a decisão tomada, nomeadamente quando não exista qualquer sustentabilidade face à compatibilidade da resposta com a respectiva fundamentação.
O Relator,
Ho Wai Neng
Processo nº 72/2018
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data: 17 de Maio de 2018
Recorrentes: A e B (2ª Ré e 3ª Ré)
Recorrida: C (Autora)
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I – Relatório
Por sentença de 07/07/2017, julgou-se procedente a acção e, em consequência, reconhecendo-se o direito de preferência da Autora C nas vendas que foram feitas a A e B de 1/6 para cada uma do prédio urbano sito em Macau, com o nº ... da Rua..., Taipa, composto por rés-do-chão e primeiro andar, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo ..., descrito na C.R.P. sob o nº ..., a fls…. do Livro…, declarou-se transmitidas para a Autora as respectivas quotas.
Dessa decisão vêm recorrer as 2ª e 3ª Rés, A e B, alegando, em sede de conclusão, o seguinte:
I. Vem o presente recurso interposto da decisão final do douto Tribunal a quo que decidiu julgar a acção procedente porque provada e em consequência, reconhecendo-se o direito de preferência da Autora nas vendas que foram feitas a A e a B de 1/6 para cada uma do prédio urbano sito em Macau, com o nº ... da Rua..., Taipa, composto por rés-do-chão e primeiro andar, inscrito na respectiva motriz predial sob o artigo ..., descrito na C.R.P sob o nº ..., a fls…. do livro…., declaram-se transmitidas para a Autora as respectivas quotas.
II. Por via do presente recurso, pretende a Recorrente impugnar a decisão proferida sobre toda a matéria de facto vertida na Base Instrutória porquanto da prova produzida em sede de julgamento nunca poderiam os quesitos que a compõe merecer as respostas que lhe foram conferidas pelo douto Tribunal o quo.
III. Por outro lado, as ora Recorrentes consideram que o douto Tribunal a quo não se pronunciou sobre uma pretensão deduzida pelas ora Recorrentes nos seus requerimentos de fls. 184 e 197, o que, por um lado, é gerador de nulidade da decisão por omissão de pronúncia e impossibilitou que as Recorrentes produzissem prova dos factos que se propunham provar.
IV. É entendimento da Recorrente que da prova produzida em sede de julgamento, conjugada com os demais elementos dos autos, teriam necessariamente de ser diferentes as respostas conferidas a todos os quesitos que compõe a base instrutória, pelo que estamos perante um claro erro de julgamento.
V. No vertente processo, foi determinada a documentação das declarações prestadas na audiência de julgamento, existindo por isso suporte de gravação, o que permitirá a este Venerando Tribunal de Segunda Instância melhor avaliar, e decidir, sobre o ora invocado erro na apreciação da prova, aqui expressamente se requerendo a reapreciação da matéria de facto, nos termos admitidos no art. 629º do Código de Processo Civil.
VI. Em sede do presente recurso, relevam os depoimentos prestados pelas seguintes testemunhas: 1.º testemunha da Autora (marido da Autora) (depoimento registado no suporte digital gravada na audiência de julgamento de 09/05/2017 - Tradutor 1 Excerto 1 - 15.13.52 de minuto 25:28 a 01:28.00); 3.º testemunha da Autora (cunhado da Autora) (depoimento registado no suporte digital gravada na audiência de julgamento de 09/05/2017 - Tradutor 1 Excerto 1 - 15.13.52 minuto 01:29.41 a 01:54.49); 4.ª testemunha da Autora (filho da Autora) (depoimento registado no suporte digital gravada na audiência de julgamento de 09/05/2017 - Tradutor 1 Excerto 1 - 15.13.52 minuto 01:55.40 a 02:15.25); 1.ª testemunha das Rés (depoimento gravado no suporte digital registada na audiência de julgamento de 09/05/2017 em Tradutor 1 Excerto 2 - 17.43.52, minuto 00:01 a 25:36) e 2.ª Testemunha das Rés (depoimento gravado no suporte digital registada na audiência de julgamento de 09/05/2017 em Tradutor 1 Excerto 2 - 17.43.52, minuto 27:15 a 36:32).
VII. Dos depoimentos das referidas testemunhas, resultam duas versões opostas dos factos em discussão nos presentes autos, sendo que as testemunhas da Autora vieram afirmar que, tanto quanto era do seu conhecimento, a Ré, ora Recorrente A, não havia informado a Autora que iria vender dois 1/6 indivisos do imóvel em causa nos presentes autos e nem as condições em que o ira fazer,
VIII. Já do depoimento da 1.ª testemunha das Recorrentes, resultou precisamente o contrário, ou seja, que através de um telefonema ocorrido em Maio de 2013, feito pela Autora à Ré A, esta lhe transmitiu que ira vender os dois 1/6 indivisos, sendo que 1/6 iria fazer negocio consigo mesma e o outro 1/6 iria vender a um terceiro, sendo que a Ré A transmitiu que o preço unitário de cada 1/6 indiviso era MOP$2,500,000.00 e que, A Autora anão se mostrou interessada nesse negócio referindo que só compraria a metade do prédio.
IX. Mal andou o douto Tribunal a quo ao dar maior credibilidade ao depoimento das testemunhas da Autora, em detrimento do depoimento da testemunha das ora Recorrentes, pois que não obstante as testemunhas da Autora mencionarem que não terá havido comunicação das vendas em causa nos presentes autos por parte da Ré A, ora Recorrente, para a Autora, ora Recorrida, o certo é que, resulta do depoimento de todas as testemunhas que houve conversas telefónicas acerca da eventual compra e venda das quotas que cada uma das partes era proprietária nos imóveis, e que a Autora só se mostrou interessada em adquirir a metade que pertencia à família da Ré A, ou seja, ou comprava apenas metade ou então não estaria interessada no negócio.
X. Resultou também do depoimento de todas as testemunhas que em 2013 houve uma conversa telefónica, cuja chamada foi efectuada por parte da Autora para a Ré A, e que foi discutida a questão da transmissão da parte do imóvel pertencente à Ré A e família e que nesse telefonema de 2013 a Autora procurou saber se a Ré A queria vender a 1/2, do imóvel pertencente à sua família.
XI. Onde não existe consenso é na parte em que, as testemunhas da Autora referem que na sequência dessa conversa a Ré A não respondeu à Autora e a testemunha das Rés, marido da Ré A, refere que a Ré A respondeu, dizendo que não podia vender 1/2, mas que ia vender os dois 1/6 indivisos, sendo 1/6 a si mesma por MOP$2,500,000.00 e 1/6 a um terceiro por igual valor, ao que, da parte da Autora, foi respondido que não queria comprar apenas aquelas quotas indivisas mais sim a metade do imóvel.
XII. Também entre as testemunhas da Autora e a Autora existem laços familiares próximos, sendo que uma testemunha é seu marido, a outra, filho, e as outras, cunhado, e, nessa medida, teriam o mesmo interesse na solução a dar ao presente caso, sendo que nenhuma das testemunhas da Autora, com excepção da primeira (seu marido), assistiu a qualquer conversa entre a Autora e a Ré A, e os factos que afirmaram em julgamento vieram ao seu conhecimento através de conversas tidas com a Autora e seu marido.
XIII. O marido da ora Recorrente A, a 1.ª testemunha das Rés, presenciou a conversa telefónica na qual a sua mulher transmitiu à Autora, ou ao marido desta, que iria vender e por que preço, tendo de imediato, do outro lado da linha, sido dito à sua mulher que não estavam interessados em tal negócio e que só queria comprar a metade do imóvel, e apesar de o telefone não estar em alta voz, a referida testemunha estava ao lado da Ré A e presenciou a reacção imediata desta, não se compreendendo por isso como o seu depoimento pôde ser tido em menor conta do que o depoimento das testemunhas da Autora.
XIV. A única testemunha ouvida que nenhuma relação de parentesco tem com as partes nos presentes autos, foi a 2.ª testemunha das Rés e, como se pode confirmar através dos depoimentos supra transcritos, existe contradição entre o depoimento desta e o das testemunhas da Autora pois que aquele afirmou que a Autora o procurou para encontrar um interessado na aquisição da sua parte do imóvel, ao passo que estas referiram que a Autora nunca teve interesse em vender.
XV. Assim, perante esta contradição nos depoimentos das testemunhas arroladas pela Autora, seus familiares, e a 2.º testemunha das Rés, um terceiro sem qualquer interesse no desfecho dos presentes autos, seria de o douto tribunal a quo retirar daí as devidas consequências, designadamente, ou concluir que, ao contrário daquilo que afirmaram, as testemunhas da Autora não tinham conhecimento profundo do assunto em discussão nos presentes autos, ou, as mesmas não falaram a verdade ...
XVI. Mal andou o douto Tribunal a quo desatender o depoimento prestado pela 1.ª testemunha da Ré, com depoimento gravado no suporte digital registada na audiência de julgamento de 09/05/2017 em Tradutor 1 Excerto 2 - 17.43.52, minuto 00:01 a 25:36), pois que se o CPC permite um tal depoimento (art. 519º, nº 1, al c), não pode o julgador retirar toda e qualquer eficácia probatória ao depoimento prestado, apenas com base nessa relação familiar, porquanto a relação da testemunha com a Ré A não representa nenhum motivo de per se para que seja retirada a eficácia probatória ao respectivo depoimento prestado, nem confere ao Julgador tal poder, "a menos que não tenham valor específico em cada caso concreto", o que não se verifica no caso sub judice, tanto mais que a Lei permite tais depoimentos, cfr. artigo 519.º, n.º 1, al. c) do Código de Processo Civil e artigo 386.º do Código Civil.
XVII. Ao assim proceder, retirando credibilidade ao depoimento da testemunha D, designadamente em detrimento de outras testemunhas que tinham igual relação familiar com a Autora, a decisão recorrida incorre na violação dos princípios e normas jurídicas atinentes ao julgamento da matéria de facto, mormente os relacionados com a força probatória do meio de prova testemunhal, cfr. artigos 517.º e seguintes e 558.º, todos do C.P.C.
XVIII. Consequentemente, mal andou o douto Tribunal a quo ao decidir a matéria de factos nos termos supra transcritos, e constando dos autos todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre a matéria de facto - quais sejam depoimento das testemunhas supra transcritos - está esse Venerando Tribunal na condição de modificar a decisão do Tribunal de Primeira Instancia sobre a matéria de facto, julgando-se Não Provados os quesitos 1.º, 2.º e 3.º e Provados os quesitos 4.º a 11.º.
XIX. E, assim fazendo, revogar a decisão recorrida, substituindo-a por outra que julgue a presente acção improcedente por não provada.
Caso assim não se entenda, o que por mera cautela de patrocínio se concebe, sempre se diga que,
XX. No requerimento de fls. 184 dos autos, as ora Recorrentes requereram fosse a Autora notificada para vir informar qual o número de telefone que utilizou para contactar a Ré A no seu número fixo de Hong Kong +852 ... e, subsequentemente, oficiar a Companhia de Telecomunicações de Macau para prestar informações sobre o registo das chamadas do número que a Autora indicasse para o número fixo da ora Recorrente A
XXI. Notificada de tal requerimento, a Autora por requerimento de fls. 190 a 194, negou que tivesse contactado a Ré A para o seu telefone fixo de Hong Kong, veja-se o que afirma no seu requerimento de fls. 190 a 194.
XXII. Porém apurou-se em sede de julgamento, designada através do depoimento da 1ª testemunha da Autora, seu marido e da 3.º Testemunha da Autora, seu filho, que efectivamente foi a a Autora, ou seu marido, quem, em 2013 telefonou à Ré A.
XXIII. Ao ter a Autora conscientemente afirmado que não ligou à Ré A e voluntariamente se negando a facultar o número do telefone que usou para contactar a referida Ré, impediu que as ora Rés produzissem prova sobre os factos elencados nos quesitos 4.º e seguintes da Base Instrutória cuja prova lhes cabia invertendo.se assim, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 337.º, n.º 2 do C.C, o ónus da prova que quanto aos factos elencados nos quesitos 4.º a 11º da Base Instrutória recaia sobre as ora Recorrentes.
XXIV. Assim sendo, e face ao que supra se disse quanto ao julgamento da matéria de facto, outra resposta não poderia ter sido dada aos quesitos 4.º a 11.º da base instrutória que não a de que os mesmo resultaram Provados.
XXV. Finalmente, e ainda quanto ao requerimento de fls. 184, verifica-se que o mesmo não mereceu qualquer resposta do douto Tribunal a quo, o que, salvo devido respeito por melhor opinião, constitui uma nulidade por violação do disposto no artigo 571.º, n.º 1, al, e) do CPC.
XXVI. É que não obstante a Autora se ter negado a facultar o numero do telefone que usou para ligar à Autora em meados de 2013, cabia, ainda assim ao douto Tribunal a quo decidir das pretensões deduzidas em tal requerimento e que foram, ademais, reiteradas no requerimento das ora Recorrentes de fls. 197, mormente quando tais diligências probatórias requeridas pelas Rés que não mereceram o deferimento (ou o indeferimento) por parte do Douto Tribunal mostravam-se relevantes para o apuramento dos factos por si alegados, nomeadamente, que as Rés haviam sido contactadas pela Autora e que esta havia tomado conhecimento dos termos do negócio.
XXVII. A decisão recorrida incorre no vício de nulidade por violação do disposto no artigo 571.º, n.º 1, al. e), ex vi art. 569º, nº 3 ambos do CPC e, consequentemente, ser anulado todo o julgamento;
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A Autora respondeu à motivação do recurso acima em referência nos termos constante a fls. 456 a 473 dos autos, cujo teores aqui se dão por integralmente reproduzidos, pugnando pela improcedência do recurso.
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Foram colhidos os vistos legais.
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II – Factos
Vêm provados os seguintes factos pelo Tribunal a quo:
a) Por escritura pública de 04/02/1957, E e F adquiriram, em quotas-partes indivisas e iguais para cada uma, o prédio urbano sito em Macau, com o nº ... da Rua..., Taipa, composto por rés-do-chão e primeiro andar, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo ..., descrito na C.R.P. sob o nº ..., a fls…. do Livro…, conforme a cópia de escritura pública junta a fls. 14 a 19 dos autos e a certidão de registo predial junta a fls. 20 a 29 dos autos, cujos teor aqui se dão como integralmente reproduzidos;
b) Aquisição que foi registada sob a inscrição nº ..., a fls. … do Livro…;
c) A Autora é filha de F, conforme doc. a fls. 30 dos autos;
d) Após a morte de F, foi aberta a respectiva sucessão hereditária e a partilha dos bens da herança foi realizada no âmbito do Processo de Inventário que correu termos no 2º Juízo Cível deste Tribunal como proc. nº CV2-06-0009-CIV;
e) No âmbito do processo de inventário acima referido e por escrituras subsequentes, de 05/06/2009 e de 20/09/2012, a Autora adquiriu, respectivamente, 1/8 indivisos, 1/12 indivisos e 7/24 indivisos, cujo somatório corresponde a 1/2 (metade) indivisa do prédio acima identificado;
f) As aquisições mencionadas no item e) encontram-se registadas a favor da Autora, sob as inscrições nºs …., … e …, respectivamente;
g) E outorgou em 27/05/1998 uma procuração à Ré A, conferindo-lhe poderes para a prática de negócios “consigo mesmo” relativamente à sua parte do prédio em causa, conforme a pública-forma dessa procuração de fls. 32 a 37 dos autos;
h) No dia 19/06/2013, a Ré A vendeu a si mesma 1/6 indivisos do aludido prédio pelo preço de MOP2.500.000,00, ao abrigo dos poderes para a prática de negócios “consigo mesmo” conferidos pela aludida procuração, conforme a certidão da escritura pública de fls. 41 a 45 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
i) No mesmo dia, a Ré A vendeu à Ré B 1/6 indivisos do mesmo prédio, também pelo preço de MOP2.500.000,00, ao abrigo dos poderes para a prática de negócios “consigo mesmo” conferidos pela aludida procuração, por intermédio da certidão da escritura pública de fls. 46 a 50 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
j) Em 16/10/2013, através da certidão de dados matriciais emitida pela D.S.F., a Autora tomou conhecimento das aquisições por cada uma das Rés A e B sobre 1/6 indivisos do prédio em causa;
k) Posteriormente, a Autora tomou conhecimento de que a Ré A, munida de procuração referida no item g), outorgou as duas escrituras públicas sucessivas referidas nos itens h) e i);
l) As compras e vendas e as condições essenciais dos respectivos negócios não foram comunicadas previamente à Autora, por qualquer pessoa, por forma a possibilitar o exercício do seu direito legal de preferência.
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III – Fundamentação
1. Da nulidade da sentença:
As Rés, A e B, ora Recorrentes, com vista a provar os quesitos 4º a 7º da Base Instrutória, requereram em 27/04/2017 ao juíz titular do processo para notificar a Autora para vir informar “qual o número de telefone que utilizou para contactar com a Ré A no seu número fixo de Hong Kong +852 ...”, bem como para oficiar à Companhia de Telecomunicações de Macau, S.A.R.L. para fornecer “o registo de todas as chamadas telefónicas efectuadas durante o primeiro semestre do ano de 2013 a partir desse número de telefone para o telefone fixo de Hong Hong com o nº +852 ...”, com dispensa do dever de sigilo das telecomunicações.
Este pedido não mereceu qualquer resposta por parte do Tribunal a quo.
Foi realizada assim a audiência de julgamento e o processo seguiu a tramitação processual ulterior com prolação da sentença final.
Entenderam assim as Rés que sentença é nula nos termos da al. e) do nº 1 do artº 571º do CPC.
Antes de mais, cumpre realçar que a al. e) do nº 1 do artº 571º do CPC diz respeito à nulidade da sentença pela condenação de quantidade superior ou em objecto diverso do pedido, que não se enquadra minimamente na matéria fáctica alegada pelas Rés.
Julgamos que se trate de um erro de escrito na indicação do preceito legal, o que as Rés pretendem referir seria a nulidade da sentença por omissão prevista na al. d) do nº 1 do artº 571º do CPC.
De qualquer forma, a sua imputação é manifestamente improcedente.
Vejamos.
Em primeiro lugar, o requerimento duma diligência probatória não constitui objecto de apreciação da sentença final, na qual limita-se a aplicar o direito face aos factos assentes e provados.
Tal requerimento tem de ser apreciado e decidido antes do encerramento da discussão da matéria de facto, sob pena de inutilidade.
Assim, a falta da pronúncia desse requerimento constitui apenas e máxime uma nulidade processual nos termos do artº 147º do CPC, caso se existir norma legal que a qualifica como tal, ou se esta falta possa influir no exame ou na decisão da causa.
Sendo nulidade processual ou mera irregularidade, a mesma deve ser arguida perante o Tribunal a quo ao abrigo do disposto do artº 151º do CPC, nos termos do qual a arguição só pode ser feita em sede do recurso se o processo for expedido em recurso antes de findar o prazo marcado para arguição, que não é o caso.
Pois, as Rés, bem sabendo, ou pelos menos têm obrigação de saber que o seu requerimento da diligência probatória não foi apreciado, devem insistir a apreciação do mesmo ou arguir a nulidade/irregularidade processual por omissão da pronúncia junto do Tribunal a quo dentro do prazo de 10 dias, a contar com a sua confiança de processo que teve lugar no dia 29/07/2015.
Não tendo agido a devida diligência no momento oportuno, jamais podem fazer em momento posterior, uma vez que a referida nulidade/irregularidade processual é considerada como sanada.
Face ao exposto, é de negar provimento ao recurso nesta parte.
2. Da impugnação da decisão da matéria de facto:
Vêm as Rés impugnar a decisão da matéria de facto quanto aos quesitos 1º a 11º da Base Instrutória.
Para as Rés, os quesitos 1º, 2º e 3º deveriam ser tido por não provados.
Em relação aos quesitos 4º a 11º, deveriam ser provados na forma seguinte:
Quesito 4º: “em meados do ano de 2013 o marido da Autora entrou em contacto com a Ré A a fim de lhe propor a compra de metade do imóvel dos autos, e a Ré A informou-o que não podia vender metade do imóvel, mas que, munida da procuração que lhe fora outorgada pela E (...), pretendia vender 2/6 indivisos do prédio em causa”.
Quesito 5º: “e que iria vender 1/6 indivisos a si própria e outro 1/6 indivisos à Ré B”.
Quesito 6º: “e ainda que cada 1/6 indivisos seria vendido pelo preço de MOP2.500.000,00”.
Quesito 7º: “mais que a escritura pública seria realizada em meados do mês de Junho”.
Quesito 8º: “a Autora não se mostrou interessada no negócio”.
Quesito 9º: “a Autora nunca transmitiu à Ré A a intenção de adquirir para si a parte do prédio que essa Ré lhe informou iria vender”.
Quesito 10º: “a Autora não deu qualquer resposta à Ré A, no prazo de 8 dias a contar do momento referido no item 4.º”.
Quesito 11º: “a Ré A informou à Autora sobre o projecto de venda na qualidade de procuradora de E(...)”.
Para sustentar a sua posição, indicaram o depoimento das 1ª, 3ª e 4ª testemunhas da Autora e da 1ª testemunha das Rés, bem como a inversão do ónus da prova em consequência do seu pedido de diligência probatória supra em referência.
Vamos analisar se o Tribunal a quo cometeu algum erro na apreciação da prova.
Como é sabido, segundo o princípio da livre apreciação das provas previsto n° 1 do artigo 558.° do CPC, “O tribunal aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”.
A justificar tal princípio e aquilo que permite a existência do mesmo, temos que o Tribunal a quo beneficia não só do seu prudente juízo e experiência, como da mais-valia de um contacto directo com a prova, nomeadamente, a prova testemunhal, o qual se traduz no princípio da imediação e da oralidade.
Deste modo, “A reapreciação da matéria de facto por parte desta Relação tem um campo muito restrito, limitado, tão só, aos casos em que ocorre flagrantemente uma desconformidade entre a prova produzida e a decisão tomada, nomeadamente quando não exista qualquer sustentabilidade face à compatibilidade da resposta com a respectiva fundamentação”. (Ac. do STJ de 21/01/2003, in www.dgsi.pt)
Com efeito, “não se trata de um segundo julgamento até porque as circunstâncias não são as mesmas, nas respectivas instâncias, não bastando que não se concorde com a decisão dada, antes se exige da parte que pretende usar desta faculdade a demonstração da existência de erro na apreciação do valor probatório dos meios de prova que efectivamente, no caso, foram produzidos.(...)”. (Ac. do RL de 10/08/2009, in www.dgsi.pt.)
Ou seja,
Uma coisa é não agradar o resultado da avaliação que se faz da prova, e outra bem diferente é detectarem-se no processo de formação da convicção do julgador erros claros de julgamento, incluindo eventuais violações de regras e princípios de direito probatório.
No caso em apreço, o Tribunal a quo justificou a sua convicção pela forma seguinte:
“…A convicção do tribunal relativamente aos factos dos itens 1º e 2º resulta do depoimento das testemunhas indicadas pela Autora, nomeadamente X marido da Autora, X e X, ambos irmãos da primeira testemunha e cunhados da Autora, e X filho da Autora e da primeira testemunha, os quais por conversarem sobre investimentos e negócios da família durante as refeições sabem que a Autora gostava de comprar o prédio a que se reportam os autos do qual metade tinha pertencido a seu pai, tendo adquirido a quota parte dos seus irmãos e pretendendo adquirir a outra metade da Ré A e família, no seguimento do que, por não chegarem a acordo quanto à venda pela Ré A à Autora, esta e marido consultaram um advogado para saber como pôr fim à comunhão do bem, no seguimento do que, este (o advogado) consultando a situação do bem em termos cadastrais veio a apurar que a Ré A havia transmitido parte do prédio para si e outra para terceiros, o que face ao documento de fls. 31 dos autos – certidão de dados matriciais – o qual foi requerido por um advogado – de entre os que patrocina a Autora cf. fls. 38 – em 16 de Outubro de 2013 nos permite responder afirmativamente a estes dois itens face ao que as testemunhas declaram e à data constante do documento.
No que concerne à matéria do item 3º a resposta positiva a este item formulado na forma negativa resulta de toda a prova produzida em que cabia à Ré A ter demonstrado que havia comunicado à Autora as condições da venda o que, de modo algum foi demonstrado com a certeza jurídica necessária, sem prejuízo de se admitir como verdadeiras as declarações das testemunhas de que houve negociações e contactos entre Autora e Ré A no sentido de ver quem vendia a quem e, ou eventualmente até a terceiros, sendo certo que nada resulta demonstrado que haja sido comunicado pela Ré A à Autora que ia vender o prédio em causa a si própria e a terceiro, preço da transacção, condições de pagamento, datas, etc, razão esta pela qual o tribunal respondeu de modo negativo a todos os demais itens. Assinala-se que o marido da Ré A e quinta testemunha a ser ouvida, D vem dizer ter ouvido uma conversa telefónica entre a esposa e a Autora em Maio de 2013 em que aquela teria dito que ia por o prédio em seu nome e vender uma parte a um terceiro, mas considerando a relação desta testemunha com a Ré A, o interesse desta testemunha num certo sentido de solução, a forma como o depoimento foi prestado e falta de alicerce desta versão em outros depoimentos ou documentos que nos permitissem concluir com a certeza jurídica necessária pela verdade do depoimento, outra solução não podemos retirar que não seja a de desconsiderar tal testemunho nessa parte, sendo certo que, tratando-se de telefonema poderia ter ouvido o que a esposa aqui Ré A disse, mas nunca as respostas da Autora dado que a chamada não estava em alta voz como lhe foi perguntado…”.
Ora, face ao teor da fundamentação da convicção acima transcrita e atentas as regras e entendimento acima enunciados, não se nos afigura que o Tribunal a quo tenha cometido erro na apreciação da prova ou violou as regras probatórias legais ou experiências da vida comum, susceptíveis de censura e reparação.
Não é de acolher a posição das Rés relativa à inversão do ónus da prova em consequência da falta de decisão sobre o seu requerimento da diligência probatória, face ao já decidido no ponto nº 1 do presente aresto.
Aliás, a diligência probatória requerida (o registo das chamadas telefónicas efectuadas a fornecer pela CTM) apenas pode provar, máxime, que foram efectuadas chamadas telefónicas entre a Autora e a Ré A, mas já não o conteúdo das conversas telefónicas no sentido de que esta tinha informado, nas conversas telefónicas, à Autora “sobre o projecto de venda na qualidade de procuradora de E”.
Portanto, não se pode dizer que a falta desse elemento probatório lhes impediram a produzir prova dos factos que pretendiam provar.
Por fim, cumpre realçar ainda que a falta da decisão em causa resulta da própria omissão do Tribunal a quo, pelo que nunca pode imputar esta falta na esfera jurídica da Autora, no sentido de inverter o ónus da prova das partes.
Assim, é de negar provimento ao recurso na parte respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto.
3. Da requerida condenação das Rés como litigantes de má-fé:
A Autora, ora Recorrida, requereu a condenação das Rés como litigantes de má-fé, por terem interposto o presente recurso jurisdicional cuja falta de fundamento não deviam ignorar, com o único objectivo de impedir o trânsito em julgado da sentença.
Não obstante já supra julgamos que todos os argumentos do recurso interposto pelas Rés são improcedentes, tal facto não implica necessariamente que elas tinham agido de má-fé na interposição do mesmo, pois não existe mais elementos nos autos que nos permitem retirar tal conclusão.
Assim, é de julgar improcedente o pedido da condenação das Rés como litigantes de má-fé.
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Tudo visto, resta decidir.
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IV – Decisão
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em:
- negar provimento ao recurso interposto, confirmando a sentença recorrida; e
- absolver as Rés do pedido da condenação como litigantes de má-fé.
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Custas do recurso jurisdicional pelas Rés.
Custas do incidente da condenação da litigância de má-fé pela Autora com 2UC taxa de justiça.
Notifique e registe.
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RAEM, aos 17 de Maio de 2018.
Ho Wai Neng
José Cândido de Pinho
Tong Hio Fong
20
72/2018