Processo nº 251/2018(I)
(Autos de recurso penal)
(Incidente)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. Em 19.04.2018, proferiu este T.S.I. acórdão com o teor seguinte:
“Relatório
1. Por Acórdão datado de 08.09.2017 do Colectivo do T.J.B. decidiu-se condenar A, arguido com os sinais dos autos, como autor da prática de 1 crime de “ofensa grave à integridade física por negligência”, p. e p. pelo art. 142°, n.° 3 e 138°, al. c) do C.P.M., e art. 93°, n.° 1 da Lei n.° 3/2007, na pena de 1 ano e 4 meses de prisão, suspensa na sua execução por 2 anos, assim como na pena acessória de inibição de condução por 1 ano e 3 meses, também suspensa na sua execução por 1 ano.
Em relação ao “pedido de indemnização civil” pela ofendida B enxertado nos autos, decidiu-se julgar o mesmo parcialmente procedente, condenando-se a demandada civil “C INSURANCE (HONG KONG) LIMITED”, (C保險(香港)有限公司), a pagar à referida demandante a quantia total de MOP$571.780,00 e juros; (cfr., fls. 429 a 444-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
*
Inconformadas com o assim decidido, do mesmo recorreram as referidas demandada seguradora e demandante.
A demandada seguradora, motivou para concluir afirmando o que segue:
“1. A Demandante deduziu pedido de indemnização cível contra a Demandada (fls. 101 a 127), tendo requerido o pagamento de uma compensação no montante global de MOP$858.444.00, correspondente a MO$98.910.00, a título de 1/3 de ITA, em falta; MOP$208.000.00, a título de 8 meses de salários não pagos; MOP$280.800.00, a título de 10% de IPP; MOP$40.734.00, a título de tratamentos médicos; MOP$80.000.00, a título de danos não patrimoniais; e MOP$150.000.00, a título de dano biológico.
2. Uma vez que simultaneamente corria a acção laboral sob o Proc. LB1-15-0395-LAE, a Demandante condicionou o pagamento da indemnização pela IPP de 10% ao pagamento que viesse a receber na acção laboral.
3. A fls. 120 da sua Petição Inicial, sob o artigo 47.°, sob o título “II – indemnização correspondente a 10% de incapacidade”, pediu o pagamento de uma compensação pela incapacidade de 10%, “com recurso aos parâmetros do artigo 47.° do DL 40/95/M, de 13 de Agosto, caso esta indemnização não seja liquidada em sede de processo laboral”, no montante de MOP$280.000.00, por referência ao salário de MOP$26.000.00.
4. A fls. 123, reiterou a Demandante, que "Deste valor [do valor total de MOP$858.444.00] serão retirados os montantes aqui peticionados e que possam vir a ser liquidados, no futuro, na acção laboral por acidente de viação em serviço, que corre seus termos neste TGB” (sic)
5. A fls. 185 - 188, a Demandante, por requerimento autónomo, apresentado em 18/03/2016, juntou aos autos a sentença proferida no processo especial de trabalho, mencionando que “irá receber as quantias indemnizatórias por acidente de trabalho, as quais devem ser deduzidas, conforme já peticionado, ao pedido cível formulado no processo em epígrafe.”
6. Da sentença laboral consta que “a companhia terá que pagar à ofendida a quantia de MOP$233.069.40 (MOP$2l.580.50 x 108 x 10%) como compensação pela Incapacidade Permanente Parcial.”
7. Após a discussão da matéria de facto, dada a palavra à mandatária da Demandante para alegações finais, pela mesma foi dito o seguinte:
TRANSLATOR 1 - RECORDED ON 29 JUNE-2017 AT 12.38.35
Min 26.21 – “vem requerer a arbitragem de uma indemnização do valor total da petição menos o valor já recebido em processo laboral, MOP$280.000.00, que foi recebido em processo Laboral de acidente de trabalho pela ofendida e que portanto, reduz esse valor que era peticionado ao pedido total”.
Min 27.10 – “o total corresponde a MOP$579.265.00, portanto, como eu referi, retirando MOP$280.800.00 do item n.° 2 do pedido cível”.
8. Por lapso, a mandatária da Demandante referiu erradamente o valor de MOP$280.800.00 quando pretendia dizer MOP$233.069.40, o que desde já se requer seja relevado, e tomado em consideração o último valor para efeitos do presente recurso.
9. A Recorrente situa a sua discordância com a decisão no facto de ter corrido seus termos pelo Juízo Laboral, paralelamente à acção criminal, a acção fundada em acidente de trabalho (dada a natureza mista do acidente, simultaneamente de viação e laboral), em cuja sentença de fls. 187 e 188, foi fixada uma indemnização de MOP$233.069.40 a título de incapacidade permanente parcial (IPP) decorrente do mesmo acidente – facto que foi levado ao conhecimento destes autos pela vítima, B, através de requerimento subscrito pela sua ilustre mandatária datado de 18 de Março de 2016, a fls. 185 a 188, no qual expressamente fez consignar que o recebimento das quantias indemnizatórias por acidente de trabalho “deveriam ser deduzidas, conforme já peticionado, do pedido cível formulado no processo em epígrafe” na acção criminal, pelo que o valor global da indemnização fixada nestes autos, deduzido o montante indemnizatório fixado na sentença laboral, deveria ter sido no montante de MOP$338.710.60 (MOP$571.780.00 – MOP$233.069.40), pois tal condenação na acção laboral foi do efectivo conhecimento deste douto Tribunal, conforme acima alegado, pedido, aliás, repetido pela referida ilustre mandatária nas suas alegações orais finais produzidas nestes autos e que havia já, antes, sido referido no pedido cível de indemnização enxertado de fls. 101 a 127, no qual a ofendida fizera, logo aí, consignar, que, do pedido formulado nestes autos “serão retirados os montantes aqui peticionados e que possam vir a ser liquidados, no futuro, na acção laboral por acidente de viação em serviço, que corre os seus termos por este TGB” – sendo que o valor indemnizatório de MOP$233.069.40 arbitrado no processo laboral supra-identificado veio, efectivamente, a ser pago pela Companhia de Seguros D Insurance (Macau) Co. Ltd, por cheque datado de 18/03/2016, conforme prova de pagamento efectuado no processo laboral, protestando juntar certidão judicial.
10. O referido requerimento consubstancia uma modificação do pedido, sem oposição da Demandada e, por isso, por acordo entre as partes, como dispõe o artigo 216.° do Código de Processo Civil, ex vi art.° 4.° do Código de Processo Penal.
11. Dispõe o art.° 400.°, n.° 1, do Código de Processo Penal que “O recurso pode ter por fundamento quaisquer questões de direito de que pudesse conhecer a decisão recorrida”.
12. Estipula o art.° 216.° do Código de Processo Civil que “Havendo acordo das partes, o pedido e a causa de pedir podem ser alterados ou ampliados em qualquer altura, em primeira ou segunda instância, salvo se a alteração ou ampliação perturbar inconvenientemente a instrução, discussão e julgamento da causa.”
13. E dispõe o art.° 566.° do CPC, no n.° 1, que “Sem prejuízo das restrições estabelecidas noutras disposições legais, nomeadamente quanto às condições em que pode ser alterada a causa de pedir, deve a sentença tomar em consideração aos factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que se produzam posteriormente à proposição da acção, de modo que a decisão corresponda à situação existente no momento do encerramento da discussão”; e no n.° 2 que “Só são, porém, atendíveis os factos que, segundo o direito substantivo aplicável, tenham influência sobre a existência ou conteúdo da relação material controvertida”.
14. A sentença proferida na acção laboral conexa, junta aos autos a fls. 185 a 188 constitui um facto modificativo do direito que se produziu posteriormente à proposição da acção e deveria ter sido tomado em consideração pelos Meritíssimos Julgadores nos termos que supra deixámos já alinhados, face à condenação da Companhia de Seguros D Insurance (Macau) Co. Ltd, seguradora responsável pelos danos resultantes do simultâneo acidente de trabalho e de viação, reduzindo-se o montante indemnizatório perante a tomada em consideração da decisão ali proferida e que foi junta a estes autos.
15. A Demandante reduziu, efectivamente, o seu pedido, por acordo com a Demandada – na medida em que não houve oposição – pelo que competia ao douto Tribunal a quo tornar em consideração tal modificação do pedido de indemnização pela IPP de 10%, vertendo na douta decisão a diferença entre o pedido cível inicial dos presentes autos e o que veio a ser o valor estabelecido para a mesma incapacidade na sentença proferida no processo laboral.
16. Mal andou o douto Tribunal a quo, incorrendo em erro na aplicação do direito, maxime do artigo 216.° do Código de Processo Civil.
17. Correndo a acção laboral por um juízo do mesmo tribunal por onde correram estes autos de natureza criminal, o facto de não ter sido junto a estes autos o cheque da seguradora laboral passado em favor da ofendida de ambos os processos emitido em pagamento da quantia indemnizatória em que foi condenada poderia ter sido suprido pelo douto colectivo de juízes, face à norma do art.° 514.°, n.° 2 do CPC onde.se dispõe que “(…) não carecem de alegação e prova os factos de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das sua funções”, sendo que “quando o tribunal se socorra destes factos, deve juntar ao processo documento que os comprove”.
18. Estipula o n.° 1 do art.° 58.° do DL. N.° 40/95/M que quando o acidente for, simultaneamente, de viação e de trabalho, a reparação é efectuada pela seguradora para quem foi transferida a responsabilidade pelo acidente de trabalho, nos termos deste diploma, ficando esta sub-rogada nos direitos do sinistrado em relação à seguradora do veículo causador do acidente de viação.
19. Não pode a Recorrente ser compelida a pagar a compensação duas vezes, pelo mesmo facto, na medida em que assiste à Companhia D, o direito de sub-rogação.
20. Como decorre do n.° 2 do supra-referido artigo, a seguradora responsável pelo acidente de viação pode liquidar directamente ao segurado, se a seguradora responsável pelo acidente de trabalho não reclamar o pagamento das quantias que pagou.
21. Padece a douta decisão ora em crise de erro na aplicação dos artigos 216.° e 566.°, ambos do Código de Processo Civil, normativos aplicáveis ao presente caso, ex vi, artigo 4.° do Código de Processo Penal, caindo assim na previsão legal do art.° 400.° n.° 1 do Código de Processo Penal, pelo que se requer (a) a revogação da decisão recorrida no que tange ao valor indemnizatório global fixado nestes autos, reduzindo-o nos termos que se expuseram ou; (b) o reenvio dos autos para novo julgamento”; (cfr., fls. 460 a 472).
Por sua vez, no seu recurso, produziu a demandante as conclusões seguintes:
“I – CONDENAÇÃO EM OBJECTO DIVERSO DO PEDIDO E EM MATÉRIA TRANSITADA EM JULGADA PELO TRIBUNAL LABORAL
1 – O Tribunal a quo determinou a atribuição à ofendida de uma indemnização em sede de 10% IPP, valor de 280.800 patacas, tendo já tido anteriormente arbitrada à mesma ofendida uma indemnização por IPP – Incapacidade Parcial Permanente de 10%, no valor de MOP$233.069,40, no Processo Laboral que correu com o n° LB1-15-0395-LAE, transitado em julgada e junta aos autos pela ofendida.
2 – Tendo feito caso julgado no processo laboral não podia de novo ser atribuída nova indemnização a título de IPP no processo cível.
3 – Não colhe o fundamento transcrito da sentença ora em crise (pág. 24): Considerando que os autos do processo laboral não revelam que a indemnização da IPP tivesse sido paga, é atendido o pedido formulado pela autora no processo civil de receber o montante de MOP 280.800,00 a título de indemnização de perda de 10% de capacidade de trabalho ou seja MOP 280.800.00
4 – A ofendida na petição cível requereu a IPP sob a condição resolutiva da mesma não ser liquidado (tornada líquida) em sede de processo laboral.
5 – A douta sentença recorrida ao dizer que: Considerando que os autos do processo laboral não revelam que a indemnização IPP tivesse sido paga, é atendido o pedido formulado pela autora do processo cível de receber o montante de MOP 280.800,00 a título de indemnização de perda de 10% de capacidade de trabalho, ou seja MOP 280.800,00
6 – Vem atribuir em parte algo já atribuído em sede laboral matéria do conhecimento do Tribunal por existir prova nos autos cíveis da sentença laboral.
7 – Tribunal a quo negou liminarmente o pedido de indemnização por dano biológico, dano futuro, formulado na petição cível pela ofendida, dano ressarcível autonomamente nos termos do direito civil, com fundamento que tinha sido atribuído no processo cível indemnização de 10% de IPP e não podia atribuir a mesma indemnização duas vezes, considerando assim o dano biológico subsumível no valor atribuído pelo Tribunal de MOP 280.800,00.
8 – Ora como se colocam aqui problemas de interpretação jurídica e de aplicação de normas jurídicas a factos provados, a sentença do Tribunal a quo, deve ser considerada nula e de nenhum efeito, nos termos do artigo 571° n°1 alíneas d) e e) do CPC.
II – Da denegação da indemnização correspondente aos salários entre Julho de 2015 e Fevereiro de 2016 e do Dano Biológico
9 – Por outro lado, a ofendida viu denegados pela sentença ora recorrida:
a) os salários perdidos entre Julho de 2015 e Fevereiro de 2016 no valor de MOP$208.000,00 patacas, 8 meses de salário de MOP$26.000,00 no total de MOP$208.000,00, e da
b ) indemnização por dano biológico no valor de MOP$150.000,00, ambas no valor total de MOP$358.000,00
10 – Nos termos do artigo n.°1 do 558° do Código Civil de Macau o dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado, como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão.
11 – Na fixação da indemnização pode o tribunal atender aos danos futuros, desde que sejam previsíveis. (n° 2 do artigo 558°)
12 – O Tribunal a quo não verificou a existência autónoma de danos biológicos futuros permanentes do lesado, provados no processo, a quem foi determinada uma IPP de 10%.
13 – Ficou provado no processo e em julgamento a existência de sequelas nos membros inferiores permanentes e irreversíveis, causas de dores, mal estar e de fisiterapia prologada, estando a lesada impossibilitada de permanecer longas horas de pé, como exige a profissão da de Casino Supervisor.
14 – A ofendida ora recorrente, rejeita a posição do Tribunal a quo que considerou não haver danos futuros ressarcíveis per si, nos termos do n° 2 do artigo 558° do Código Civil, e de forma obscura os inclui nos 10% de IPP, e no valor de MOP$280.800,00.
15 – Os danos biológico, futuros, refletem-se em todos os campos da vida da ofendida, e não só na vida profissional e ao longo de toda a vida física.
16 – São danos de natureza diferente e de ressarciamento autónomo dos emergentes de acidentes de trabalho, regulados por diploma específico, Decreto-Lei n° 40/95/M, de 14 de Agosto.
17 – O qual define a fórmula para determinação das prestações a atribuir ao trabalhador se do acidente de trabalho resultar redução da capacidade de trabalho ou de ganho sendo as mesmas determinadas em acção laboral por remessa dos autos pela DSAL ou por iniciativa do Ministério Público em representação dos trabalhadores.
18 – A percentagem da IPP – Incapacidade Parcial Permanente, definida em processo laboral, nos termos do artigo 47° do DL n° 40/95/M, de 14 de Agosto, não se confunde nem tem o mesmo fundamento jurídico axiológico do pedido cível de indemnização por dano biológico, como dano futuro autonomamente ressarcível, que a ofendida interpôs no enxerto cível do processo crime, com fundamento no artigo 558° n° 2 do Código Civil.
19 – Com base na prova produzida de existência de um dano físico, biológico permanente, com um índice de IPP de 10%, o Tribunal a quo deveria ter decidido atribuir o quantum indemnizatório de MOP$ 150.000,00 à lesada, peticionado a título de danos futuros, mas não o fez, e em vez disso atribuiu uma indemnização por IPP de 10%, já decretada em sede de juízo laboral, com sentença transitada em julgado”; (cfr., fls. 493 a 512).
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Adequadamente processados os autos, cumpre apreciar.
Fundamentação
Dos factos
2. Estão “provados” e “não provados” os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 431 a 435 e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.
Do direito
3. Como resulta do que até aqui se deixou relatado, dois são os recursos trazidos à apreciação deste T.S.I., ambos tendo como objecto o segmento decisório ínsito no Acórdão do T.J.B. com o qual se emitiu pronúncia em relação ao pedido de indemnização civil enxertado nos presentes autos.
No primeiro, é recorrente a demandada seguradora, e no segundo, a demandante.
Como nota inicial, consigna-se que no dito pedido civil reclamava a demandante uma indemnização no valor total de MOP$854.444,00, resultante da soma das parcelas pretendidas a título de,
- “incapacidade para o trabalho e perda de salário”, no montante de MOP$306.910,00;
- “incapacidade parcial permanente (de 10%)”, no montante de MOP$280.800,00;
- “despesas médicas”, no montante de MOP$40.734,00; e,
- “danos morais”, no montante de MOP$150.000,00; (cfr., fls. 101 a 127).
Realizado o julgamento, proferiu o Colectivo do T.J.B. Acórdão onde, apreciando a pretensão da demandante julgou-a parcialmente procedente, fixando-lhe uma indemnização no valor total de MOP$571.780,00, resultante da soma da quantia de MOP$176.910,00, (MOP$98.910,00 + MOP$78.000,00), arbitrada a título de “perdas salariais”, MOP$280.800,00 a título da “incapacidade parcial permanente” (de 10%), MOP$34.070,00 por “despesas médicas” e MOP$80.000,00 por “danos não patrimoniais”.
–– Do “recurso da demandada”.
Perante o decidido, (e em síntese que se julga adequada), com o seu recurso pretende a demandada (seguradora) que do montante indemnizatório (global) fixado se reduza o quantum de MOP$280.800,00 arbitrado a título de “incapacidade parcial permanente” (de 10%) da demandante.
Alega – essencialmente – que por tal “incapacidade parcial permanente” foi já a demandante indemnizada com a quantia de MOP$233.069,40 no âmbito de um outro processo (de natureza laboral), e que a se manter o decidido, irá a demandante receber dois montantes indemnizatórios pelo mesmo dano.
Verificando-se que a demandante também é desta opinião, confirmando-se que por tal “incapacidade”, foi-lhe já arbitrado e pago (por uma outra seguradora), o dito montante, no âmbito dos Autos de Acção Laboral que correram termos no T.J.B. com o n.° LB1-15-0395-LAE, (cfr., fls. 185 a 188), impõe-se fazer aqui uma correcção em conformidade, anulando-se pois o respectivo segmento decisório que condenou a (aqui) demandada a pagar à demandante a quantia de MOP$280.800,00 pela sua incapacidade parcial permanente.
Nota-se que em causa podia estar a aplicação do prescrito no art. 58° do D.L. n.° 40/95/M que trata da matéria dos “Acidentes de Viação e de trabalho”.
Porém, não se tendo (oportunamente) colocado nos presentes autos a questão de ser o acidente aqui tratado um acidente de “viação e de trabalho”, pertinente não se nos apresenta que, agora, se accione o referido comando legal.
Resolvida que assim nos parece ficar a “questão” pela demandada colocada em sede do seu recurso, continuemos.
–– Do “recurso da demandante”.
No seu recurso, suscita (também) a demandante a questão da “ressarcibilidade do seu dano biológico”, alegando que o Tribunal a quo o incluiu, indevidamente, na indemnização da referida incapacidade parcial permanente.
Por sua vez, insiste na “indemnização correspondente aos seus salários entre o mês de Julho de 2015 a Fevereiro de 2016”.
Ora, começando-se por esta pretendida indemnização pelos salários não recebidos durante o período de Julho de 2015 a Fevereiro de 2016, cremos que o Tribunal a quo não merece censura.
Com efeito, (e como entendeu e assim o consignou o T.J.B.), nos autos não existem elementos probatórios – v.g., atestados médicos – que confirmam que durante este período a recorrente teve de faltar ao serviço em consequência das lesões que sofreu com o acidente de viação.
E, perante isto, nesta parte, há que confirmar o decidido.
*
Vejamos agora do alegado “dano biológico”.
Há que começar por clarificar este alegado “dano”.
Como se viu, a demandada ora recorrente pediu MOP$280.800,00 a “título de incapacidade parcial permanente”, (questão atrás também tratada), e, em sede do “Capítulo IV”, do seu enxerto civil, sob o título “Danos Morais”, reclamou o montante de MOP$150.000,00, alegando o que consta dos art°s 49° a 51° do pedido apresentado, (onde faz referência à existência de “um dano físico, biológico permanente”), invocando também o douto Acórdão do Vdo T.U.I. de 25.04.2007, Proc. n.° 20/2007, onde se consignou que:
“A perda da capacidade de ganho por incapacidade permanente parcial ou total é indemnizável, ainda que o lesado mantenha o mesmo salário que auferia antes da lesão”, consignando-se aí igualmente que “No cômputo da indemnização por perda da capacidade de ganho por incapacidade permanente parcial, o tribunal deve atender ao disposto no n.º 5 do art. 560.º do Código Civil, bem como recorrer à equidade, nos termos do n.º 6 do art. 560.º do mesmo Código”.
Mostrando-se de acompanhar o assim entendido, afiguram-se-nos, porém, adequadas, umas breves considerações sobre a questão.
O “dano” é a perda in natura que o lesado sofreu, em consequência de certo facto, nos interesses (materiais, espirituais ou morais) que o direito violado ou a norma infringida visam tutelar.
Pode revestir “a destruição, subtracção ou deterioração de certa coisa, material ou incorpórea”, (dano real), ou ser “reflexo do dano real sobre a situação patrimonial do lesado” (dano patrimonial); (vd., A. Varela, in “Das Obrigações em Geral”, Vol. I, pág. 598).
Dentro do “dano patrimonial”, cabem e são indemnizáveis, o dano “emergente” – o prejuízo causado nos bens ou nos direitos existentes na titularidade do lesado – e os “lucros cessantes” – os benefícios que o lesado deixou de obter por causa do facto ilícito e a que ainda não tinha direito na data da lesão.
Nos termos do n.° 2 do art. 558° do C.C.M., na fixação da indemnização, pode o tribunal atender ainda aos “danos futuros”, desde que previsíveis.
Dispõe também o art. 556° do mesmo C.C.M. – onde se consagra o “princípio da restauração natural” – que a indemnização deve reconstituir a situação anterior à lesão, isto é, a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.
Não sendo possível essa “reconstituição natural” – como não o é em casos como o dos autos, em que não pode devolver-se ao lesado a “capacidade e integridade física que tinha antes do acidente” – a indemnização deve ser fixada em dinheiro, (art. 560°, n.° 1), e tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem os danos, (art. 560°, n.° 5).
Por sua vez, o “dano corporal”, lesivo da saúde, (“dano biológico”), está na origem de outros danos, (“danos – consequência”), designadamente, aqueles que se traduzem na perda, total ou parcial, da capacidade de trabalho.
Como se decidiu no Ac. do S.T.J. de 19.02.2015, Proc. n.° 99/12, “O dano biológico consubstancia uma violação da integridade físico-psíquica de uma pessoa, com tradução médico-legal, sendo que, estando em causa a incapacidade para o trabalho, o mesmo existe haja ou não perda efectiva de proventos laborais”, afirmando aí mesmo que: “(…) havendo uma incapacidade permanente, mesmo que sem rebate profissional, sempre dela resultará uma afectação da dimensão anatomo-funcional do lesado, proveniente da alteração morfológica do mesmo e causadora de uma diminuição da efectiva utilidade do seu corpo ao nível de actividades laborais, recreativas, sexuais, sociais ou sentimentais, com o consequente agravamento da penosidade na execução das diversas tarefas que de futuro terá de levar a cargo, próprias e habituais de qualquer múnus que implique a utilização do corpo.
E é neste agravamento de penosidade que se radica o arbitramento de uma indemnização”; (in “www.dgsi.pt”).
Ou, como em recente Ac. da Rel. de Guimarães se consignou, “O dano biológico, concebido como défice permanente da integridade físico-psíquica, assume feição patrimonial, ainda que não se reflicta no estatuto remuneratório do lesado”; (cfr., o Ac. de 15.02.2018, Proc. n.° 652/16).
Porém, e como – em nossa opinião, bem – nota Maria da Graça Trigo: “O dano biológico, sendo um dano real ou dano-evento, não deve, em princípio, ser qualificado como dano patrimonial ou não patrimonial, mas antes como tendo consequências de um e/ou outro tipo; e também por isso, em nosso entender, o dano biológico não deve ser tido como um dano autónomo em relação à dicotomia danos patrimoniais/danos não patrimoniais”; (in, “Adopção do Conceito de «Dano Biológico» pelo Direito Português”).
Seja como for, o certo é que o dano por “perda de capacidade” ou “incapacidade”, (e que como se viu, tem a natureza de “dano patrimonial”), é distinto e autónomo do “dano não patrimonial” que se reconduz à dor, desgosto e sofrimento de uma pessoa que se sente fisicamente diminuída para toda a vida; (sobre esta “distinção” e “autonomia”, vd., v.g., os Acs. do S.T.J. de 03.03.2016, Proc. n.° 4931/11; de 07.04.2016, Proc. n.° 237/13; e da Rel. do Porto de 27.09.2016, Proc. n.° 2007/13, e de 11.10.2016, Proc. n.° 805/15, e Sinde Monteiro in “Estudos sobre a Responsabilidade Civil”, pág. 248).
Em suma, o que nos parece adequado é que o chamado “dano biológico”, consistente numa perda de capacidade ou integridade físico-psíquica, deve ser objecto de indemnização a título de “dano patrimonial” e “não patrimonial”.
Dito isto, constatando-se que pela sua “incapacidade parcial permanente” de 10% foi já a demandante indemnizada, e verificado estando que este dano por “perda de capacidade” é autónomo do “dano não patrimonial” pela sua “diminuição física”, resta (apenas) ver se adequado é o quantum fixado a tútulo de indemnização pelos seus “danos não patrimoniais”.
Pois bem, como se viu, por tais danos pedia a demandante MOP$150.000,00 e o T.J.B. fixou o montante de MOP$80.000,00.
Importa aqui ter presente que se tem entendido que quando o cálculo da indemnização haja assentado (decisivamente) em juízos de equidade, não deve caber ao Tribunal ad quem a determinação exacta do valor pecuniário a arbitrar, devendo centrar a sua censura na verificação dos limites e pressupostos dentro dos quais se situou o referido juízo de equidade tendo em conta o “caso concreto”, (cfr., v.g., os Acs. do S.T.J. de 05.11.2009, Proc. n.° 381, de 10.10.2013, Proc. n.° 643 e de 20.11.2014, Proc. n.° 5572, in “www.dgsi.pt”, e os Acs. deste T.S.I. de 14.04.2016, Proc. n.° 238/2016, de 12.05.2016, Proc. n.° 326/2016 e de 04.04.2018, Proc. n.° 53/2018), e não se olvidando também que na ausência de uma definição legal o julgamento pela equidade é sempre o produto de uma decisão humana que visará ordenar determinado problema perante um conjunto articulado de proposições objectivas, distinguindo-se do puro julgamento jurídico por apresentar menos preocupações sistemáticas e maiores empirismo e intuição; (cfr., M. Cordeiro in, “O Direito”, pág. 272 e o Ac. da Rel. do Porto de 21.02.2017, Proc. n.° 2115/04, in “www.dgsi.pt”).
E, nesta conformidade, em nossa opinião, este montante de MOP$80.000,00 apresenta-se (evidentemente) “curto” como indemnização pelos danos não patrimoniais pela demandante sofridos.
Com efeito, tenha-se pois em conta que provado está (nomeadamente) que:
- “Em consequência do acidente, a ofendida sofreu fracturas do osso do fémur, e das 3°, 5° e 7° costelas, laceração dos tecidos moles do cotovelo esquerdo e escoriações em diversas partes do corpo, …”;
- “O embate resultou para a ofendida as lesões descritas a fls. 60, com um período de 16 meses de cura - 480 dias”; e,
- “Num período de um ano após o acidente esteve internada entre 17/05/2014 e 26/06/2014, e entre 21/04/2015 e 27/04/2015, este último internamento para remoção das talas mecânicas, continua ao fim de 21 meses após o acidente a necessitar de fisioterapia para poder retomar as suas funções de Pit Supervisor no Casino X em condições que não provoquem a regressão dos resultados já obtidos com os tratamentos de reabilitação e fisioterapia”; (cfr., fls. 432-v a 433-v).
E, perante esta factualidade, e evidente sendo todo o sofrimento, angústia, desgosto e inconvenientes que a demandante – pessoa com cerca de 40 anos de idade – sofreu, assim como o que irá ter de suportar em consequência da sua incapacidade parcial permanente de 10%, excessivo não se nos apresenta a peticionada indemnização no valor de MOP$150.000,00.
Tudo visto, resta decidir.
Decisão
4. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam conceder provimento ao recurso da demandada seguradora, concedendo-se parcial provimento ao da demandante.
Custas pela demandante na proporção do seu decaimento.
Registe e notifique.
Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.
(…)”; (cfr., fls. 561 a 576 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Em 30.04.2018, veio a recorrente B requerer a aclaração do transcrito aresto deste T.S.I.; (cfr., fls. 583 a 588).
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Sem resposta, foram os presentes autos por despacho do ora relator inscritos em tabela para decisão em conferência; (cfr., fls. 594).
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Nada parecendo obstar, passa-se a decidir.
Fundamentação
2. Duas são as “questões” pela referida recorrente colocadas.
–– A primeira, diz respeito à indemnização pela sua “Incapacidade Parcial Permanente (I.P.P.)”.
Diz a mesma que não devia este T.S.I. anular (totalmente) o segmento decisório do T.J.B. que por tal incapacidade lhe fixou o quantum de MOP$280.800,00, e que tão só se devia deste mesmo montante deduzir o de MOP$233.069,40 que lhe foi atribuído no âmbito do Processo n.° LB1-15-0395-LAE.
Cremos que tem razão.
De facto, não existindo “litispendência” ou “caso julgado”, tendo a demandante (oportunamente) pedido a referida “redução”, e considerando-se também que a “divergência de valores” – atribuídos pela mesma I.P.P. na dita acção laboral e nos presentes autos – se deve a um aumento salarial da demandante, justa se nos apresenta a pretensão apresentada, nesta conformidade se rectificando a decisão prolatada.
–– A segunda questão diz respeito ao quantum indemnizatório pelo alegado “dano biológico” da demandante/recorrente.
Antes de mais, consigna-se que houve da nossa parte deficiente compreensão do pedido civil pela ora reclamante deduzido e enxertado nos autos, (pelo qual, desde já, nos penitenciamos).
Com efeito, considerou-se que no “Capítulo IV” do seu pedido civil e com o título – epígrafe – de “Danos morais”, (e pelos motivos que na nossa decisão também se deixou explicitado), pedia a reclamante a quantia de MOP$150.000,00, e que neste montante estava incluída a indemnização pelo mencionado “dano biológico”.
E, de uma nova análise aos autos, conclui-se que, de facto, pelos ditos “danos não patrimoniais” pedia-se MOP$80.000,00, e, cumulativamente, pelo referido “dado biológico”, o quantum de MOP$150.000,00.
Não obstante o aludido lapso na compreensão do peticionado, afigura-se-nos de manter o que se deixou exposto no Acórdão reclamado quanto à “natureza” do dito “dano biológico”, nomeadamente, que “não deve, em princípio, ser qualificado como dano patrimonial ou não patrimonial, mas antes como tendo consequências de um e/ou outro tipo; e também por isso, não deve ser tido como um dano autónomo em relação à dicotomia danos patrimoniais/danos não patrimoniais”, e ainda que o chamado “dano biológico”, consistente numa perda de capacidade ou integridade físico-psíquica, deve ser objecto de indemnização a título de “dano patrimonial” e “não patrimonial”.
Seja como for, cremos que também na parte em questão se deve acolher a pretensão apresentada.
É que, em virtude do já aludido lapso, e considerando ser o quantum (total) de MOP$150.000,00 o peticionado, fixou este Tribunal este mesmo montante como “indemnização pelos danos não patrimoniais” da ora reclamante, (consignando-se até que não se apresentava excessivo).
Verificando-se que não obstante inserido no “Capítulo IV” dos “danos morais”, pelos quais pedia MOP$80.000,00, pedia também a reclamante MOP$150.000,00 a título do seu “dano biológico”, e, assim, não estando esta Instância condicionada por este último valor na fixação da “indemnização por danos não patrimoniais”, ao mesmo podendo somar o de MOP$80.000,00, cremos que, atentas as lesões, as dores e inconvenientes que sofreu e terá que suportar a demandante, aqui, sendo de ponderar também o desgosto pela referida “incapacidade”, excessivo (ainda) não se apresenta o quantum de MOP$230.000,00 a título de indemnização pelos referidos “danos não patrimoniais”.
Resolvidas que assim nos parecem as questões colocadas, e, notando-se, que do agora decidido importa retirar as devidas consequências em matéria de custas a pagar pela ora requerente no que toca ao seu vencimento, resta decidir.
Decisão
3. Nos termos do exposto, rectifica-se o decidido no acórdão que antecede, reduzindo-se para MOP$47.730,60, a indemnização pela I.P.P. da demandada/recorrente, fixando-se a título de indemnização pelos seus “danos não patrimoniais” o de MOP$230.000,00.
Sem tributação, (quanto ao presente incidente).
Registe e notifique.
Macau, aos 24 de Maio de 2018
José Maria Dias Azedo
Tam Hio Wa
Chan Kuong Seng (remetendo-me à minha declaração de voto apendiculada ao Acórdão ora sob reclamação).
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