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Processo nº 301/2018
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Em audiência colectiva no T.J.B. respondeu A, arguido com os restantes sinais dos autos, vindo a ser condenado pela prática como autor material e em concurso real de:
- 1 crime de “arma proibida”, p. e p. pelo art. 262°, n.° 3 do C.P.M., na pena de 5 meses de prisão;
- 28 crimes de “burla como modo de vida”, p. e p. pelo art. 211°, n.° 1 e 4, al. b) do C.P.M., na pena de 2 anos e 6 meses de prisão cada; e,
- 5 crimes de “burla como modo de vida”, p. e p. pelo art. 211°, n.° 1, 3 e 4, al. b) e 196°, al. a) do C.P.M., na pena de 2 anos e 6 meses de prisão cada;
- Em cúmulo jurídico com a pena aplicada no âmbito do Proc. n.° CR5-15-0104-PCC, fixou-lhe o Tribunal a pena única de 9 anos e 6 meses de prisão, assim como no pagamento das indemnizações discriminadas na sentença do T.J.B.; (cfr., fls. 1543 a 1595 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Inconformado, o arguido recorreu para imputar ao Acórdão recorrido o vício de “errada aplicação de direito”, pugnando pela sua absolvição quanto ao crime de “arma proibida”, e pedindo a redução da pena; (cfr., fls. 1601 a 1609).

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Respondendo, diz o Ministério Público que o recurso não merece provimento; (cfr., fls. 1611 a 1613-v).

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Neste T.S.I., e em sede de vista, juntou o Exmo. Representante do Ministério Público o seguinte douto Parecer:

“A recorre do acórdão de 28 de Fevereiro de 2018, do 3.° juízo criminal, que o condenou na pena global de 9 anos e 6 meses de prisão, resultante do cúmulo jurídico entre as penas pelos crimes de detenção de arma proibida (1) e de burla (33) objecto de julgamento nos presentes autos e as penas que lhe foram aplicadas por dois crimes de burla no âmbito do processo CR5-15-0104-PCC.
Alega que não podia ter sido condenado pelo crime de detenção de arma proibida, justamente porque foi considerado não provado que ele detivesse um x-acto que podia servir como arma. E, quanto à pena, que reputa excessiva, sustenta que deveria ter-lhe sido imposta uma pena inferior à que o colectivo teve por adequada para cada um dos crimes de burla por que foi condenado.
Na sua resposta à motivação do recurso, o Ministério Público defende a bondade e a manutenção do julgado. Pronuncia-se pela improcedência da pretensão de absolvição relativamente ao crime de detenção de arma proibida, face à matéria a esse respeito tida por provada. No mais, sustenta a adequabilidade das penas e a sua correcta dosimetria.
Vejamos.
A questão da pretensão de absolvição pelo crime de detenção de arma proibida, trazida a escrutínio pelo arguido, tem subjacente a circunstância de o tribunal ter dado como não provado que o arguido deteve um x-acto que podia servir como arma, e ameaçou a vítima B.
Quanto a isto, o Ministério Público em primeira instância contrapõe que ficou provado, além do mais, que o arguido deteve um x-acto que podia servir como arma, e com o objectivo de usá-lo como arma de agressão, teve a intenção de agredir B com o x-acto.
Efectivamente este último trecho, que o Ministério Público chama em abono da condenação, consta do ponto 5 dos factos dados como provados. E aqueloutro trecho, que o arguido invoca para clamar absolvição, consta, na verdade, dos factos não provados. Aparentemente há contradição evidente quanto ao facto “detenção de um x-acto que podia servir como arma”. Neste passo, e tal como resulta traduzido, o acórdão afirma uma coisa e o seu contrário. Todavia, e sempre com a ressalva de eventuais imprecisões derivadas da dificuldade em surpreender o verdadeiro sentido do acórdão, nessa matéria, por via da sua transposição para outra língua, parece possível e plausível a interpretação, face à globalidade do acórdão, de que o que se pretendeu dar como não provado foi que o arguido tinha ameaçado a vítima com o x-acto que detinha e que podia ser usado como arma.
Inclinamo-nos para este entendimento, o que exclui a hipótese de contradição insanável e nos leva à conclusão de que o arguido foi correctamente condenado pelo crime de detenção de arma proibida, improcedendo o recurso quanto à respectiva pretensão de absolvição.
Se assim não viesse porventura a entender-se e este tribunal de recurso tivesse por verificada a existência de contradição insanável, então haveria que devolver o processo à primeira instância para, em novo julgamento, ser removida a contradição.
Quanto à pena e sua dosimetria, nenhuma razão se crê assistir ao recorrente.
Como bem resulta dos autos, ele foi condenado pela prática de 33 crimes de burla, cada um dos quais punível com pena de prisão de 2 a 10 anos, e um crime de detenção de arma proibida, este punível com pena de prisão até 2 anos. Por cada crime de burla foi-lhe aplicada uma pena de prisão de 2 anos e 6 meses, e pelo crime de detenção de arma proibida foi-lhe imposta a pena de 5 meses de prisão. Em cúmulo jurídico destas 34 penas, o tribunal teve por adequada a pena conjunta de 8 anos e 6 meses de prisão.
Posto isto, afigura-se que nem há excesso nas penas parcelares, que se situam próximo do mínimo legal, nem o há na pena do cúmulo, que observa a limitação do artigo 71.°, n.° 2, do Código Penal, situando-se aliás num patamar muito baixo da moldura do cúmulo.
Os crimes de burla foram praticados durante um lapso de tempo considerável, mais de um ano, com dolo intenso e com consequências bastante gravosas para o património das vítimas, enganadas em matéria de emprego, onde a vulnerabilidade das pessoas é acentuada, o que trouxe grande impacto negativo à paz social, como o acórdão fez questão de vincar. O recorrente não é primário e a sua conduta merece acentuada censurabilidade.
Neste contexto, não se crê que a pena se revele desajustada.
De resto, os parâmetros em que se move a determinação da pena, de acordo com a teoria da margem de liberdade, não são matemáticos, devendo aceitar-se a solução encontrada pelo tribunal do julgamento, a menos que o resultado se apresente ostensivamente intolerável, por desajustado aos fins da pena e à culpa que a delimita, o que não se afigura ser o caso.
Ante o exposto, entende-se que a argumentação do recorrente se mostra improcedente, pelo que deve negar-se provimento ao recurso”; (cfr., fls. 1825 a 1826-v).

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Cumpre decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Estão “provados” e “não provados” os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 1564 a 1584-v, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.

Do direito

3. Vem o arguido recorrer do Acórdão que o condenou nos termos atrás relatados, afirmando que o Acórdão recorrido o vício de “errada aplicação de direito”, pugnando pela sua absolvição quanto ao crime de “arma proibida”, e pedindo a redução da pena.

–– E começando pelo dito crime de “arma proibida”, cremos que a decisão recorrida não merece censura.

Vejamos.

Tem este T.S.I. entendido que o vício de “contradição insanável da fundamentação” se verifica quando “se constata incompatibilidade, não ultrapassável, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão”; (cfr., v.g. os recentes Acs. deste T.S.I. de 11.01.2018, Proc. n.° 1146/2017, de 04.04.2018, Proc. n.° 127/2018 e de 19.04.2018, Proc. n.° 66/2018).

Em síntese, quando analisada a decisão recorrida através de um raciocínio lógico se verifique que a mesma contém posições antagónicas ou inconciliáveis, que mutuamente se excluem e que não podem ser ultrapassadas.

E, como recentemente se tem igualmente decidido:

“Há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem-se mutuamente”; (cfr., o Ac. da Rel. de Évora de 21.12.2017, Proc. n.° 165/16).

No caso, e como bem se observa no douto Parecer do Ministério Público, a contradição é meramente “aparamente”, pois que o que se deu como não provado relaciona-se apenas com o crime de “ameaça”, pelo qual o arguido estava acusado e pelo que foi absolvido, assim resultando também claramente da “fundamentação” pelo Tribunal exposta na decisão recorrida.

Dest’arte, e nesta parte, improcede o recurso.

–– Quanto às “penas parcelares”.

Pois bem, aos crimes de “burla como modo de vida” pelo ora recorrente cometidos cabe a pena de 2 a 10 anos de prisão (cada); (cfr., art. 211°, n.° 4 do C.P.M.).

Nos termos do art. 40° do C.P.M.:

“1. A aplicação de penas e medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
2. A pena não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa.
3. A medida de segurança só pode ser aplicada se for proporcionada à gravidade do facto e à perigosidade do agente”.

E, em sede de determinação da pena, tem este T.S.I. entendido que “Na determinação da medida da pena, adoptou o Código Penal de Macau no seu art.º 65.º, a “Teoria da margem da liberdade”, segundo a qual, a pena concreta é fixada entre um limite mínimo e um limite máximo, determinados em função da culpa, intervindo os outros fins das penas dentro destes limites”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 07.12.2017, Proc. n.° 998/2017, de 08.02.2018, Proc. n.° 30/2018 e de 12.04.2018, Proc. n.° 166/2018).

É também sabido que com os recursos não se visa eliminar a margem de livre apreciação reconhecida ao Tribunal de 1ª Instância em matéria de determinação da pena, e que esta deve ser confirmada se verificado estiver que no seu doseamento foram observados os critérios legais legalmente atendíveis; (cfr., v.g., os Acs. do Vdo T.U.I. de 03.12.2014, Proc. n.° 119/2014 e de 04.03.2015, Proc. n.° 9/2015).

Aliás, e como temos vindo a considerar, acompanhando o decidido pelo Tribunal da Relação de Évora:

“I - Também em matéria de pena o recurso mantém o arquétipo de remédio jurídico, pelo que o tribunal de recurso deve intervir na pena (alterando-a) apenas e só quando detectar incorrecções ou distorções no processo de determinação da sanção.
II - Por isso, o recurso não visa nem pretende eliminar alguma margem de apreciação livre reconhecida ao tribunal de 1ª instância nesse âmbito.
III - Revelando-se, pela sentença, a selecção dos elementos factuais elegíveis, a identificação das normas aplicáveis, o cumprimento dos passos a seguir no iter aplicativo e a ponderação devida dos critérios legalmente atendíveis, justifica-se a confirmação da pena proferida”; (cfr., o Ac. de 22.04.2014, Proc. n.° 291/13, in “www.dgsi.pt”, aqui citado como mera referência, e Acórdão do ora relator de 13.07.2017, Proc. n.° 522/2017, de 26.10.2017, Proc. n.° 829/2017 e de 30.01.2018, Proc. n.° 35/2018).

No mesmo sentido decidiu este T.S.I. que: “Não havendo injustiça notória na medida da pena achada pelo Tribunal a quo ao arguido recorrente, é de respeitar a respectiva decisão judicial ora recorrida”; (cfr., o Ac. de 24.11.2016, Proc. n.° 817/2016).

E, como recentemente se tem igualmente decidido:

“O recurso dirigido à medida da pena visa tão-só o controlo da desproporcionalidade da sua fixação ou a correcção dos critérios de determinação, atentos os parâmetros da culpa e as circunstâncias do caso.
A intervenção correctiva do Tribunal Superior, no que diz respeito à medida da pena aplicada só se justifica quando o processo da sua determinação revelar que foram violadas as regras da experiência ou a quantificação se mostrar desproporcionada”; (cfr., o Ac. da Rel. de Lisboa de 24.07.2017, Proc. n.° 17/16).

“O tribunal de recurso deve intervir na pena, alterando-a, apenas quando detetar incorreções ou distorções no processo de aplicação da mesma, na interpretação e aplicação das normas legais e constitucionais que a regem. Nesta sede, o recurso não visa nem pretende eliminar alguma margem de atuação, de apreciação livre, reconhecida ao tribunal de primeira instância enquanto componente individual do ato de julgar.
A sindicabilidade da pena em via de recurso situa-se, pois, na deteção de um desrespeito dos princípios que norteiam a pena e das operações de determinação impostas por lei. E esta sindicância não abrange a determinação/fiscalização do quantum exato da pena que, decorrendo duma correta aplicação das regras legais e dos princípios legais e constitucionais, ainda se revele proporcionada”; (cfr., o Ac. da Rel. de Guimarães de 25.09.2017, Proc. n.° 275/16).

Estando as penas parcelares aplicadas pelos crimes em questão situadas a apenas 6 meses do seu mínimo, evidente se apresenta que nenhum motivo existe para se considerar as mesmas excessivas, apenas podendo pecar por benevolência.

Continuemos.

–– Quanto à “pena única” resultado do “cúmulo jurídico”, há que atentar no estatuído no art. 71° do C.P.M., que dispõe que:

“1. Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles, é condenado numa única pena, sendo na determinação da pena considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
2. A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 30 anos tratando-se de pena de prisão e 600 dias tratando-se de pena de multa, e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.
3. Se as penas concretamente aplicadas aos crimes em concurso forem umas de prisão e outras de multa, é aplicável uma única pena de prisão, de acordo com os critérios estabelecidos nos números anteriores, considerando-se as de multa convertidas em prisão pelo tempo correspondente reduzido a dois terços.
4. As penas acessórias e as medidas de segurança são sempre aplicadas ao agente, ainda que previstas por uma só das leis aplicáveis”; (sub. nosso).

Abordando idêntica questão à ora em apreciação, e tendo em consideração o teor do n.° 1 do transcrito art. 71°, teve já este T.S.I. oportunidade de afirmar que:

“Na determinação da pena única resultante do cúmulo jurídico são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
Na consideração dos factos, ou melhor, do conjunto dos factos que integram os crimes em concurso, está ínsita uma avaliação da gravidade da ilicitude global, que deve ter em conta as conexões e o tipo de conexão entre os factos em concurso.
Por sua vez, na consideração da personalidade – que se manifesta na totalidade dos factos – devem ser avaliados e determinados os termos em que a personalidade se projecta nos factos e é por estes revelada, ou seja, importa aferir se os factos traduzem uma tendência desvaliosa, uma tendência para a prática do crime ou de certos crimes, ou antes, se reconduzem apenas a uma pluriocasionalidade que não tem razão na personalidade do agente”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 28.09.2017, Proc. n.° 638/2017, de 11.01.2018, Proc. n.° 1133/2017 e de 08.03.2018, Proc. n.° 61/2018).

Atento ao que até aqui se deixou exposto, (e que é de manter), e certo sendo que, in casu, em causa está uma moldura penal com um “limite mínimo de 2 anos e 6 meses” e um “limite máximo de 84 anos e 8 meses de prisão”, ou melhor, por força do art. 41° do C.P.M., 30 anos, (cfr., o Proc. n.° CR5-15-0104-PCC), cremos que censura também não merece a pena única de 9 anos e 6 meses de prisão fixada que, em nossa opinião, reflecte, correctamente, a forte necessidade de prevenção criminal especial e geral que, no caso, se impõe.

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Por fim, uma nota.

Da matéria de facto dada como provada – e que não merece censura – colhe-se que verificados estão todos os elementos típicos dos 30 crimes de “falsificação de documentos” pelos quais estava o arguido acusado, motivos não nos parecendo haver para a sua não condenação em concurso real, como in casu, sucedeu.

Porém, constatando-se que da referida absolvição, não houve recurso, mais não se mostra de consignar.

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Tudo visto, resta decidir.

Decisão

4. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam julgar improcedente o recurso.

Pagará o recorrente a taxa de justiça de 6 UCs.

Honorários ao Exmo. Defensor no montante de MOP$1.800,00.

Registe e notifique.

Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.

Macau, aos 24 de Maio de 2018
José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa (com declaração de voto em relação à nota referente aos crimes de falsificação de documentos, por entender que foi bem decidido pelo Tribunal a quo da absolvição dos tais crimes por se tratar de concurso aparente com os crimes de burlas.)
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