Processo nº 386/2018 Data: 21.06.2018
(Autos de recurso penal)
Assuntos : Crime de “passagem de moeda falsa”.
Insuficiência da matéria de facto provada para a decisão.
Reenvio.
SUMÁRIO
1. O vício de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão” apenas ocorre quando o Tribunal não se pronuncia sobre (toda) a matéria objecto do processo, ou seja, quando da factualidade vertida na decisão se colhe faltarem dados e elementos para a decisão de direito, considerando as várias soluções plausíveis, como sejam a condenação (e a medida desta) ou a absolvição, (existência de causas de exclusão da ilicitude ou da culpa), admitindo-se, num juízo de prognose, que os factos que ficaram por apurar, podiam a ser averiguados pelo tribunal a quo através dos meios de prova disponíveis, determinando uma alteração de direito.
No fundo, a “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão” existe se houver omissão de pronúncia pelo tribunal sobre factos relevantes, e os factos provados não permitem, com a segurança necessária, uma decisão justa.
2. Ao crime de “passagem de moeda falsa”, p. e p. pelo art. 255° do C.P.M., correspondem molduras penais distintas.
Se o agente só teve conhecimento que a moeda é falsa ou falsificada “depois de a receber”, é punido nos termos do n.° 2 do citado comando.
3. Assim, em sede de audiência de julgamento de um arguido acusado da prática do crime de “passagem de moeda falsa”, deve o Tribunal investigar e explicitar em sede da sua decisão da matéria de facto “quando ocorreu tal conhecimento”: se antes, ou depois do seu recebimento.
4. Omitindo a investigação e pronúncia sobre tal factualidade, incorre-se no vício de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão” que origina o reenvio dos autos para novo julgamento nos termos do art. 418° do C.P.P.M..
O relator,
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Processo nº 386/2018
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. Em audiência colectiva respondeu A, (1ª) arguida com os restantes sinais dos autos, vindo a ser condenada como autora material da prática de:
- 5 crimes de “passagem de moeda falsa”, p. e p. pelo art. 255°, n.° 1, al. a) do C.P.M., na pena de 2 anos de prisão cada;
- 1 crime de “passagem de moeda falsa (na forma tentada)”, p. e p. pelo art. 255°, n.° 1, al. a), 21° e 22° do C.P.M., na pena de 1 ano de prisão; e,
- 4 crimes de “uso de documento de identificação alheio”, p. e p. pelo art. 251°, n.° 1 do C.P.M., na pena de 1 ano de prisão cada.
Em cúmulo, foi a arguida condenada na pena única de 7 anos de prisão, e no pagamento de uma indemnização de MOP$3.000,00 aos ofendidos dos autos; (cfr., fls. 1269 a 1289-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Inconformada, a arguida recorreu.
Motivou para, a final, concluir afirmando que o Acórdão do T.J.B. padece de “erro na aplicação do direito”, considerando que devia ser condenada pelo crime de “passagem de moeda falsa” na forma continuada, que a sua conduta apenas preenche os elementos típicos do art. 255°, n.° 2 do C.P.M. – e não, do n.° 1 – e que se lhe devia reduzir e suspender a execução da pena; (cfr., fls. 1331 a 1354).
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Respondendo, diz o Ministério Público que o recurso não merece provimento; (cfr., fls. 1378 a 1380-v).
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Neste T.S.I., e em sede de vista, juntou o Exmo. Representante do Ministério Público o seguinte douto Parecer:
“A recorre do acórdão de 08 de Março de 2018, do 5.° juízo criminal, que a condenou na pena conjunta de 7 anos de prisão pela prática de seis crimes de passagem de moeda falsa, um deles na forma tentada, e de quatro crimes de uso de documento de identificação alheio.
Diz que o acórdão incorreu em erro na subsunção típica jurídico-penal, porquanto a condenou como se ela tivesse conhecimento da falsidade da moeda ao recebê-la, quando o que resulta da matéria provada é que ela só teve conhecimento da falsidade da moeda depois de a ter recebido. Daí que devesse ter sido punida com referência ao crime previsto no artigo 255.°, n.° 2, do Código Penal, e não, como sucedeu, pelo crime previsto no artigo 255.°, n.° 1, alínea a), do Código Penal; aduz, ainda, que a punição deveria ter ocorrido no quadro de uma continuação criminosa, intentando convencer que estavam reunidos os requisitos para o efeito; e, finalmente, sustenta que a pena a aplicar aos crimes deveria situar-se aquém dos 3 anos de prisão e ser suspensa na sua execução.
Na sua minuta de resposta, o Ministério Público em primeira instância rebate as pretensões recursórias da recorrente, entendendo que não houve erro na subsunção típica jurídico-penal, que não se está perante continuação criminosa e que se mostra adequada a medida da pena, o que igualmente conduz ao insucesso da almejada suspensão da execução da pena.
Vejamos.
A recorrente começa por sustentar a existência de erro na subsunção dos factos no tipo incriminador. Acha que os factos não permitem a subsunção no tipo legal de passagem de moeda falsa previsto no artigo 255.°, n.° 1, alínea a), do Código Penal, antes deles resultando que o tipo preenchido é o do artigo 255.°, n.° 2, alínea a), do Código Penal.
Está em causa, como é bom de ver, saber se a recorrente ao adquirir a posse da moeda falsa, que posteriormente transaccionou como lídima, sabia dessa falsidade, ou se só posteriormente tomou conhecimento da falsidade. No primeiro caso, a passagem de moeda falsa integra o crime do n.° 1, alínea a), do artigo 255.° do Código Penal, que prevê uma punição com pena de prisão até 5 anos; no segundo, a passagem de moeda falsa é punida com pena de multa até 240 dias.
Ora, perscrutando a matéria de facto dada como provada, afigura-se que, a partir dela, pura e simplesmente não se consegue apurar se a recorrente sabia ou não sabia da falsidade da moeda quando esta veio à sua posse.
Tal como estava articulada a acusação, era evidente esse conhecimento prévio da falsidade, pois a arguida recorrente estava acusada de, também ela, ter forjado a moeda. Só que a parte relativa à contrafacção acabou por não resultar demonstrada.
A partir daí, impunha-se que o tribunal indagasse acerca do conhecimento prévio ou não da falsidade, pois este elemento era imprescindível para a integração típica da conduta. Ora, salvo melhor juízo, essa indagação não foi feita e, contrariamente ao entendimento da recorrente, a matéria apurada é insuficiente para dilucidar a questão.
Na verdade, quanto a isso, o único elemento de facto a que pode atribuir-se alguma pertinência na tentativa de esclarecimento desta questão é a comprovada intenção de obtenção de interesses ilegítimos. Só que esta intenção tanto está presente quando o agente se desfaz da moeda e a põe em circulação como genuína e legítima, sabendo da falsidade no acto da sua obtenção, como quando a lança em circulação, sabendo da falsidade só após a ter recebido como boa e legítima. O interesse associado à passagem da moeda falsa como meio de pagamento válido, como contrapartida da obtenção do correspectivo valor, tanto é ilegítimo no primeiro caso como no segundo, embora neste a censurabilidade e a culpa resultem atenuadas pela circunstância de o agente haver sido, ele próprio, alvo de engano ao receber, como genuíno e legítimo, dinheiro falso.
Posto isto, e não obstante a roupagem com que a recorrente aborda a questão, situando-a no erro de direito na subsunção dos factos, crê-se que o que verdadeiramente está em causa é a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, na parte relativa à passagem de moeda falsa. Ocorre, assim, o vício previsto no artigo 400.°, n.° 2, alínea a), do Código de Processo Penal, o que justifica o reenvio do processo, nos termos do artigo 418.° do Código de Processo Penal, para novo julgamento da matéria de facto relativa à passagem de moeda falsa, com prejuízo do conhecimento das restantes questões equacionadas no recurso.
Ante quanto fica exposto, e pelos motivos apontados, deverá determinar-se o reenvio do processo para novo julgamento circunscrito ao julgamento da matéria de facto atinente à passagem de moeda falsa”; (cfr., fls. 1481 a 1482-v).
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Nada obstando, passa-se a decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Estão “provados” e “não provados” os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 1275 a 1281-v, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.
Do direito
3. Vem a arguida recorrer do Acórdão que a condenou como autora da prática de 6 crimes de “passagem de moeda falsa”, (um deles, na forma tentada), p. e p. pelo art. 255°, n.° 1, al. a) do C.P.M., nas penas parcelares de 2 anos e 1 ano de prisão, e 4 crimes de “uso de documento de identificação alheio”, p. e p. pelo art. 251°, n.° 1 do C.P.M., na pena de 1 ano de prisão cada, e, em cúmulo, na pena única de 7 anos de prisão, e no pagamento de uma indemnização de MOP$3.000,00 aos ofendidos dos autos.
Considera que se incorreu em “erro na aplicação do direito”, afirmando, em síntese, que a sua conduta devia integrar a prática de um “crime continuado”, pedindo a redução e suspensão da execução da pena única em que foi condenada.
Por sua vez, e como se deixou relatado, em sede do seu Parecer entende o Exmo. Representante do Ministério Público que incorreu o Tribunal a quo no vício de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão” na parte relativa ao crime de “passagem de moeda falsa”, e que prejudicado está o conhecimento das restantes questões colocadas.
Ora, cremos ser esta a solução que no caso se impõe.
Vejamos.
Repetidamente temos afirmado que o vício de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão” apenas ocorre “quando o Tribunal não se pronuncia sobre toda a matéria objecto do processo”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 12.10.2017, Proc. n.° 814/2017, de 14.12.2017, Proc. n.° 1081/2017 e de 25.01.2018, Proc. n.° 1149/2017, podendo-se também sobre o dito vício em questão e seu alcance, ver o recente Ac. do Vdo T.U.I. de 24.03.2017, Proc. n.° 6/2017).
Como decidiu o T.R. de Coimbra:
“O vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, existe quando da factualidade vertida na decisão se colhe faltarem dados e elementos para a decisão de direito, considerando as várias soluções plausíveis, como sejam a condenação (e a medida desta) ou a absolvição (existência de causas de exclusão da ilicitude ou da culpa), admitindo-se, num juízo de prognose, que os factos que ficaram por apurar, se viessem a ser averiguados pelo tribunal a quo através dos meios de prova disponíveis, poderiam ser dados como provados, determinando uma alteração de direito.
A insuficiência para a decisão da matéria de facto existe se houver omissão de pronúncia pelo tribunal sobre factos relevantes e os factos provados não permitem a aplicação do direito ao caso submetido a julgamento, com a segurança necessária a proferir-se uma decisão justa”; (cfr., Ac. de 17.05.2017, Proc. n.° 116/13, in “www.dgsi.pt”).
E, como igualmente também considerou o T.R. de Évora:
“A insuficiência da matéria de facto para a decisão não tem a ver, e não se confunde, com as provas que suportam ou devam suportar a matéria de facto, antes, com o elenco desta, que poderá ser insuficiente, não por assentar em provas nulas ou deficientes, antes, por não encerrar o imprescindível núcleo de factos que o concreto objecto do processo reclama face à equação jurídica a resolver no caso”; (cfr., o Ac. de 26.09.2017, Proc. n.° 447/13).
Também recentemente se considerou que:
“O vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada traduzir-se-á, afinal, na falta de elementos fácticos que permitam a integração na previsão típica criminal, seja por falência de matéria integrante do seu tipo objectivo ou do subjectivo ou, até, de uma qualquer circunstância modificativa agravante ou atenuante, considerada no caso. Em termos sintéticos, este vício ocorre quando, com a matéria de facto dada como assente na sentença, aquela condenação não poderia ter lugar ou, então, não poderia ter lugar naqueles termos”; (cfr., o Ac. da Rel. de Coimbra de 24.01.2018, Proc. n.° 647/14).
Nos termos do art. 255° do C.P.M., (onde se prevê o crime de “passagem de moeda falsa”):
“1. Quem, por qualquer modo, incluindo a exposição à venda, passar ou puser em circulação,
a) como legítima ou intacta, moeda falsa ou falsificada,
b) moeda metálica depreciada, pelo seu pleno valor, ou
c) moeda metálica com o mesmo ou maior valor que o da legítima, mas fabricada sem autorização legal, é punido, no caso da alínea a), com pena de prisão até 5 anos, e, no caso das alíneas b) e c), com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.
2. Se o agente só tiver tido conhecimento de que a moeda é falsa ou falsificada depois de a ter recebido, é punido:
a) No caso da alínea a) do número anterior, com pena de multa até 240 dias;
b) No caso das alíneas b) e c) do número anterior, com pena de multa até 90 dias”; (sub. nosso).
E, in casu, apurado não estando se a ora recorrente tinha conhecimento que a “moeda” que pôs a circular era falsa quando a recebeu (ou adquiriu), ou se só o soube depois de a ter recebido, inviável é uma “decisão de direito” por “insuficiência de matéria de facto provada”.
Com efeito, em sede da audiência de julgamento que teve lugar no T.J.B. devia o Colectivo a quo (tentar) investigar e emitir expressa pronúncia quanto a tal matéria, e só depois, efectuar o enquadramento jurídico-penal da conduta da arguida.
Não o tendo feito, e assim, sem que apurada esteja tal matéria, e atento o estatuído no art. 255°, n.° 2 do C.P.M., possível não é o referido enquadramento jurídico.
Nesta conformidade, observado que foi o contraditório, e sendo o vício em questão por esta Instância insanável, impõe-se o reenvio dos autos para novo julgamento nos termos do art. 418° do C.P.P.M., prejudicado se apresentado o conhecimento das restantes questões colocadas.
Decisão
4. Em face do exposto, e nos exactos termos consignados, decreta-se o reenvio dos autos para novo julgamento no T.J.B..
Sem custas.
Registe e notifique.
Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.
Macau, aos 21 de Junho de 2018
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José Maria Dias Azedo
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Tam Hio Wa
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Choi Mou Pan
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