Processo n.º 79/2016 Data do acórdão: 2018-6-7 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– erro notório na apreciação da prova
– relalório pericial médico
– consolidação da fractura óssea
– sequelas da fractura óssea
– despesas de tratamento médico
– perdas salariais
S U M Á R I O
1. No relatório pericial médico dos autos, o senhor médico afirmou que o radiograma e a tomografia tirados à ofendida mostram que a fractura da parte lateral esquerda do astrágalo da ofendida já se encontra completamente consolidada. Mas, uma coisa é a consolidação completa da fractura óssea da ofendida, e a outra coisa é o sofrimento, por ela, após essa consolidação óssea, da rigidez (mesmo em grau leve) na movimentação da parte lateral esquerda do tornozelo, com dores quando pressionada, ao que acresce a menção, nesse relatório, de que a ofendida, à data da feitura da perícia em causa, está acompanhada em consultas.
2. Assim, para qualquer homem médio colocado na situação concreta dos autos, perante tal conteúdo do relatório médico, é de entender, segundo as regras da experiência da vida humana, que a ofendida, mesmo após a consolidação completa da fractura óssea em causa, ainda precisa de ter tais sequelas tratadas, o que reclama naturalmente despesas de respectivo tratamento, e que a circunstância de estar com sequelas da fractura óssea com necesssidade de tratamento também constitui motivo justo para não ir ao trabalho (como normalmente, antes do acidente de viação).
3. Assim, por constatação do vício de erro notório na apreciação da prova, é de reenviar para novo julgamento o objecto da pretensão de reclamação da indemnização de despesas de tratamento médico e de perdas salariais formulada pela ofendida nas duas primeiras ampliações do seu pedido cívil enxertado na acção penal dos autos, na parte julgada como improcedente no acórdão ora recorrido, em tudo respeitante ao período de tempo posterior à data de consolidação daquela fractura óssea.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 79/2016
(Recurso em processo penal)
Recorrente (demandante civil): B (B)
Recorrida (2.a demandada civil): C Insurance (Hong Kong) Limited
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA
REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por acórdão proferido a fls. 495 a 496v do subjacente Processo Comum Colectivo n.o CR2-13-0069-PCC do 2.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base (TJB), com enxertado pedido cível de indemnização emergente de acidente de viação, julgou-se improcedente a pretensão da demandante civil B formulada na primeira ampliação do pedido cível de indemnização por despesas de tratamento médico e por perdas salariais em tudo respeitante ao período de tempo posterior ao dia 1 de Julho de 2013, e improcedente a pretensão da mesma demandante formulada na segunda ampliação do pedido cível por despesas de tratamento no Hospital Kiang Wu no valor de MOP8.427,00 (no período compreendido entre 29 de Julho e 13 de Dezembro de 2013) e por perdas salariais no valor total de MOP61.028,00 no período de 29 de Julho a 16 de Dezembro de 2013, por judicialmente entendida inexistência de qualquer nexo de causalidade dessas despesas médicas e perdas salariais com a causa do pedido cível.
Inconformada, veio recorrer a demandante desse acórdão para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), imputando a esse aresto contradição insanável da fundamentação e erro notório na apreciação da prova (cfr. a motivação apresentada a fls. 504 a 527 dos presentes autos correspondentes), para pedir que fosse julgada provida a pretensão então formulada nas duas ampliações do seu pedido cível na parte finalmente julgada improcedente pelo Tribunal recorrido.
Ao recurso, respondeu a seguradora C Insurance (Hong Kong) Limited como 2.a demandada civil, no sentido de manutenção da decisão recorrida (cfr. o teor da resposta de fls. 532 a 535).
Subidos os autos, opinou a Digna Procuradora-Adjunta, em sede de vista (aberta a fl. 547), que não tinha legitimidade para emitir parecer sobre matéria meramente civil.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte, com pertinência à solução do recurso sub judice:
1. Em 29 de Julho de 2013, no âmbito do ora subjacente processo penal, a ofendida demandante apresentou petitório (a fls. 189 a 195) de ampliação, pela primeira vez, do seu pedido cível datado de 25 de Fevereiro de 2013 (constante de fls. 82 a 100), para reclamar a indemnização de perdas salariais desde 25 de Fevereiro de 2013 até 29 de Julho de 2013 (nos valores, por ela computados, de MOP49.083,30 na Companhia de D Motors Limited, e de MOP19.000,00 na XXXX Cake Shop), e também de mais despesas médicas e medicamentosas efectuadas no período entre 9 de Março de 2013 e 29 de Julho de 2013 (no valor por ela computado de MOP5.132,00).
2. Em 13 de Dezembro de 2013, a ofendida demandante apresentou petitório (a fls. 245 a 248) de ampliação, pela segunda vez, do pedido cível, para reclamar a indemnização de perdas salariais no período compreendido entre 29 de Julho de 2013 e 16 de Dezembro de 2013 (nos valores, por ela computados, de MOP43.700,00 na Companhia de D Motors Limited, e de MOP17.328,00 na XXXX Cake Shop), bem como de mais despesas médicas e medicamentosas no Hospital Kiang Wu no período compreendido entre 29 de Julho de 2013 e 13 de Dezembro de 2013 (no valor por ela computado de MOP8.427,00).
3. O acórdão ora recorrido consta de fls. 495 a 496v (cujo teor integral se dá por aqui integralmente reproduzido), e foi proferido para reparar a omissão de pronúncia, suscitada em anterior recurso ordinário do anterior acórdão final da Primeira Instância, sobre a matéria objecto das ampliações do pedido cível datadas de 2013 (cfr. o anterior acórdão de recurso a fls. 428 a 436).
Nesse acórdão ora recorrido:
– julgou-se (na parte ora em causa na presente lide recursória) improcedente a pretensão formulada pela demandante na primeira ampliação do pedido cível em tudo respeitante ao período de tempo posterior ao dia 1 de Julho de 2013, e improcedente a pretensão formulada na segunda ampliação do pedido cível para reclamação da indemnização de MOP8.427,00 de despesas de tratamento no Hospital Kiang Wu e de MOP43.700,00 e MOP17.328,00 de perdas salariais, tendo o resultado de toda essa decisão judicial sido fundado na judicialmente entendida inexistência de qualquer nexo de causalidade entre as quantias reclamadas em questão com a causa do pedido de indemnização cível sub judice, por, segundo entendeu o Tribunal ora recorrido, a lesão da demandante ter sido considerada curada medicamente a partir do dia 1 de Julho de 2013 de acordo com o concluído no relatório da perícia médico-legal elaborado em 9 de Julho de 2013 pelo Senhor Médico do Centro Hospitalar Conde de São Januário, então junto a fl. 184 dos autos;
– entretanto, não consta da fundamentação desse acórdão ora recorrido se se provam os factos articulados nos petitórios das duas ampliações do pedido cível apresentadas pela demandante em 2013, referentes a quantias de despesas de tratamento médico e de perdas salariais aí reclamadas e finalmente julgadas como improcedentes pelo Tribunal ora recorrido.
4. O conteúdo do acima referido relatório da perícia médico-legal feita em 9 de Julho de 2013 consta da fl. 184 (cujo teor integral se dá por aqui integralmente reproduzido).
Trata-se de respostas a 11 quesitos então formulados.
Segundo o teor dessas respostas tecidas pelo Senhor Médico do Centro Hospitalar Conde de São Januário:
– a ofendida sofreu da fractura na parte lateral esquerda do astrágalo (cfr. a resposta ao quesito 1.o);
– na perícia médica de 9 de Julho de 2013, a ofendida tem rigidez de grau leve na movimentação da parte lateral esquerda do tornozelo (cfr. a resposta ao quesito 4.o);
– o radiograma tirado e a tomografia computadorizada feita à ofendida no dia 1 de Julho de 2013 no Hospital Kiang Wu mostram que a fractura da parte lateral esquerda do astrágalo já se encontra completamente consolidada (cfr. a segunda parte da resposta ao quesito 5.o);
– a fractura da parte lateral esquerda do astrágalo da ofendida já se encontra completamente consolidada, com acompanhada rigidez de grau leve na movimentação da parte lateral esquerda do tornozelo (cfr. a resposta ao quesito 6.o);
– aquando da perícia médica feita à ofendida em 9 de Julho de 2013, verifica-se que existe rigidez de grau leve na movimentação da parte lateral esquerda do tornozelo, com dores quando pressionada (cfr. a primeira parte da resposta ao quesito 7.o);
– existe rigidez de grau leve na parte lateral esquerda do tornozelo da ofendida, com correspondente taxa da incapacidade permanente parcial fixada em 0,08 nos termos do Decreto-Lei n.o 40/95/M (cfr. a resposta ao quesito 9.o);
– a rigidez de grau leve na movimentação da parte lateral esquerda do tornozelo da ofendida é devida possivelmente a cicatrizes formadas no tecido mole, e não é necessariamente provável que obtenha melhoramento através da sujeição a operação cirúrgica de novo, e estando a ofendida acompanhada em consultas no Hospital Kiang Wu, é sugerida a desmontagem do material de fixação óssea três meses depois (cfr. a resposta ao quesito 10.o).
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
Imputou a demandante ao acórdão ora recorrido erro notório na apreciação da prova e contradição insanável da fundamentação.
No caso, segundo o teor das respostas aos quesitos tecidas no relatório da perícia médico-legal referido na fundamentação desse aresto, à data da feitura dessa perícia em 9 de Julho de 2013:
– o radiograma e a tomografia feitos à demandante no dia 1 de Julho de 2013 no Hospital Kiang Wu mostram que a fractura da parte lateral esquerda do astrágalo dela já se encontra completamente consolidada;
– a demandante sofre rigidez de grau leve na movimentação da parte lateral esquerda do tornozelo com dores quando pressionada, que não é necessariamente provável que obtenha melhoramento através da sujeição a operação cirúrgica de novo;
– ela está acompanhada em consultas no Hospital Kiang Wu.
Sucede que o Tribunal recorrido interpretou o teor desse relatório médico-legal como significando a já cura médica da lesão da demandante, com desconsideração das sequelas de rigidez na movimentação da parte lateral esquerda do tornozelo e dores, sofridas pela demandante, após a consolidação completa da fractura óssea em questão, e a partir desse argumento de “já cura médica da lesão” julgou como inexistente qualquer nexo de causalidade entre as quantias reclamadas materialmente nas acima referidas duas ampliações do pedido cível (respeitantes ao período de tempo posterior àquele dia de cura médica da lesão) com a lesão da demandante (nota-se que as despesas médicas num hospital na cidade de Zhongshan da China no período de 8 a 25 de Agosto de 2013 não fazem parte do objecto da acima referida segunda ampliação do pedido cível, visto que essas despesas de tratamento foram já reclamadas materialmente no próprio pedido cível inicial, e já julgadas como provadas no anterior acórdão final da Primeira Instância).
É certo que nesse relatório, foi respondido pelo Senhor Médico seu autor que o radiograma e a tomografia em causa mostram que a dita fractura óssea da demandante já se encontra completamente consolidada. Mas, uma coisa é a consolidação completa da fractura óssea da demandante, e a outra coisa é o sofrimento, pela demandante, após essa consolidação óssea, da rigidez (mesmo em grau leve) na movimentação da parte lateral esquerda do tornozelo, com dores quando pressionada, ao que acresce a menção, nesse relatório, de que a demandante, à data da feitura da perícia em causa, está acompanhada em consultas.
Assim, para qualquer homem médio colocado na situação concreta dos autos, perante tal conteúdo do relatório médico, é de entender, segundo as regras da experiência da vida humana, que a demandante, mesmo após a consolidação completa da fractura óssea em causa, ainda precisa de ter tais sequelas tratadas, o que reclama naturalmente despesas de respectivo tratamento, e que a circunstância de estar com sequelas da fractura óssea com necesssidade de tratamento também constitui motivo justo para não ir ao trabalho (como normalmente, antes do acidente de viação).
Em suma, é essa rigidez na movimentação do tornozelo com dores que afasta compreensivelmente o juízo, sustentado pelo Tribunal recorrido, de inexistência de qualquer nexo de causalidade.
Assim, por constatação do vício previsto no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal, é de reenviar, para novo julgamento por um novo Tribunal Colectivo, nos termos do art.o 418.o, n.os 1 e 2, do Código de Processo Penal, o objecto da pretensão formulada pela demandante nas acima identificadas primeira e segunda ampliações do pedido civil na parte julgada como improcedente no acórdão ora recorrido. (Lembra-se que no acórdão ora recorrido, se julgou improcedente a pretensão formulada na primeira ampliação do pedido cível em tudo respeitante ao período de tempo posterior ao dia 1 de Julho de 2013, e improcedente a pretensão formulada na segunda ampliação do pedido cível para reclamação da indemnização de MOP8.427,00 de despesas de tratamento no Hospital Kiang Wu e de MOP43.700,00 e MOP17.328,00 de perdas salariais).
Procede o recurso, sem mais indagação por desnecessária.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar provido o recurso da demandante, reenviando parcialmente o objecto do enxertado pedido cível para novo julgamento, nos termos especificados no penúltimo parágrafo da fundamentação jurídica do presente acórdão de recurso.
As custas do presente recurso ficam pela parte vencida a final no pedido indemnizatório formulado nas primeira e segunda ampliações do pedido cível inicial na parte julgada improcedente no acórdão ora recorrido, sem prejuízo do apoio judiciário já concedido à demandante em matéria de custas. Fixam em cinco mil patacas os honorários da Ilustre Patrona Oficiosa da demandante pelo trabalho feito por causa da presente lide recursória, a entrar na regra das custas.
Macau, 7 de Junho de 2018.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Chou Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)
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