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Processo n.º 1079/2015 Data do acórdão: 2018-6-14 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– acidente de viação
– art.o 30.o, n.o 1, da Lei do Trânsito Rodoviário
– culpa do condutor pela produção do acidente
– zona turística
– regra da experiência da vida humana
– dores e sofrimento da vítima depois do acidente e antes da morte
– sofrimentos psicológicos do marido e filhos da vítima
S U M Á R I O
1. A eventual prática da infracção prevista no n.o 1 do art.o 30.o da Lei do Trânsito Rodoviário não equivale necessariamente à existência, por parte do condutor infractor, de 100% de culpa pela produção do acidente ocorrido na sequência da prática dessa infracção, mas já implica que o condutor tenha, pelo menos (se não for totalmente), alguma dose de culpa pela produção do acidente.
2. Ocorre o vício de erro notório na apreciação da prova aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal, quando o tribunal recorrido, aquando da formação da sua convicção sobre os factos, viola quaisquer regras da experiência da vida humana em normalidade de situações, quaisquer normas jurídicas sobre o valor legal da prova, ou quaisquer leges artis vigentes no julgamento de factos.
3. Segundo regra da experiência da vida humana na normalidade de situações, em zona em que há turistas a fazer compras, com autocarros de transporte de turistas estacionados nos dois lados da faixa de rodagem em causa, o horizonte de visão para o condutor do veículo pesado de transporte de turistas que segue nessa faixa de rodagem fica naturalmente mais estreito, o que reclama maior atenção na condução e menor velocidade na condução para qualquer condutor, mesmo que seja um condutor profissional de autocarro para turistas.
4. No caso, ofendeu também patentemente as regras da experiência da vida humana o resultado do julgamento de factos em primeira instância na parte em que mesmo em face das diversas lesões graves sofridas pela ofendida com o acidente de viação dos autos, não se deram por provados as as dores e sofrimentos da ofendida após o acidente de viação até antes da morte, e na parte em que não se deram por provados os sofrimentos psicológicos do marido, da filha e do filho da ofendida perante a situação da ofendida (é que nesta última parte do resultado de julgamento de factos contraria a natureza da relação humana familiar, ainda que a relação afectiva entre os cônjuges e entre a filha e o filho com a mãe possa ser em diferente grau de profundidade).
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 1079/2015
(Recurso em processo penal)
Recorrentes (demandantes civis):
A (A), marido da ofendida
B(B), filho da ofendida
C (C), filho da ofendida
 Recorridos (1.a, 2.o e 3.a demandados civis):
Companhia de Seguros D, S.A.R.L. (D保險有限公司)
E (E)
Agência de Turismo F (Macau), Limitada (F旅遊有限公司)




ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA
REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por acórdão proferido a fls. 1598 a 1606v do subjacente Processo Comum Colectivo n.o CR1-14-0315-PCC do 1.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base (TJB), ficou absolvido o arguido E da acusada prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ofensa grave à integridade física por negligência, p. e p. pelo art.o 142.o, n.o 3, do Código Penal (CP), conjugado com o art.o 93.o, n.o 1, da Lei do Trânsito Rodoviário (LTR), para além de se julgar improcedente o pedido cível então aí enxertado pelo marido A da ofendida e pelo filho Be pela filha C da ofendida contra, nomeadamente, a 1.a demandada Companhia de Seguros D, S.A.R.L., o arguido como 2.o demandado e a 3.a demandada Agência de Turismo F (Macau), Limitada, para reclamar a quantia indemnizatória total de MOP5.817.130,00, com juros legais.
Inconformados, os três demandantes vieram recorrer dessa decisão final civil para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), através da motivação de fl. 1621 a 1626, apontando a essa decisão o vício de erro notório na apreciação da prova, para pedir a condenação dos três primeiros demandados civis no pagamento solidário do total indemnizatório não inferior a MOP5.817.130,00.
Responderam a este recurso o demandado arguido e a demandada agência de turismo através da resposta una de fls. 1618 a 1633, no sentido de improcedência do recurso. Respondeu também a demandada Companhia de Seguros D a fls. 1634 a 1642v, no sentido de improcedência manifesta do recurso.
Já antes do recurso da decisão final civil acima referida, os três recorrentes chegaram a interpor recurso, mediante a motivação de fls. 1550 a 1554, do despacho da M.ma Juíza titular do processo em primeira instância de desentranhamento da réplica deles à contestação da 1.a demandada seguradora.
Subidos os autos, a Digna Procuradora-Adjunta afirmou em sede de vista, a fl. 1653, que não tinha legitimidade para emitir parecer, por estar em causa matéria meralmente civil.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte:
1. Os três ora recorrentes B, C e A deduziram, a fls. 529 a 542 dos autos (cujo teor se dá por integralmente reproduzido), pedido de indemnização cível contra a Companhia de Seguros D, S.A.R.L. (como 1.a demandada), o arguido (como 2.o demandado), a Agência de Tursimo F (Macau), Limitada (como 3.a demandada), a senhora G (G) (como 4.a demandada) como guia turístico dessa agência de turismo e outras duas seguradoras a serem identificadas (como 5.a e 6.a demandadas, seguradoras, respectivamente, da responsabilidade civil profissional de agência de viagens e dos riscos de responsabilidade civil resultantes de viagens turísticas colectivas), a fim de reclamar a quantia total indemnizatória de MOP5.817.130,00.
2. Contestou o arguido a fls. 894 a 903 esse pedido cível, defendendo principalmente que não teve ele culpa pela produção do acidente.
3. Contestou também a Companhia de Seguros D na qualidade de 1.a demandada, a fls. 904 a 909, para suscitar, em jeito de excepção, a questão de eventual ilegitimidade processual activa dos demandantes, para além de impugnar, subsidiariamente, o mérito do pedido cível, tendo pedido a notificação da parte demandante para vir juntar aos autos certidão de habilitação de herdeiros, sob pena da absolvição da instância.
4. No despacho exarado a fl. 911, a M.ma Juíza titular do processo em primeira instância mandou notificar a parte demandante para responder, querendo, em 15 dias, à excepção deduzida pela parte demandada. Este despacho foi objecto de notificação à Ilustre Advogada da parte demandante por carta registada de 21 de Janeiro de 2015 (cfr. o teor de fl. 913 a 913v).
5. Por despacho exarado pela mesma M.ma Juíza a fl. 1516, foi determinado o desentranhamento da réplica apresentada a fls. 1499 a 1504 pela parte demandante em 9 de Fevereiro de 2015 (dia esse que correspondeu ao último dia do prazo de 15 dias concedido à parte demandante no referido despacho judicial de fl. 911, contado a partir do 3.o dia útil (para os Correios de Macau) posterior à data do registo postal da notificação do mesmo despacho de fls. 911), com seguintes dois fundamentos: a não previsão expressa no Código de Processo Penal (CPP) da apresentação de mais articulados após a contestação na parte relativa ao pedido cível; e o decurso já de 10 dias após a notificação da parte demandante e antes da apresentação da réplica em causa.
6. A 3.a demandada Agência de Turismo F (Macau) veio identificar, a fl. 1528, que a 5.a demandada civil era a Companhia de Seguros D, S.A.R.L. como seguradora da responsabilidade civil profissional de agência de viagens, tendo afirmado a mesma demandada agência de turismo que não tinha dados sobre a 6.a demandada civil indicada no pedido cível, porque a ofendida, no momento do acidente de viação dos autos, não estava a participar em excursão organizada pela própria demandada agência.
7. Veio interpor a parte demandante, através da motivação de fls. 1550 a 1554, recurso do acima referido despacho judicial de desentranhamento da réplica, para pedir a admissão processual da sua réplica, argumentando, para o efeito, que poderia haver lugar à réplica através da aplicação subsidiária, por força do art.o 4.o do CPP, das regras do processo civil ao enxerto cível de indemnização em acção penal, e que a sua réplica tinha sido apresentada tempestivamente, no prazo aplicável de 15 dias.
8. Veio contestar a fls. 1572 a 1577 a Companhia de Seguros D (materialmente na qualidade de 5.a demandada, por ter juntado ela, a fl. 1578, à sua contestação documento alusivo ao seguro da responsabilidade civil profissional da 3.a demandada agência de turismo), suscitando também, por excepção, a eventual ilegitimidade processual activa da parte demandante, para além de impugnar, subsidiariamente, o mérito do pedido cível, tendo pedido a notificação da parte demandante para vir juntar aos autos certidão de habilitação de herdeiros, sob pena da absolvição da instância.
9. Por despacho exarado em 29 de Julho de 2015 a fl. 1585 pela mesma M.ma Juíza, foi determinada a notificação da parte demandante para em dez dias responder “às excepções deduzidas”.
10. Veio proferido o acórdão final em primeira instância a fls. 1598 a 1606 (cujo teor se dá por aqui integralmente reproduzido), nele se julgando improcedente a excepção da ilegitimidade activa da parte demandante, para além de se absolver penalmente o arguido e de se julgar improcedente o pedido civil enxertado (devido ao entendimento judicial sobretudo de que a ofendida teve culpa exclusiva pela produção do acidente dos autos).
11. Veio recorrer a parte demandante desse acórdão na sua decisão civil, através da motivação de fl. 1621 a 1626, apontando ao mesmo o vício de erro notório na apreciação da prova, para pedir a condenação dos três primeiros demandados civis no pagamento solidário do total indemnizatório não inferior a MOP5.817.130,00.
12. Os primeiros três factos descritos como provados na fundamentação fáctica desse acórdão coincidem materialmente com os primeiros três factos articulados na petição cível da parte demandante.
13. Do texto do acórdão recorrido, sabe-se que o arguido era condutor profissional, e o veículo conduzido por ele aquando da ocorrência do acidente de viação era um veículo pesado para transporte de turistas.
14. Do teor do 3.o facto provado no acórdão recorrido, sabe-se que no tempo de ocorrência do acidente de viação dos autos, no lado esquerdo da faixa de rodagem em que o arguido conduziu tal veículo pesado já estavam estacionados dois autocarros de transporte de turistas, e na faixa de rodagem à sua direita também estava estacionado um outro autocarro de transporte de turistas, e havia turistas a fazer compras perto da zona.
15. O facto articulado sob o n.o 4 na petição cível (no sentido de que o arguido demandado não observou em pormenor a situação do trânsito na sua frente, nem abrandou a velocidade do veículo conduzido em função da circunstância de ser estreita a via pública e da circunstância especial de por estarem estacionados nos dois lados da via autocarros de transporte de turistas o horizonte de visão estar impedido, mas continuou a conduzir na velocidade inicial) não ficou descrito como provado no acórdão recorrido.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
Estão em causa dois recursos, igualmente interpostos pela parte demandante civil, um respeitante ao despacho judicial de desentranhamento da sua réplica, e o outro referente à decisão final civil de absolvição do pedido cível.
Quanto ao primeiro dos recursos, como no acórdão final da Primeira Instância foi decidido judicialmente que não podia proceder a excepção de ilegitimidade activa da parte demandante, já não é mister conhecer agora do recurso intercalarmente interposto pela parte demandante.
No recurso civil final, a parte demandante suscitou a questão de erro notório na apreciação da prova.
Sempre se diz, em muitos acórdãos do TSI, que ocorre o vício de erro notório na apreciação da prova aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do CPP, quando o tribunal recorrido, aquando da formação da sua convicção sobre os factos, viola quaisquer regras da experiência da vida humana em normalidade de situações, quaisquer normas jurídicas sobre o valor legal da prova, ou quaisquer leges artis vigentes no julgamento de factos.
Toda a tese defendida no pedido cível tem por base a imputada prática, pelo demandado arguido, da infracção ao art.o 30.o, n.o 1, da LTR (que determina que o condutor deve regular a velocidade de modo a que, atendendo às caractéristicas e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias especiais, possa, em condições de segurança, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente e evitar qualquer obstáculo que lhe surja em condições normalmente previsíveis).
Nota-se que a eventual prática da infracção prevista no n.o 1 do art.o 30.o da LTR não equivale necessariamente à existência, por parte do condutor infractor, de 100% de culpa pela produção do acidente ocorrido na sequência da prática dessa infracção, mas já implica que o condutor tenha, pelo menos (se não for totalmente), alguma dose de culpa pela produção do acidente.
No caso dos autos, decidiu o Tribunal recorrido pela não comprovação, designadamente, dos factos imputados ao demandado arguido com relevância jurídica para a verificação da violação, por este sujeito, desse n.o 1 do art.o 30.o da LTR.
Entretanto, para o presente Tribunal de recurso, a livre convicção formada pelo Tribunal recorrido no sentido de não estar provado o 4.o facto articulado na petição cível feriu logo a regra da experiência da vida humana na normalidade de situações, segundo a qual em zona em que há turistas a fazer compras, com autocarros de transporte de turistas estacionados nos dois lados da faixa de rodagem em causa, o horizonte de visão para o condutor do veículo pesado de transporte de turistas que segue nessa faixa de rodagem fica naturalmente mais estreito, o que reclama maior atenção na condução e menor velocidade na condução para qualquer condutor, mesmo que seja um condutor profissional de autocarro para turistas.
Por outro lado, ofendeu também evidentemente regras da experiência da vida humana o resultado do julgamento de factos em primeira instância (1) na parte em que mesmo em face das diversas lesões graves sofridas pela ofendida com o acidente de viação dos autos, não se deram por provados as as dores e sofrimentos da ofendida após o acidente de viação até antes da morte (como tal alegados inclusivamente nos art.os 38.o a 44.o do pedido cível), e (2) na parte em que não se deram por provados os sofrimentos psicológicos (alegados inclusivamente nos art.os 49.o a 54.o do pedido cível) do marido, da filha e do filho da ofendida perante a situação da ofendida (é que este resultado de julgamento contraria, segundo as regras da experiência da vida humana em normalidade de situações, a natureza da relação humana familiar, ainda que a relação afectiva entre os cônjuges e entre a filha e o filho com a mãe possa ser em diferente grau de profundidade).
Demonstrado o erro notório na apreciação da prova por parte do Tribunal recorrido, nos termos acima vistos por este Tribunal de recurso, é de reenviar o objecto do pedido cível para novo julgamento no TJB por um Tribunal Colectivo novo nos termos do art.o 418.o, n.os 1 e 3, do CPP, com excepção da (seguinte) parte sobre:
– a questão de legitimidade processual activa da parte demandante (por a legitimidade processual activa já ter sido decidida como verificada no acórdão ora recorrido);
– os três primeiros factos articulados na petição cível (porque estes três factos já se encontraram materialmente provados nesse acórdão sem erro notório na apreciação da prova);
– as diversas lesões sofridas pela ofendida com o acidente de viação (lesões estas já foram dadas por provadas no mesmo acórdão, sem erro notório na apreciação da prova);
– as diversas quantias indemnizatórias alegadas no art.o 36.o do pedido cível (as quais já ficaram provadas no mesmo acórdão, sem erro notório na apreciação da prova);
– a responsabilidade civil das 4.a e 5.a demandadas (a qual não é objecto do recurso final ora interposto pela parte demandante).
Quer dizer, no novo julgamento a fazer no TJB, o novo Tribunal Colectivo tem que julgar de novo os factos articulados na petição cível (de fls. 529 a 542) e contestados civilmente pelo demandado arguido (a fls. 894 a 903) e pela 1.a demandada seguradora (a fls. 904 a 909) em tudo:
– sobre o circunstancialismo de ocorrência do acidente de viação (com excepção dos primeiros três factos articulados na petição cível, três factos esses que já estavam provados no acórdão recorrido sem qualquer erro notório na apreciação da prova);
– com pertinência à determinação da culpa pela produção do acidente;
– sobre o alegado nos art.os 38.o a 44.o e 49.o a 54.o do pedido cível;
– com pertinência à verificação do nexo de causalidade adequada como um dos requisitos da responsabilidade civil por facto ilícito.
E depois, caberá ao novo Tribunal Colectivo, em função do resultado desse novo julgamento, em conjugação com os factos já provados no acórdão ora recorrido mas não afectados pela decisão do reenvio do processo para novo julgamento, decidir do mérito de todos os pedidos formulados na petição cível de indemnização da parte demandante.
Em suma, não se conhece do recurso intercalar da parte demandante (sem custas deste recurso pela parte demandante, por a causa do não conhecimento deste recurso não lhe ser imputável), e concede-se provimento ao recurso final da parte demandante, com consequente determinação do reenvio do objecto do pedido cível para novo julgamento nos termos acima especificados.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em não conhecer do recurso intercalar da parte demandante, e julgar provido o seu recurso final, reenviando, por conseguinte, o objecto do pedido cível para novo julgamento nos termos acima especificados.
Sem custas no recurso intercalar da parte demandante.
Custas do recurso final da parte demandante pela parte vencida a final no pedido cível contra a 1.a, o 2.o e a 3.a demandados.
Macau, 14 de Junho de 2018.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Chou Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)



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