Processo nº 459/2018 Data: 28.06.2018
(Autos de recurso penal)
Assuntos : Crime de “ofensa à integridade física”.
Erro notório na apreciação da prova.
Contradição insanável da fundamentação.
Legítima defesa.
Retorsão.
SUMÁRIO
1. O vício de “erro notório na apreciação da prova”, apenas existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores.
2. O vício de “contradição insanável da fundamentação” tem sido definido como aquele que ocorre quando se constata incompatibilidade, não ultrapassável, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão.
Em síntese, quando analisada a decisão recorrida através de um raciocínio lógico se verifique que a mesma contém posições antagónicas ou inconciliáveis, que mutuamente se excluem e que não podem ser ultrapassadas.
3. A “legítima defesa”, como causa exclusória da ilicitude, pressupõe uma agressão actual e ilícita e a intenção de defesa por parte do agente;
Só se verifica uma situação de legítima defesa quando a agressão seja ilegal e actual (por em execução ou iminente), não provocada pelo defendente, ocorra a impossibilidade de recurso à força pública e a racionalidade do meio utilizado, estando o elemento subjectivo, preenchido com o animus defendendi.
4. O conceito de “retorsão” implica a ocorrência conjunta dos seguintes elementos:
a) - que a agressão se siga, de forma imediata e instantânea a uma outra agressão;
b) - que surja em resposta a essa prévia agressão.
Corresponde pois a situações nas quais o agente se limita a “responder” a uma conduta ilícita ou repreensível do ofendido (a ao mesmo tempo agressor) empregando a força física.
O relator,
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José Maria Dias Azedo
Processo nº 459/2018
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. Por Acórdão datado de 10.04.2018, proferido pelo Colectivo do T.J.B., decidiu-se condenar A (A), (2ª) arguida com os sinais dos autos, como autora material da prática de 1 crime de “ofensa à integridade física”, p. e p. pelo art. 137°, n° 1 do C.P.M., fixando-se-lhe a pena de multa de 90 dias, à taxa diária de MOP$200,00, perfazendo um total de MOP$18.000,00 ou 60 dias de prisão subsidiária; (cfr., fls. 212 a 217 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Inconformada, a arguida recorreu.
Motivou para – em síntese – concluir afirmando que a decisão recorrida padecia dos vícios de “erro notório na apreciação da prova” e “contradição insanável da fundamentação”, pedindo também que se considere que agiu em “legítima defesa” ou em “retorsão”; (cfr., fls. 223 a 232).
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Respondendo, considera o Ministério Público que o recurso é de rejeitar; (cfr., fls. 235 a 237-v).
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Admitido o recurso com efeito e modo de subida adequadamente fixados, vieram os autos a este T.S.I., onde, em sede de vista, juntou o Exmo. Representante do Ministério Público douto Parecer, pugnando também pela improcedência do recurso; (cfr., fls. 295 a 296).
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Adequadamente processados os autos, vieram os mesmos à conferência.
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Cumpre decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Estão “provados” e “não provados” os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 213 a 214, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.
Do direito
3. Com o presente recurso impugna a arguida o Acórdão que a condenou como autora material da prática de 1 crime de “ofensa à integridade física”, p. e p. pelo art. 137°, n° 1 do C.P.M., fixando-se-lhe a pena de multa de 90 dias, à taxa diária de MOP$200,00, perfazendo um total de MOP$18.000,00 ou 60 dias de prisão subsidiária.
Afirma que a decisão recorrida padece dos vícios de “erro notório na apreciação da prova” e “contradição insanável da fundamentação”, alegando também que tão só agiu em “legítima defesa” ou “retorsão”.
Vejamos, começando-se pelos “vícios imputados à decisão da matéria de facto”.
–– Pois bem, de forma firme tem este T.S.I. entendido que o vício de “erro notório na apreciação da prova”, apenas existe quando “se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores”.
De facto, “É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 14.09.2017, Proc. n.° 729/2017, de 04.04.2018, Proc. n.° 912/2017 e de 17.05.2018, Proc. n.° 236/2018).
Por sua vez, e em relação ao vício de “contradição insanável da fundamentação” o mesmo tem sido definido como aquele que ocorre quando “se constata incompatibilidade, não ultrapassável, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão”; (cfr., v.g. os recentes Acs. deste T.S.I. de 11.01.2018, Proc. n.° 1146/2017, de 04.04.2018, Proc. n.° 127/2018 e de 19.04.2018, Proc. n.° 66/2018).
E, como se tem igualmente decidido:
“Há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem-se mutuamente”; (cfr., o Ac. da Rel. de Évora de 21.12.2017, Proc. n.° 165/16).
Em síntese, quando analisada a decisão recorrida através de um raciocínio lógico se verifique que a mesma contém posições antagónicas ou inconciliáveis, que mutuamente se excluem e que não podem ser ultrapassadas.
No caso, e após análise dos autos e atenta leitura do Acórdão agora recorrido, não se vislumbra onde, como ou em que termos incorreu o Tribunal a quo em “erro” ou “contradição”, pois que não violou nenhuma regra sobre o valor da prova tarifada, regra de experiência ou legis artis, (notando-se que nem a recorrente o indica), apresentando-se-nos também a decisão prolatada clara e lógica, sendo assim evidente a improcedência do recurso nesta parte.
Aliás, como – bem – se observa no douto Parecer do Ministério Público: “Para afirmar a existência de erro notório, a recorrente faz uma espécie de percurso inverso ao que era suposto utilizar, socorrendo-se de juízos conclusivos cujas premissas não explicita nem pormenoriza adequadamente. Nomeadamente, assevera que um homem médio, que leia o acórdão, logo conclui que o resultado do julgamento é irracional; e que da conjugação de todos os elementos constantes dos autos e da sua correlação com os depoimentos das testemunhas não é possível concluir ter sido a recorrente quem causou a lesão (inchaço) no pescoço de B. Ora, o certo é que o acórdão concluiu de forma diferente e fê-lo sustentado em provas analisadas e valorada à luz do princípio da livre apreciação, cujo juízo não externa dúvidas nem aparenta enfermar do apontado vício de erro na apreciação.
Assim, falar de dúvidas quanto à causa da lesão sofrida por B é uma hipótese que não encontra fundamento na matéria provada e na demais fundamentação do acórdão, não passando de uma opinião da própria recorrente e da forma como pessoalmente encara a prova. (…)”.
Nesta conformidade, e evidente sendo também que não ocorreu violação ao “princípio in dubio pro reo”, já que em parte alguma do Acórdão se colhe que o Tribunal a quo teve dúvidas (ou hesitações) e mesmo assim decidiu em prejuízo ou contra a arguida, mais não se mostra de consignar sobre os imputados vícios.
–– Em relação à alegada “legitima defesa”, prescreve o art. 31° do C.P.M. que:
“Constitui legítima defesa o facto praticado como meio necessário para repelir a agressão actual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro”.
E sobre tal matéria, tem este T.S.I. entendido que:
- “a “legítima defesa”, como causa exclusória da ilicitude, pressupõe uma agressão actual e ilícita e a intenção de defesa por parte do agente”, (cfr., o Ac. de 29.06.2006, Proc. n.° 31/2006);
- “só se verifica uma situação de legítima defesa quando a agressão seja ilegal e actual (por em execução ou iminente), não provocada pelo defendente, ocorra a impossibilidade de recurso à força pública e a racionalidade do meio utilizado, estando o elemento subjectivo, preenchido com o animus defendendi”, (cfr., o Ac. de 21.02.2008, Proc. n.° 484/2006);
- “a definição legal do art.° 31 do Código Penal de Macau pressupõe sempre a actualidade do ataque do agresor para efeitos de verificação da legítima defesa”; (cfr., o Ac. de 24.04.2008, Proc. n.° 164/2008).
E, “sem se verificar uma situação de defesa não existe “excesso de legítima defesa”; (cfr., o Ac. de 09.06.2003, Proc. n.° 126/2002 e de 20.09.2012, Proc. n.° 667/2012).
Por sua vez, e como igualmente já tivemos oportunidade de considerar:
“O conceito de “retorsão” implica a ocorrência conjunta dos seguintes elementos:
a) - que a agressão se siga, de forma imediata e instantânea a uma outra agressão;
b) - que surja em resposta a essa prévia agressão.
Corresponde pois a situações nas quais o agente se limita a “responder” a uma conduta ilícita ou repreensível do ofendido (a ao mesmo tempo agressor) empregando a força física.
Age em “retorsão” o arguido que agride o “ofendido” com um cinzeiro na cabeça depois de este o ter também agredido da mesma forma.
Constatando-se que agiu o arguido em retorsão, e não sendo a “dispensa da pena” uma “medida de clemência”, deve o Tribunal decretá-la se as lesões causadas forem diminutas e o arguido primário”; (cfr., os Acs. deste T.S.I. de 02.12.2010, Proc. n.° 871/2010, de 27.01.2011, Proc. n.° 880/2010 e de 11.01.2018, Proc. n.° 1146/2017).
De facto, “A retorsão corresponde a situações nas quais o agente se limita a “responder” a uma conduta ilícita ou repreensível do ofendido (a ao mesmo tempo agressor) empregando a força física”; (cfr., o Ac. da Rel. do Porto de 22.09.2010, Proc. n.° 1281/05).
Também Pinto de Albuquerque, (no “Comentário do Código Penal”, pág. 386), considera que a retorsão consiste numa reacção ilícita de agressão diante de uma agressão, também ela, ilícita.
A retorsão diferencia-se assim da legítima defesa e do estado de necessidade porque supõe a ilicitude da reacção da vítima.
E, como parece evidente, tem de ter lugar no mesmo acto, sendo essencial o carácter imediato da reacção do agente.
Ora, perante a factualidade dada como provada, (e que, como se viu, não merece censura), evidente é que não se pode dar como verificada a invocada “causa de exclusão da ilicitude” do art. 31° do C.P.M., pois que provado não está que a ora recorrente tenha sido “agredida”, (cabendo até notar que a sua então co-arguida foi absolvida da imputada prática de 1 idêntico crime de “ofensa à integridade física” do qual era ofendida a ora recorrente, tendo o assim decidido transitado em julgado).
E, assim sendo, provado estando também que (foi) a arguida (que) “agrediu a ofendida”, (cfr., v.g., a foto de fls. 16), agindo com “dolo directo” e “consciência da ilicitude da sua conduta”, e notando-se (aqui) que provado não ficou nenhum “animus defendendi”, manifesto se apresenta que viável igualmente não é a sua pretensão no sentido de se considerar que apenas agiu em “retorsão”, (cfr., art. 137°, n.° 3, al. b) do C.P.M.), pois que, da mesma forma, necessário seria a existência de uma “agressão” da qual a recorrente tivesse sido vítima e que tenha apenas agido em “resposta”, que, como já se viu, não se provou.
Dest’arte, e em face do que se deixou exposto e do que “provado” foi pelo T.J.B., visto está que o presente recurso terá que improceder na sua totalidade.
Decisão
4. Em face do expendido, e em conferência, acordam negar provimento ao recurso.
Pagará a arguida a taxa de justiça que se fixa em 6 UCs.
Registe e notifique.
Nada vindo de novo, e após trânsito, devolvam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.
Macau, aos 28 de Junho de 2018
(Relator)
José Maria Dias Azedo
(Primeiro Juiz-Adjunto)
Chan Kuong Seng
(Segunda Juiz-Adjunta)
Tam Hio Wa
Proc. 459/2018 Pág. 16
Proc. 459/2018 Pág. 1