Processo n.º 353/2018 Data do acórdão: 2018-6-28 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– erro notório na apreciação da prova
– art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal
S U M Á R I O
Como após vistos, em global e criticamente, todos os elementos probatórios referidos na fundamentação probatória do acórdão recorrido, não se mostra patente que o tribunal sentenciador recorrido, aquando da formação da sua livre convicção sobre os factos, tenha violado quaisquer normas jurídicas sobre o valor legal da prova, ou quaisquer regras da experiência da vida humana em normalidade de situações, ou quaisquer leges artis a observar no julgamento dos factos, não pode ter existido erro notório, por parte desse tribunal, na apreciação da prova como vício aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal.
O relator por vencimento,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 353/2018
(Autos de recurso penal)
Recorrente (2.o arguido): A
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformado com o acórdão proferido a fls. 1422 a 1436 dos autos de Processo Comum Colectivo n.° CR1-17-0245-PCC do 1.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, que o condenou como co-autor material de um crime consumado de burla em valor consideravelmente elevado, p. e p. pelos art.os 211.o, n.os 1 e 4, alínea a), e 196.o, alínea b), do Código Penal (CP), em quatro anos e seis meses de prisão, para além do pagamento solidário da indemnização civil, veio o 2.o arguido desse processo A, aí já melhor identificado, recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), para imputar ao Tribunal sentenciador, a título principal, o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea a), do Código de Processo Penal (CPP) (por sobretudo não haver factos provados bastantes para suportar a imputação ao próprio recorrente da provocação ou criação da astúcia como elemento capital constitutivo do tipo de crime de burla) e o vício de erro notório na apreciação da prova referido na alínea c) do n.o 2 desse artigo, com consequente reenvio do processo para novo julgamento, e, subsidiariamente, o excesso na medida da pena (por dever ser considerado que o recorrente tem agora 40 anos de idade, é casado, tem duas filhas de tenra idade, e é delinquente primário, merecendo, pois, ele uma pena de três anos de prisão) (cfr. a motivação do recurso apresentada a fls. 1474 a 1486 dos presentes autos correspondentes).
Ao recurso respondeu inclusivamente o Ministério Público no sentido de improcedência do recurso (cfr. a resposta de fls. 1493 a 1505v).
Subidos os autos, emitiu o Digno Representante do Ministério Público parecer (a fls. 1639 a 1640), pugnando também pelo não provimento do recurso.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir do recurso nos termos do presente acórdão definitivo, lavrado nos termos do art.o 417.o, n.o 1, parte final, do CPP.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se que o acórdão ora recorrido se encontra proferido a fls. 1422 a 1436 dos autos, cujo teor se dá por aqui integralmente reproduzido.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Começa o arguido recorrente por invocar o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada. Entretanto, a argumentação concretamente tecida por ele para sustentar a verificação deste vício não ter a ver propriamente com este vício, mas sim com a questão de subsunção dos factos ao direito, questão essa que só precisaria de ser vista depois, se improcedesse o vício de erro notório na apreciação da prova também arguido pelo recorrente.
Pois bem, como após vistos, em global e criticamente, por este Tribunal de recurso, todos os elementos probatórios referidos na fundamentação probatória do acórdão recorrido, não se mostra patente que o Tribunal sentenciador recorrido, aquando da formação da sua livre convicção sobre os factos, tenha violado quaisquer normas jurídicas sobre o valor legal da prova, ou quaisquer regras da experiência da vida humana em normalidade de situações, ou quaisquer leges artis a observar no julgamento dos factos, não pode ter existido erro notório, por parte desse Tribunal recorrido, na apreciação da prova. Aliás, esse mesmo Tribunal, nas páginas 21 a 23 do texto do seu acórdão (a fls. 1432 a 1433), já explicou congruentemente o processo da formação da sua livre apreciação sobre a prova, permitida pelo art.o 114.o do CPP.
Sendo de respeitar assim a factualidade já descrita como provada no acórdão recorrido, é de ver agora se foi correcta a subsunção dos factos provados ao direito, feita pelo Tribunal recorrido. E a resposta a isto não pode deixar de ser afirmativa. Na verdade, todos os factos provados em primeira instância dão para integrar cabal e suficientemente a prática pelo recorrente, em co-autoria material, de um crime de burla em valor consideravelmente elevado, sendo de frisar que na qualidade de co-autor, não foi necessário ao recorrente ter praticado pessoalmente todos os factos integrantes do tipo legal de burla, por um lado, e, por outro, os factos provados 1, 4 a 10, 12, 14 a 15 e 19 oferecem já alicerce à situação descrita no ponto 28 da fundamentação fáctica do mesmo acórdão recorrido, no sentido de haver efectiva co-autoria material do arguido recorrente na prática do crime de burla em causa.
Por fim, quanto à subsidiariamente rogada redução da pena de prisão:
O crime consumado de burla em valor consideravelmente elevado, p. e p. sobretudo pelo art.o 211o, n.o 4, alínea a), do CP, é punível com pena de prisão de dois a dez anos.
No caso, o Tribunal a quo aplicou quatro anos e seis meses de prisão.
Ponderando tudo (com consideração de todas as circunstâncias fácticas já apuradas pelo Tribunal a quo e descritas como provadas no texto da decisão recorrida) à luz dos padrões da medida da pena vertidos nos art.os 40.º, n.os 1 e 2, e 65.º, n.os 1 e 2, do CP, realiza o presente Tribunal de recurso que devido às prementes exigências de prevenção geral de delito de burla em avultado valor (como o caso dos autos em que estiveram em causa HKD24.392.500,00 em fichas de jogo), a pena de prisão concretamente achada pelo Tribunal recorrido não pode, efectivamente, admitir mais margem para redução, a despeito de todo o alegado pelo recorrente em seu abono na motivação do recurso.
Improcede, pois, o recurso, sem mais indagação por desnecessária ou prejudicada.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em negar provimento ao recurso.
Custas do recurso pelo arguido recorrente, com três UC de taxa de justiça.
Macau, 28 de Junho de 2018.
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Chan Kuong Seng
(Primeiro Juiz-Adjunto)
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Tam Hio Wa
(Segunda Juíza-Adjunta)
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José Maria Dias Azedo
(Relator do processo)
(Vencido nos termos da declaração de voto que segue)
Processo nº 353/2018
(Autos de recurso penal)
Declaração de voto
1. Como primitivo relator, elaborei projecto de acórdão onde propunha a revogação do Acórdão recorrido e a absolvição do recorrente quanto ao crime de “burla” pelo qual foi condenado, (decisão esta que, nos termos do art. 392° do C.P.P.M., devia aproveitar o co-arguido não recorrente B).
Vencido que fiquei, passo a expor o meu ponto de vista, seguindo, de perto, o projecto de acórdão que submeti à apreciação da Conferência.
2. A, (2°) arguido com os restantes sinais dos autos, respondeu perante o Colectivo do T.J.B., e, a final, foi condenado pela prática em co-autoria material – com o (1°) arguido B – de 1 crime de “burla de valor consideravelmente elevado”, p. e p. pelo art. 211°, n.° 1 e 4, al. a) e 196°, al. b) do C.P.M., na pena de 4 anos e 6 meses de prisão; (cfr., fls. 1422 a 1436 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
No seu recurso, imputava ao Acórdão recorrido o vício de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”, “erro notório na apreciação da prova” e “excesso de pena”; (cfr., fls. 1474 a 1486).
E embora – acompanhando aqui a Resposta e Parecer do Ministério Público – se me afigure de julgar improcedente o recurso no que toca à “decisão da matéria de facto” e aos assacados vícios de “insuficiência” e “erro”, padece a “decisão de direito” de “errada qualificação-jurídica”, não se podendo manter.
Vejamos.
Pelo Colectivo do T.J.B. foram dados como “provados” os factos seguintes:
“ 1.º
Pelas 7h12 da noite aos 23 de Setembro de 2016, o arguido B, enquanto gerente de zona no Casino C, quando estava em serviço, tirou um sapato (i.e. distribuidor) de cartas (cada sapato de cartas tinha 8 conjuntos de cartas, eram no total 416 cartas) da caixa para a guarda temporária de cartas instalada no Clube VIP "D", no 2.º andar do Casino. Depois disso, tirou um outro sapato de cartas às escondidas e escondeu-o atrás duma placa plástica de cor preta que levava consigo na mão. Ele só digitalizou o primeiro sapato de cartas segundo os procedimentos, através do sistema de gerência de cartas "PCMS" ("PLAYING CARD MANAGER SYSTEM") da companhia no computador; em seguida, colocou-o em um banco de jogos para ser usado como reserva. Depois, o arguido B levou o outro sapato de cartas, coberto com a placa plástica de cor preta ao corredor fora da casa de banho do Clube VIP, e entregou-o ao arguido A, que já lá estava à espera. O arguido A meteu o sapato de cartas na mala a tiracolo que trazia consigo muito depressa e foi-se embora do casino. Fora da entrada do lado do Casino, entrou no carro de cor branca MQ-XX-X7, conduzido pelo arguido E e deixou o local. O arguido E era o condutor contratado pelo arguido A, e segundo as instruções dadas pelo arguido A, ficava à espera fora do Hotel C para levar o arguido a bordo. O arguido E também conhecia muito bem o arguido B.
2.º
Segundo as regras de exploração do Casino C, apenas os empregados do ranking gerente de zona é que têm a competência de ter acesso às cartas dentro das caixas para a guarda temporária e entregá-las aos bancos de jogo para serem usadas. O arguido A também já alguma vez foi gerente de zona no Casino C; mas no tempo quando o presente caso aconteceu, ele já se tinha desligado do serviço.
3.º
O arguido E conduziu o carro de cor branca MQ-XX-X7 acima referido e levou o seu patrão (i.e. O arguido A) a algures ao redor; enquanto este segundo (o arguido A) saiu do carro lá, trazendo o sapato de cartas que o arguido B lhe tinha dado.
4.º
Pelas 8h05 da mesma noite, mais uma vez o arguido E conduziu o carro de cor branca MQ-XX-X7 e levou o arguido A de volta ao Casino C. No entanto, durante o lapso de tempo de cerca de 1 hora, o sapato de cartas acima referido levado para fora pelo arguido A já foi tirado fora e foi reorganizada a sequência das cartas com muita atenção; e depois as cartas foram metidas de volta na embalagem. A aparência não era diferente daquela de um sapato de cartas nunca aberto.
5.º
Depois de voltar ao Casino C, o arguido A foi directamente ao corredor fora da casa de banho no Clube VIP "D" para reunir-se com o arguido B, e entregou de volta ao arguido B o sapato de cartas que já tinha levado embora anteriormente e ao qual já se tinham feito batotas.
6.º
Escondendo o sapato de cartas com a placa plástica de cor preta, o arguido B voltou ao Clube VIP "D", abriu a caixa para a guarda temporária de cartas e fez movimentos de tirar cartas da caixa, fingindo que as cartas às quais já se tinha feito trapaça tivessem sido levadas só então da caixa; e digitalizou o sapato de cartas através do sistema de gerência de cartas "PCMS" ("PLAYING CARD MANAGER SYSTEM") no computador. Pelas 8h12 da mesma noite, levou o sapato de cartas ao quarto VIP no Clube VIP e colocou-o na caixa para as cartas-reserva no banco de Bacará n.º 48XXX1 para ser usado.
7.º
O arguido B e o arguido A sabiam ambos perfeitamente que os seus actos violavam seriamente as regras do casino, e sabiam ambos que já se tinham feito batotas ao sapato de cartas acima referido, e que o jogador que usaria aquele sapato de cartas ia ganhar em jogo.
8.º
Todos os actos do arguido B, do arguido A, do arguido E acima referidos foram capturados e registrados pelo equipamento videovigilância instalado dentro do Casino C. (vd. a fls. 105 a 129 dos autos)
9.º
Quando o arguido B levou o sapato de cartas ao qual já se tinha feito trapaça à caixa para as cartas-reserva no banco de Bacará n.º 48XXX1 em um dos quartos VIP no Clube VIP "D" para ser usado, só havia um jogador no quarto – o suspeito do sexo masculino F; o arguido G acompanhou F a jogar e trocou-lhe fichas.
10.º
O banco de Bacará n.º 48XXX1 acima referido era o único banco de jogo no quarto VIP em causa. Segundo as regras do Casino C, na caixa para as cartas-reserva nos bancos de Bacará, só se colocava 1 sapato de cartas reserva.
11.º
Foi a partir das cerca 4h38 no mesmo dia (o 23 de Setembro de 2016) é que o suspeito F começou a jogar no banco Bacará n.º 48XXX1 acima referido. O arguido G levantou fichas de sala de casino no valor de HKD$20000000,00 da conta de troca de fichas n.º BXXX2 do Clube VIP "D" (titular da conta: H) a F para jogo. As apostas lançadas por F variaram de HKD$200000,00 a HKD$700000,00 em cada partida.
12.º
Foi assim até aproximadamente as 10h00 da mesma noite, quando o suspeito F exigiu mudar de croupier e mandou à nova croupier I mudar das cartas dentro do distribuidor de cartas (i.e. para começar a usar o sapato de cartas entregues pelo arguido B). Até aquele momento, o suspeito F já tinha jogado com 7 sapatos de cartas (o sétimo sapato de cartas ainda não tinha acabado) e já tinha perdido HKD$13320000,00 em fichas.
13.º
Enquanto I mudava de cartas, o suspeito F depositou HKD$6680000,00 em fichas que tinha restado do jogo de volta à conta de troca de fichas n.º BXXX2. O arguido G, por sua vez, mesmo sabendo que o suspeito F já tinha perdido enormemente, e sem que o suspeito F tivesse fornecido qualquer garantia de empréstimo real, sempre levantou fichas de sala de casino no valor de HKD$20000000,00 da conta de troca de fichas acima referida para o suspeito F continuar a jogar; eis senão quando vários indivíduos não identificados entraram de repente no quarto VIP para ver F jogar; quando o suspeito F acabou de jogar, eles foram-se embora um a um.
14.º
Antes de serem usados, todos os sapatos de cartas já foram baralhados automaticamente pela máquina da companhia fabricante. Por isso, segundo os procedimentos, quando o croupier muda de cartas, não precisa de baralhar o novo sapato de cartas. A croupier I tirou da caixa das cartas reserva o sapato de cartas trazido pelo arguido B, abriu a embalagem e dividiu-o em duas partes e trocaram-nas (i.e., colocar o terço das cartas, aproximadamente, que estava originalmente no fundo para cima); depois, colocou-o em uma estante de cartas transparente. Depois, deixou o suspeito F cortar as cartas; o suspeito F inseriu de propósito o cartão preto para cortar as cartas ("cut" as cartas) no meio do terço das cartas acima referido, que tinha sido transferido para cima, segundo o modo anteriormente combinado; a croupier colocou as cartas em cima do cartão preto de volta no fundo (i.e. colocou-as na posição original), e pôs as cartas já cortadas no distribuidor de cartas para começar uma nova partida.
15.º
Em primeiro lugar foi realizada a "caída de cartas" (ou seja, o abandono de cartas), e foram abandonadas 11 cartas; logo a seguir F exigiu o "passar por cima das cartas" (ou seja, o "experimentar de cartas", isto é, a ver o resultado das partidas de cartas sem apostar) por 3 partidas; em seguida, pelas 10h11 da mesma noite, F começou a apostar; e jogou até às 10h50 da mesma noite, aproximadamente, quando F exigiu que acabasse. Foram realizadas no total 36 partidas de jogo, entre as quais 30 foram ganhas pelo banqueiro, 6 pelo jogador, sem qualquer empate; enquanto o suspeito F apostou todas as vezes que o banqueiro ganhasse; o montante de aposta por partida foi tão alto como HKD$1180000,00 em média; e ganhou na totalidade HKD$24392500,00 em fichas de numerário.
16.º
Enquanto o suspeito F estava a apostar, o arguido G estava sempre sentado ao lado de F para trocar-lhe e guardar-lhe as fichas; o arguido B, por sua vez, também entraram por várias vezes no quarto VIP no qual se encontrava o suspeito F, para observar.
17.º
Depois do jogo, o arguido G depositou todas as fichas de volta na conta de troca de fichas n.º BXXX2, levantou HKD$10000000,00 em fichas de numerário e entregou-as ao suspeito F. Os dois despediram-se e foram-se embora do Casino C.
18.º
Quando o departamento de vigilância do Casino C consultou o vídeo de vigilância em causa, em conformidade com as regras, descobriu que o arguido B tinha tirado um sapato de cartas e o tinha dado ao arguido A, que o levou para fora do casino. Passado menos de 1 hora, o arguido A levou o mesmo sapato de cartas de volta e devolveu-o ao arguido B; enquanto o arguido B colocou as cartas no banco no qual o suspeito F e o arguido G jogavam. Foi exactamente com aquele sapato de cartas que o suspeito F ganhou HKD$24392500,00 em fichas de numerário nas partidas. A situação foi considerada merecedora de suspeita; então participaram do caso à polícia.
19.º
O investigador da PJ e o departamento de vigilância do Casino C viram ambos com muita atenção as partidas de jogo (i.e., quando F estava a jogar com o 8.º sapato de cartas no banco de Bacará n.º 48XXX1). Ambos descobriram as situações insólitas, sem que um ter sabido da opinião do outro.
(1) Quanto à sequência da 24.ª carta à 40.ª carta daquele sapato de cartas (J, 9, K, Q, 10, K, K, 9, J, Q, 9, Q, K, Q, 10, 7, 6 de espadas), tratava-se de uma sequência de carta especial. Como em cada partida de Bacará, usam-se de 4 a 6 cartas, segundo as regras de jogo de Bacará (Despacho Regulamentar Externo do Secretário para a Economia e Finanças n.º 55/2004), foi realizado o teste de distribuição de cartas com o conjunto de cartas acima mencionado. Se se começa com qualquer uma das 6 primeiras cartas (J, 9, K, Q, 10, K) enquanto a primeira carta da partida e se inicia aí a distribuição de cartas, a última carta da partida do jogo sará sempre a 40.ª carta – 6 de espadas; então a 41.ª carta sará decerto a 1.ª carta da partida seguinte. Segundo o cálculo feito, a probabilidade do acontecimento natural da sequência de cartas especial acima referida (J, 9, K, Q, 10, K, K, 9, J, Q, 9, Q, K, Q, 10, 7, 6 de espadas) é de 1/202918266820, o que mostra que é altamente provável que a sequência das cartas terá sido arranjada por alguém.
(2) Como as regras da distribuição de cartas em Bacará não deixa margem a aleatoriedade, uma vez que são arranjadas as cartas da sequência especial acima referida segundo a sequência que se necessita, o resultado da partida é determinado. Portanto, bastava que o suspeito F soubesse de antemão a sequência dos resultados da partida seguinte (i.e. ganha o banqueiro, ganha o jogador ou empate), já poderia ganhar na aposta, sem precisar memorizar a sequência de todo o sapato de cartas, nem precisar alguém que o lembrasse no local. Segundo o cálculo feito, a probabilidade do acontecimento natural do vencimento do jogador em 30 das 36 partidas de jogo é de 1/950756. Se não tivesse havido alguém que arranjou a sequência das cartas, a probabilidade do acontecimento teria sido extremamente diminuta.
(3) Embora segundo as regras, a croupier não tivesse precisado de baralhar as cartas no local, para garantir que a sequência de cartas não fosse disturbada pelo "cortar das cartas", o suspeito F devia cooperar. Portanto, no "cortar das cartas", o suspeito F inseriu de propósito o cartão preto para cortar as cartas no meio do terço das cartas, que tinha sido transferido para cima; deste modo, por um lado evitou-se que fosse destruída a sequência de cartas especial, por outro lado as cartas em cima do cartão preto foram recolocadas no fundo (ou seja, foram postas na posição original); isso garantiu que se mantinha inalterada a maioria das cartas já anteriormente arranjadas por alguém. Depois a "caída de cartas" e o "passar por cima das cartas", já foram basicamente distribuídas as poucas cartas transferidas do fundo para a cima; a seguir, uma vez que começou a sequência de cartas especial aqui em causa, o suspeito F já podia começar a apostar conforme os resultados da partida anteriormente fixados.
20.º
Através de um exame, foi descoberto que a etiqueta de barras na embalagem de papel do sapato de cartas aqui em causa tinha sido arrancada e colada por uma segunda vez (vd. o relatório pericial a fls. 756 a 768). No entanto, todas as cartas usadas pelo Casino C são fabricadas mecanicamente; as etiquetas nas embalagens não serão coladas por uma segunda vez. Quanto às cartas do próprio sapato de cartas aqui em causa, não têm indícios de ser substituídas ou marcadas; são do mesmo modelo que a mostra fornecida pelo Casino C e partilha com a mostra as mesmas características de impressão.
21.º
O investigador da PJ interceptou o arguido B fora da sua residência. Com o consentimento dele, foram encontrados no corpo dele um telemóvel da cor titânio-dourada (marca: XX, modelo: XX XX; estavam lá dentro um cartão de telemóvel J, n.º 89XXXXX6823, e um cartão de telemóvel K, n.º 89XXXXX9956), e MOP$1500,00. Foram encontrados na residência do arguido B, situada no EDF. XX, XX.º andar "XX", Estrada de XX: (1) um telemóvel da cor rosa-dourada com uma pilha, marca: XX, modelo: XX, número de série do telemóvel: RVXXXXX2VB; estavam lá dentro um cartão de telemóvel XX, n.º 89XXXXXX5866, e um cartão de telemóvel J, n.º 89XXXXX3388, e um cartão de memória de 32GB; (2) um telemóvel da cor cinzento-preta (marca: XX, modelo: XX, número de série do telemóvel: 35XXXXX0672; estava lá dentro um cartão de telemóvel J 4+, n.º 89XXXXX6254); (3) um telemóvel da cor preta (marca: XX, modelo: XX, número de série do telemóvel: 01XXXXX0814; estava lá dentro um cartão de telemóvel J 4+, n.º 89XXXXX6254); (4) um telemóvel da cor preta e uma pilha especial para o telemóvel, marca: XX, modelo: XX, número de série do telemóvel: 60XXXX8242 101 16G; estava lá dentro um cartão de telemóvel L, n.º 89XXXX509K); (5) um telemóvel da cor preta e uma pilha, marca: XX, modelo: XX, número de série do telemóvel: 35XXXXXX7935; estava lá dentro um cartão de telemóvel J, n.º 89XXXXXX4960); (7) HKD$15000,00 em numerário; (8) RMB¥900,00 em numerário; (9) uma caderneta de conta de poupança em dólares de HK do M, nome: E, n.º da conta: 01XXXXX2220. (vd. o auto de revista e de apreensão a fls. 144 e 145 dos autos, e o auto de busca doXXciliária e de apreensão a fls. 146 a 149)
22.º
O investigador da PJ interceptou o arguido A fora da sua residência. Com o consentimento dele, foram encontrados na residência dele, EDF. XX (BLOCO XX), XX.º andar "XX", Rua XX, Coloane: (1) um telemóvel da cor preta, marca: XX, modelo: XX, estava impresso no telemóvel XX: A1XXXXXE129, um cartão de telemóvel impresso com as letras "L", n.º 89XXXXXX628K; (2) um telemóvel com a frente em preto e as costas em branco, marca: XX, modelo: XX, estava impresso no telemóvel IMEI:86XXXXXX4914, um cartão de telemóvel impresso com as letras "N UXXX8K", n.º 89XXXXX429K; (3) um telemóvel com a frente em branco e as costas em cor-de-rosa, marca: XX, modelo: XX, estava impresso às costas do telemóvel O: 57XXX44A, um cartão de telemóvel, n.º 89XXXXXX9987; (4) 2 planos do Casino C. (vd. o auto de busca e de apreensão a fls. 175 a 178 dos autos)
23.º
O investigar da PJ interceptou o arguido G no Posto Fronteiriço das Portas do Cerco de Macau. Com o consentimento dele, foram encontrados no corpo dele um telemóvel cinzento-preto, marca: XX, modelo: XX, n.º de série: 35XXXXX5118, estava lá dentro um cartão de telemóvel da "N", n.º 89XXXXXX122K. (vd. o auto de revista e de apreensão a fls. 244 e 245 dos autos)
24.º
O investigador da PJ interceptou o arguido E fora da sua residência. Com o consentimento dele, foram encontrados no corpo dele: (1) um telemóvel cor-de-rosa, marca: XX, modelo: XX, estava lá dentro um cartão de telemóvel da "N", n.º 89XXXXXX866K; (2) um telemóvel prateado-branco, marca: XX, modelo: XX, n.º de série: 35XXXXXX1702, estava lá dentro um cartão de telemóvel J, n.º 89XXXXX1427; (3) uma chave de carro com controlo remoto, na qual estava colado um papelinho com as letras "MQ-XX-X7"; (4) RMB¥1700,00 em numerário; (5) HKD$16000,00 em numerário; (6) uma guia de empréstimo e o canhoto da cor branca do Clube VIP "P", "D" (n.º LXXX38); (7) uma guia de empréstimo e o canhoto da cor branca do Clube VIP "P", "D" (n.º LXXX35); (8) uma guia de empréstimo e o canhoto da cor branca do Clube VIP Q (n.º BXXX99); (9) um recibo da cor amarela do Clube VIP "D Group" (n.º 1XXX73). (vd. o auto de revista e de apreensão a fls. 265 a 271 dos autos)
25.º
Com o consentimento do proprietário do carro da cor branca MQ-XX-X7, foram encontrados dentro do carro: (1) uma folha de troca de fichas do Ocho (R), série 002, 2; (2) uma cola líquida da marca S; (3) um conjunto de cartas da marca "T"; (4) uma câmara de filmar em painel do carro da cor preta, da marca "U"; (5) um cartão de memória da marca XX 16GB. (vd. o auto de busca domiciliária e de apreensão a fls. 288 a 291 dos autos)
26.º
Depois do acontecimento do caso, o investigador da PJ apreendeu fichas de numerário do C no valor total de HKD$11070000,00 da conta de troca de fichas n.º BXXX2 (nome do titular: H) do Clube VIP "D"; além disso, também foram apreendidas fichas de numerário do C no valor total de HKD$13320000,00. Estas fichas de numerário foram o dinheiro obtido criminosamente no presente processo, que F usou, após a prática do caso, para devolver o empréstimo ("MARKER") do Clube VIP "D". (vd. o auto apreensão a fls. 391 a 393 dos autos)
27.º
Os investigadores consultaram as contas bancárias do arguido A e do arguido E. Descobriu-se que aos 15 de Agosto de 2016, tinham sido depositados, de repente, HKD$3000000,00 em numerário na conta bancária em nome do arguido A no Banco da XX, Sucursal Macau; enquanto aos 27 de Junho de 2016 e aos 4 de Julho de 2016, o arguido A transferiu o montante total de HKD$1100000,00, através de transferência bancária, para a conta bancária em nome do arguido E no Banco da XX, Sucursal Macau. (vd. o relatório da análise das contas bancárias a fls. 658 e 659 dos autos)
28.º
Estando livres, voluntários e conscientes, o arguido B e o arguido A partilharam trabalho entre si e cooperaram-se. O arguido B, quando estava de serviço, roubou as cartas através de furto, e deu-as ao arguido A; enquanto o arguido A foi responsável por arranjar a ordem das cartas roubadas, ou por ele próprio ou juntamente com outras pessoas. Estes 2 arguidos praticaram os actos acima referidos com dolo; tendo arranjado de antemão as cartas em uma ordem especial e aí tendo ficado a saber o resultado ou a tendência do resultado das partidas de Bacará, enganaram o Casino C, e atingiram o objectivo de obter para si próprios ou para outrem enriquecimento ilegítimo de valor consideravelmente elevado, e provocaram directamente prejuízos patrimoniais de valor consideravelmente elevado ao casino.
29.º
O arguido B e o arguido A sabiam perfeitamente que os seus actos eram ilegais, e que seriam punidos pela lei.
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Eis os factos provados constantes do requerimento de indemnização cível:
A Demandante dedica-se à actividade de exploração de jogos de fortuna e azar ou outros jogos em casino na Região Administrativa Especial de Macau, sendo a proprietária do casino C Macau.
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Ao mesmo tempo, também foram provados os seguintes factos:
Segundo o certificado de registo criminal, o arguido B e o arguido A são delinquentes primários; enquanto o arguido G e o arguido E não têm registo criminal.
Além disso, eis as situações pessoais e familiares dos 4 arguidos:
O arguido B – Antes de encontrar-se em prisão preventiva, era gerente de zona, auferia mensalmente MOP$39000,00 em média.
– Precisa de alimentar os pais.
– Quanto à escolaridade, é licenciado.
O arguido A – Antes de encontrar-se em prisão preventiva, era emprestador de dinheiro para jogos, auferia mensalmente HKD$300000,00 a HKD$400000,00.
– Precisa de alimentar a mãe e 3 filho/as menores.
– Quanto à escolaridade, é licenciado.
O arguido G – Comerciante, auferia mensalmente HKD$60000,00 em média.
– Precisa de alimentar os pais e 3 filho/as menores.
– Tem o grau académico de escola secundária.
O arguido E – Condutor, auferia mensalmente HKD$40000,00 em média.
– Precisa de alimentar a mãe, a mulher e 2 filho/as menores.
– Quanto à escolaridade, é licenciado”; (cfr., fls. 1427 a 1432, e 1561 a 1576).
E procedendo ao “enquadramento jurídico-penal” dos transcritos “factos dados como provados” consignou o Colectivo a quo o seguinte:
“Segundo os factos provados, o arguido B e o arguido A, com o intuito de obter para si ou para outrem interesses patrimoniais ilegítimos, mesmo sabendo que não o podiam fazer, sempre partilharam trabalho entre si e cooperaram-se. O arguido B quando estava de serviço, roubou as cartas através de furto, e deu-as ao arguido A; enquanto o arguido A foi responsável por entregar as cartas roubadas de volta ao arguido B depois de a ordem das cartas ter sido arranjada por alguém. O arguido B colocou as cartas no banco de jogo em causa para serem usadas como reserva. Tendo arranjado de antemão as cartas em uma ordem especial e aí tendo ficado a saber o resultado ou a tendência do resultado das partidas de Bacará, estes 2 arguidos enganaram o Casino C. E eles sabiam perfeitamente que o jogador usando aquelas cartas ia ganhar no jogo. Por fim, isso fez com que o suspeito F, que usou aquelas cartas, ganhasse no jogo do Casino C fichas de numerário no valor de HKD$ 24392500,00. Como o valor obtido através de burla foi superior às MOP$150000,00, é de valor consideravelmente elevado (nos termos do art.º 196.º, alínea b) do CP). Portanto, estes 2 arguidos praticaram, em co-autoria, 1 crime de burla (de valor consideravelmente elevado), acusado na acusação.
No entanto, como não está provado que o arguido G e o arguido E tenham praticado os factos criminosos constantes da acusação, faltam os elementos objectivos e subjectivos do crime de burla (de valor consideravelmente elevado). Portanto, deve-se absolver estes 2 arguidos do crime.
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(…)”; (cfr., fls. 1434 e 1585 a 1586).
Pois bem, o crime de “burla” vem previsto no art. 211° do C.P.M., onde se preceitua que:
“1. Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
2. A tentativa é punível.
3. Se o prejuízo patrimonial resultante da burla for de valor elevado, o agente é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias.
4. A pena é a de prisão de 2 a 10 anos se:
a) O prejuízo patrimonial for de valor consideravelmente elevado;
b) O agente fizer da burla modo de vida; ou
c) A pessoa prejudicada ficar em difícil situação económica”.
E como em relação aos elementos típicos do crime de “burla”, temos considerado:
“A construção do crime de “burla” supõe a concorrência de vários elementos típicos: (1) o uso de erro ou engano sobre os factos, astuciosamente provocado; (2) a fim de determinar outrem à prática de actos que lhe causam, ou a terceiro, prejuízo patrimonial – (elementos objectivos) – e, por fim, (3) a intenção do agente de obter para si ou terceiro um enriquecimento ilegítimo (elemento subjectivo).
Impõe-se, assim, num primeiro momento, a verificação de uma conduta (intencional) astuciosa que induza directamente em erro ou engano o lesado, e, num segundo momento, a verificação de um enriquecimento ilegítimo de que resulte prejuízo patrimonial do sujeito passivo ou de terceiro.
O que caracteriza o crime de “burla” é a acção do agente que, astuciosamente, provoca no sujeito passivo erro ou engano sobre quaisquer factos, e assim determina que o mesmo pratique actos que causem prejuízo a ele ou a outra pessoa.
Por erro deve entender-se a falsa (ou a nenhuma) representação da realidade concreta, a funcionar como vício influenciador do consentimento ou da aquiescência da vítima.
É usada astúcia quando os factos invocados dão a uma falsidade a aparência de verdade, ou quando o burlão altera ou dissimula factos verdadeiros, e (actuando com destreza) pretende enganar e surpreender a boa fé do burlado, de forma a convencê-lo a praticar actos em prejuízo do seu património ou de terceiro”; (cfr., v.g., o Ac. deste T.S.I. de 27.09.2012, Proc. n.° 681/2012 e de 27.04.2017, Proc. n.° 275/2017, a recente Decisão Sumária de 11.04.2018, Proc. n.° 204/2018, e o Ac. do Vdo T.U.I. de 02.03.2017, Proc. n.° 73/2015).
Aqui chegados, e sem prejuízo do respeito por outro entendimento em sentido diverso, (e como se referiu), mostra-se-nos pois de considerar que a decisão (condenatória) recorrida não se pode manter por padecer de inadequada apreciação (leitura) da “factualidade provada” e errado “enquadramento jurídico-penal”.
É que – como nesta parte bem se diz no excerto decisório que se deixou transcrito, (e assim resulta igualmente da factualidade dada como provada) – o indivíduo, (“suspeito”), que jogou e acabou por ganhar ao Casino em questão o quantum de HKD$24.392.500,00 foi F.
Porém, (o certo é que) de uma leitura a toda a matéria dada como provada não se retira ou identifica um único facto que demonstre que este mesmo F, tenha agido com conhecimento da referida “troca de cartas” e em conluio com os arguidos B e A, (o ora recorrente), sendo mesmo de referir que nem tão pouco se pode considerar – porque provado não está – que entre estes tinha havido um “acordo (ainda que tácito, ou) implícito”, já que da dita matéria de facto não se vislumbra que se conhecessem ou até que, em circunstância alguma, se tenham sequer encontrado.
Com efeito, e não obstante resultar da factualidade dada como provada que B desviou (indevidamente) do Casino um conjunto de jogos de cartas, (“sapato de cartas”), que entregou a A, (ora recorrente), que o levou para fora do Casino e que mais tarde o devolveu ao dito B, que o “colocou a jeito” de poder vir a ser utilizado no jogo, o que acabou efectivamente por suceder quando o aludido F jogou, e, ainda que provado esteja também que a “etiqueta de barras” na embalagem que acomodava o conjunto de cartas tinha sido descolada e reposta – não nos parecendo, como alegado vem pelo recorrente, que houve aqui qualquer “erro notório” por tal “manuseamento da etiqueta” não ter sido oportunamente detectado, já que, em nossa opinião, o mesmo pode não ter impedido a sua leitura e conclusão antes da sua utilização no jogo de que se tratavam de “cartas do casino” – o certo é que, da factualidade dada como provada, nada mais nos parece que exista que permita dar como verificados os atrás identificados “elementos típicos do crime de burla” pelo qual foi condenado o ora recorrente, (e o co-arguido B).
Nem tão pouco se alcança como se chegou à solução vertida na decisão condenatória recorrida se provado não está sequer que existiu, (ou ocorreu), qualquer “contacto” – e seja ele directo ou indirecto – entre os referidos arguidos B e o ora recorrente A, e o jogador F, o mesmo sucedendo com G, que proporcionou o capital (fichas) para o jogo levado a cabo.
Como por diversas vezes já teve este Tribunal oportunidade de considerar:
“São requisitos essenciais para que ocorra “comparticipação criminosa” sob a forma de “co-autoria”, a existência de “decisão” e de “execução conjuntas”.
O “acordo” pode ser tácito, bastando-se com a consciência/ vontade de colaboração dos vários agentes na realização de determinado crime.
No que respeita à “execução”, não é indispensável que cada um dos agentes intervenha em todos os actos ou tarefas tendentes a atingir o resultado final, importando, apenas, que a actuação de cada um, embora parcial, se integre no todo e conduza à produção do objectivo em vista.
No fundo, o que importa é que haja uma “actuação concertada” entre os agentes e que um deles fira o bem tutelado.
Por sua vez, é cúmplice aquele que tem uma actuação à margem do crime concretamente cometido, quedando-se em actos anteriores ou posteriores à sua efectivação. Na cumplicidade, há um mero auxílio ou facilitação da realização do acto assumido pelo autor e sem o qual o acto ter-se-ia realizado, mas em tempo, lugar ou circunstâncias diversas. Portanto, aqui, o cúmplice, fica fora do acto típico e só deixa de o ser, assumindo então o papel de co-autor, quando participa na execução, ainda que parcial, do projecto criminoso”; (cfr., v.g., os Acs. deste T.S.I. de 29.10.2015, Proc. n.° 751/2015, de 14.01.2016, Proc. n.° 1053/2015, e de 23.03.2017, Proc. n.° 115/2017, do ora relator).
Motivos não se vislumbrando para não se ter como adequado o entendimento que se deixou consignado, e não se alcançando da facticidade dada como provada qualquer “decisão e execução” – parcial ou não – “conjunta” por parte do ora recorrente A, do (1°) arguido B e do jogador F, (que nem como testemunha teve intervenção nestes autos), pouco mais se monstra de dizer.
E, nesta conformidade, adequada se nos apresenta a revogação da decisão recorrida, pois que, para além de assente estar ser tão só uma (mera) “probabilidade” que as cartas utilizadas no jogo tivessem sido (efectivamente) “viciadas”, (colocadas numa determinada ordem para permitir o seu conhecimento antecipado, cfr., neste ponto, o facto provado 19°, n.° 2), não se alcança como se chegou à “conclusão” ínsita no pronto 28° e 29° da mesma factualidade provada, onde se fez constar que:
“Estando livres, voluntários e conscientes, o arguido B e o arguido A partilharam trabalho entre si e cooperaram-se. O arguido B, quando estava de serviço, roubou as cartas através de furto, e deu-as ao arguido A; enquanto o arguido A foi responsável por arranjar a ordem das cartas roubadas, ou por ele próprio ou juntamente com outras pessoas. Estes 2 arguidos praticaram os actos acima referidos com dolo; tendo arranjado de antemão as cartas em uma ordem especial e aí tendo ficado a saber o resultado ou a tendência do resultado das partidas de Bacará, enganaram o Casino C, e atingiram o objectivo de obter para si próprios ou para outrem enriquecimento ilegítimo de valor consideravelmente elevado, e provocaram directamente prejuízos patrimoniais de valor consideravelmente elevado ao casino”, e que,
“O arguido B e o arguido A sabiam perfeitamente que os seus actos eram ilegais, e que seriam punidos pela lei”.
Tal factualidade, apresenta-se-nos, pois, “conclusiva”, já que se encontra “desconexionada” da restante factualidade dada como provada, nomeadamente, quanto à conduta de F, que em conformidade com a mesma factualidade, apenas se retira que jogou, desconhecendo os arguidos e o que tinha – eventualmente – sucedido às cartas, sendo, por isso, (manifestamente) ineficaz para suportar um “juízo condenatório” como o proferido no douto Acórdão recorrido.
3. Dest’arte, e nos termos do expendido, absolvia o recorrente A do crime de “burla” pelo qual foi condenado, decisão esta que devia aproveitar o co-arguido B, nos termos do art. 392° do C.P.P.M..
Macau, aos 28 de Junho de 2018
Processo n.º 353/2018 Pág. 21/21