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Processo n.º 373/2015 Data do acórdão: 2018-7-5 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– art.o 34.o, n.o 1, do Código Penal
– estado de necessidade desculpante
– inibição de condução
– suspensão da execução
– art.o 109.o, n.o 1, da Lei do Trânsito Rodoviário
S U M Á R I O
1. Se ocorresse um autêntico estado de necessidade desculpante previsto no art.o 34.o, n.o 1, do Código Penal, a culpa da prática do crime seria excluída, e como tal, nunca seria punido o o seu agente.
2. No caso dos autos, da matéria de facto provada em primeira instância não resulta que o recorrente trabalhe como motorista de profissão, pelo que fica a priori afastada a hipótese de suspensão da execução da pena de cassação da carta de condução do recorrente. É que só se coloca a hipótese de suspensão nos termos do art.o 109.o, n.o 1, da Lei do Trânsito Rodoviário, caso o arguido seja um motorista ou condutor profissional com rendimento dependente da condução de veículos.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 373/2015
(Autos de recurso penal)
Arguido recorrente: A




ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por sentença constante de fls. 65 a 69 do Processo Comum Singular n.° CR1-14-0469-PCS do 1.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, o arguido A, aí já melhor identificado, ficou condenado pela prática, em autoria material, e na forma consumada, de um crime de desobediência qualificada (por condução durante o período de inibição de condução), p. e p. pelo art.o 92.o, n.o 1, da Lei do Trânsito Rodoviário (LTR), conjugado com o art.o 312.o, n.o 2, do Código Penal (CP), na pena de setenta e cinco dias de multa, à quantia diária de trezentas patacas (no total, pois, de vinte e duas mil e quinhentas patacas de multa, convertível, no caso de não ser paga nem substituída por trabalho, em cinquenta dias de prisão), e na cassação da carta de condução.
Inconformado, veio o arguido recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), para pedir a suspensão da execução da pena de cassação da carta de condução, alegando, para o efeito, e no essencial, o seguinte (cfr. com mais detalhes, o teor da motivação do recurso apresentada a fls. 76 a 96 dos presentes autos correspondentes):
– o Tribunal pode suspender a execução da sanção de cassação da carta de condução, quando existirem motivos atendíveis, nos termos do art.o 109.o, n.o 1, da LTR;
– a sentença ora recorrida considerou, em termos puramente abstractos, que o recorrente poderia ter usado outros meios para socorrer a sua companheira, como por exemplo, chamar uma ambulância, quando esta se encontrava com dores violentas sentada no chão numa paragem de autocarro na Avenida Olímpica, a seguir à Rotunda da Taipa, a cinco minutos de motociclo da casa onde habita o recorrente e a companheira;
– não ponderou, porém, o Tribunal recorrido no estado do trânsito rodoviário às seis da tarde, perto na Rotunda da Taipa, em direcção ao Cotai Strip, no dia dos factos em questão, véspera da Semana Dourada, comemorativa da Instauração da República Popular da China, com afluxos de turistas do Continente completamente excepcionais, como é do conhecimento comum de quem vive em Macau;
– ora, é facto notório e do conhecimento comum, o estado do trânsito rodoviário em horas de ponta, em vésperas de feriados nacionais da República Popular da China e a morosidade dos meios de socorro em situações de emergência, razões que aumentaram o receio do arguido e o determinaram a usar o seu veículo motorizado, único capaz de ultrapassar o trânsito engarrafado e prontamente chegar ao local onde se encontrava a sua companheira, que temia estar a fazer um aborto espontâneo;
– a acção do recorrente integra o estado de necessidade desculpante, avaliável em sede de culpa, o que foi desconsiderado pelo Tribunal recorrido, nomeadamente para efeitos de prolação do juízo de prognose favorável à suspensão da execução da pena acessória de cassação da licença de condução;
– assim, a suspensão, por seis meses a dois anos, da execução dessa pena acessória cumpriria os efeitos da prevenção geral e especial que o sistema penal pretende atingir.
Ao recurso respondeu (a fls. 98 a 101 dos autos) o Ministério Público no sentido de improcedência da argumentação do recorrente.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer (a fls. 111 a 111v), pugnando também pelo não provimento do recurso.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Como não foi impugnada a matéria de facto já descrita como provada na fundamentação fáctica da sentença recorrida (ora concretamente a fl. 66 a 67), é de tomar tal factualidade provada como fundamentação fáctica da presente decisão de recurso, nos termos permitidos pelo art.º 631.º, n.º 6, do Código de Processo Civil, ex vi do art.º 4.º do Código de Processo Penal.
Outrossim, do teor da contestação então apresentada pelo arguido ora recorrente (a fls. 46 a 49), não consta qualquer invocação do facto de a sua companheira, no dia dos factos em causa, temia estar a fazer um aborto espontâneo.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, é de notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Nesses parâmetros, decidindo:
O arguido veio pedir a suspensão da execução da pena acessória de cassação da carta de condução, mas o fez com fundamento na alegada verificação do estado de necessidade desculpante previsto no art.o 34.o, n.o 1, do CP.
Desde já, é de observar que se ocorresse um autêntico estado de necessidade desculpante, a culpa da prática do crime de desobediência qualificada seria excluída, e como tal, nunca seria punido o recorrente pela prática dos factos.
Há que indagar se se verificou realmente o invocado estado de necessidade desculpante.
Antes do mais, como o recorrente não chegou a invocar na sua motivação do recurso que no dia dos factos, “a sua companheira … temia estar a fazer um aborto espontâneo”, esta circunstância só alegada na motivação do recurso não seria apreciada.
Segundo a matéria de facto descrita como provada na sentença recorrida, sabe-se nomeadamente o seguinte: no dia dos factos (que foi um dia 30 de Setembro), o arguido recebeu várias mensagens da sua companheira nas quais lhe pedia ajuda para a ir buscar pois estava a sentir dores abdominais e se encontrava na Taipa, junto da paragem de autocarro da Avenida Olímpica, a seguir à Rotunda da Taipa, não conseguindo caminhar para casa; o arguido tentou telefonar para a Rádio Táxi, mas sem nenhum resultado; a sua companheira não conseguiu apanhar táxi; aí tomou ele a decisão de usar a mota para trazer a sua companheira, pois sofre ela daquelas dores que a paralisam completamente.
Pois bem, ante esse circunstancialismo provado em primeira instância, concorda o presente Tribunal de recurso com o ponto de vista do Tribunal recorrido: a situação de perigo em que se encontrava a companheira do arguido naquele momento (ainda que se tratasse de hora de ponta para o tráfego rodoviário na véspera do feriado comemorativo da implantação da República Popular da China) poderia ser removida através da chamada da ambulância ao local para socorrer àquela senhora (sendo consabido que a ambulância tem prioridade na circulação rodoviária), meio esse que não foi tentado sequer pelo arguido antes de decisão pela condução da sua mota, pelo que a situação provada nos autos não integra cabalmente a figura de estado de necessidade desculpante prevista no n.o 1 do art.o 34.o do CP.
Nos termos do art.o 109.o, n.o 1, da LTR, a execução da pena de cassação da carta de condução também pode ser suspensa, quando existirem motivos atendíveis.
No caso dos autos, da matéria de facto provada em primeira instância não resulta que o recorrente trabalhe como motorista de profissão, pelo que fica a priori afastada a hipótese de suspensão da execução da pena de cassação da carta de condução do recorrente, sob pena de contrariar o rumo jurisprudencial seguido no TSI segundo o qual só se coloca a hipótese de suspensão caso o arguido seja um motorista ou condutor profissional com rendimento dependente da condução de veículos (nesse sentido, cfr., de entre outros, os acórdãos do TSI, de 17 de Julho de 2008, no Processo n.o 424/2008, e de 26 de Julho de 2012 no Processo n.o 707/2011).
Em suma, improcede o recurso, sem mais indagação por desnecessária ou prejudicada.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar não provido o recurso.
Custas do recurso pelo arguido, com três UC de taxa de justiça.
Macau, 5 de Julho de 2018.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)



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