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Processo n.º 596/2018
(Suspensão de Eficácia do Acto)
     
Relator: Fong Man Chong
Data : 12/Julho/2018


Assuntos:
     
- Suspensão de eficácia do acto administrativo
- Sanção disciplinar aplicada a um notário privado
- Lesão de interesse público – fé pública e feição legal dos actos jurídicos extrajudiciais
- Ponderação de interesse privado e interesse púbico
     
SUMÁRIO:
I - A suspensão da eficácia da decisão punitiva aplicada em processo disciplinar depende apenas da verificação dos dois requisitos negativos das alíneas b) e c) do nº1 artigo 121º do CPAC: inexistência de grave lesão de interesse público pelo facto da suspensão e o não resultarem do processo fortes indícios da ilegalidade do recurso.
II - Está em causa o interesse público da função notarial, à qual andam indiscutivelmente ligadas a fé pública e a feição legal dos actos jurídicos extrajudiciais. A credibilidade pública do notariado e o prestígio da função, já abalados com o desaparecimento, em circunstâncias que o acto considerou de evidente e lamentável negligência, de um acervo considerável de documentos notariais, a que, por desleixo do Requerente, estranhos terão logrado aceder, ainda ficariam mais em xeque e deveras afectados com a suspensão da execução da punição.
     III - Relativamente ao requisito da lesão do interesse público, na área disciplinar existe grave lesão desse interesse se a suspensão contende com a dignidade ou com o prestígio que o serviço deve manter perante o público em geral e, também contende com a fé pública e a feição legal do notariado jurídicos extrajudiciais, pondo-se em causa a fé pública do notariado e o prestígio da função em causa.
IV – Por outro lado, não está demonstrado que o exercício da advocacia possa sair afectado, em termos de clientela, pela suspensão das funções como notário privado, nem se sabe qual a expressão percentual que a componente notarial desempenha no rendimento da actividade global do requerente, e que este deixa de perceber, pelo que se torna inviável dar por assente a previsibilidade da ocorrência de prejuízo de reparação difícil em resultado da execução do acto.
V - Entende-se, neste caso, pelas indicadas razões, que a confiança dos cidadãos, a dignidade dos profissionais, o bom funcionamento dos serviços de notários privados e a legalidade de actuação ficam prejudicados, e como tal não se ocorre o requisito negativo da alínea b) do nº1 do citado artigo 121º, antes, pelo contrário, está bem patenteada a lesão do interesse público neste caso em concreto, é de ser indeferida a requerida suspensão.
O Relator,
     
______________________
Fong Man Chong

Processo n.º 596/2018
(Suspensão de Eficácia do Acto)

Data : 12 de Julho de 2018

Requerente : A

Entidade Requerida : Secretária para a Administração e Justiça

*
    ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:
    I - RELATÓRIO
A, casado, notário privado, titular da licença número 46/94, com morada profissional em Macau, devidamente indicada nos autos, veio, ao abrigo do disposto no artigo 120º, alínea a), do Código de Processo Administrativo Contencioso (CPAC), apresentar PEDIDO DE SUSPENSÃO DA EFICÁCIA DE ACTO ADMINISTRATIVO, praticado pela Exm.ª Senhora Secretária para a Administração e Justiça, datado de 05 de Junho de 2018, através do qual aplicou ao Requerente, enquanto notário privado, a pena disciplinar de suspensão administrativa por 2 (dois) anos no âmbito de processo disciplinar que lhe fora instaurado e a que foi atribuído o número 01/PD/2018;
O Requerente alegou o seguinte:
1.° O Venerando Tribunal de Segunda Instância é, de acordo com a alínea 10) do artigo 36.° da Lei de Bases da Organização Judiciária, competente para conhecer do pedido (cfr. ainda n.º 2 do artigo 123.° do CPAC).
2.° O despacho punitivo, cuja suspensão de eficácia se pretende, é pela sua natureza, um acto administrativo de conteúdo positivo, o que o situa no âmbito típico dos casos em que é permitida a concessão desta providência jurisdicional (artigo 120.° do CPAC) até porque o recurso contencioso não tem efeito suspensivo da eficácia do acto recorrido excepto quando esteja apenas em causa o pagamento de quantia certa.
3.° Não existindo contra-interessados, não se põe o problema da aplicação, entre outras, das normas do artigo 124.° e do n.º 5 do artigo 121.º do CPAC.
    
II - REQUISITOS DA SUSPENSÃO DE EFICÁCIA
A) A SUA ENUNCIAÇÃO
4.° O artigo 121.º do CPAC faz depender a concessão da suspensão de eficácia de actos administrativos da verificação dos seguintes requisitos cumulativos:
a) Que a execução do acto cause provavelmente prejuízo de difícil reparação para o requerente ou para os interesses que este defenda ou venha a defender no recurso;
b) Que a suspensão de eficácia do acto não determine grave lesão para o interesse público concretamente prosseguido pelo acto; e
c) Que do processo não resultem fortes indícios de ilegalidade do recurso.
    
5.° Requisitos estes que são de verificação cumulativa.
6.° E que devem ser ponderados em termos relativos (e não em separado) no contexto da situação global concreta.
B) DOS PRESSUPOSTOS EM CONCRETO
1.°) Da existência de prejuízo de difícil reparação
7.° De acordo com o dispositivo do despacho punitivo, o ora requerente foi punido com a pena disciplinar de suspensão administrativa graduada em 2 (dois) anos ao abrigo dos normativos dos artigos 8.º, n.ºs 1 e 3, 12.º, n.º 2, 18.º, n.º 1 c) do Estatuto dos Notários Privados e 316.º, n.ºs 1 e 2 do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau (ETAPM). (Doc. 1 - cópia da notificação do acto punitivo)
8.° Desenvolvendo uma actividade notarial muito intensa, a execução imediata do acto administrativo que decretou a sua suspensão enquanto notário privado causaria consideráveis prejuízos de difícil reparação.
9.º
Com efeito, o requerente ficaria privado de auferir os rendimentos decorrentes do exercício da advocacia conecto à sua actividade como notário privado, durante todo o período do recurso contencioso e até haver decisão transitada em julgado do mesmo, rendimentos esses que são os mais significativos da sua actividade profissional,
10.º pois que esta se desenvolve primacialmente na área do notariado, o que afectaria consideravelmente a sua vida profissional e até mesmo pessoal, porquanto esta está inevitavelmente ligada àquela.
11.º O que se traduz, como se passará a demonstrar, num "prejuízo de difícil reparação".
Na verdade:
12.º A não suspensão da decisão da sua suspensão paralisaria aquilo que constitui a parte mais significativa da sua actividade profissional, afectando a sua clientela, a qual se viria na contingência de procurar outros advogados e notários durante considerável período de tempo.
13.º
Sendo de admitir que dificilmente ela seria recuperada após essa paralisação, que se perspectiva necessariamente extensa e, para mais, quando se não trata de uma decisão definitiva, atento o facto de que o recorrente vai interpôr recurso contencioso do acto que determinou a sua suspensão.
14.º O que, salvo respeito por entendimento contrário, não poderá deixar de qualificar-se, para efeitos de se dar por verificado o requisito da alínea a) do n.º 1 do artigo 121.° do CPAC, como "prejuízo de difícil reparação".
15.º E a sufragar esta conclusão afigura-se relevante a jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Administrativo e do Tribunal Central Administrativo, de Portugal, por exemplo: a constante dos acórdãos de 8/6/2000 (Proc. N.º 46.153), in www.dgsi.pt ; de 19/12/2000 (Proc. N.º 198), in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 25, p. 59); e de 11/07/2002 (Proc. 0955), in www.dgsi.pt.
16.º Com efeito, judiciosamente, afirma-se, no sumário do 2.º dos arestas indicados que: «I - A perda de rendimento do trabalho por efeito de uma pena de suspensão, mesmo que de trinta dias seja, pode colocar o indivíduo numa posição difícil e sofrida que nem mesmo a decisão favorável do recurso contencioso poderá alguma vez restaurar. Daí, o extremo cuidado que é necessário pôr na análise das circunstâncias reflexivas em que o sujeito punido concretamente se encontra. II - A perda da qualidade de vida e a diminuição do nível de subsistência do indivíduo que sofre a pena não se medem por uma bitola padrão, aliás inexistente, nem pela régua aferidora de quem a aplica. Por tal motivo, mais ainda pela repercussão social que lhe anda associada, o direito que todo homem tem de viver com o mínimo de dignidade não pode ser retirado, nem facilmente restringido ou diminuído por outro homem, por um só dia que seja, a não ser em casos sérios e pontuais que o próprio ordenamento legitime».
17.º Afirmando-se ainda mais claramente no 3.° dos acórdãos referidos que «A privação de vencimento de funcionário (ou equiparado), definitiva ou temporariamente afastado do exercício do cargo, é causa de dano configurável como "prejuízo de difícil reparação" (…) quando diminua tão acentuadamente o rendimento do agregado familiar que ponha em risco a satisfação de necessidades pessoais elementares ou mesmo de despesas que se não afastem significativamente do padrão de vida médio de famílias da mesma condição social».
18.º O que constitui o caso do requerente se a situação de suspensão de funções notariais se mantiver, enquanto se aguarda a decisão do recurso contencioso que por si será interposto em prazo legal.
19.º Também o Venerando Tribunal de Última Instância da RAEM em muito douto e impressivo Acórdão de 30 de Julho de 2014 (processo n.º 66/2014) estatuiu que: "Ainda que o tribunal não dê como verificado o requisito da grave lesão do interesse público, a suspensão da eficácia pode ser concedida quando, preenchidos os restantes requisitos, sejam desproporcionalmente superiores os prejuízos que a imediata execução do acto cause ao requerente, o que pode acontecer se se prefigura a perda extensiva de clientela de notário".
20.º Consideração que vale, mutatis mutandis, para o caso do ora requerente, pois, na verdade, no seu caso, são desproporcionalmente superiores (a qualquer interesse público que possa existir na manutenção provisória do acto) os prejuízos que a execução do acto causará ao requerente, o que pode acontecer se se prefigura a perda irreparável de clientela do notário, e os rendimentos que essa actividade indirectamente representa, enquanto advogado - conforme se decidiu no Ac. do Venerando TUI supra referenciado.
21.º Assim, tendo em conta o que se afirmou supra, e por um argumento de identidade de razão, não podem existir dúvidas de que no caso sub júdice se está perante um prejuízo de difícil reparação e de que, nessa medida, se encontra verificado o requisito da alínea a) do n.º 1 do artigo 121.º, cuja verificação a lei exige para a concessão da suspensão de eficácia de actos da administração.
22.º E ainda que o n.º 3 da mesma norma disponha no sentido da não exigibilidade da verificação deste requisito na concessão da suspensão de eficácia de acto com natureza de sanção disciplinar, ainda assim ele deve ser dado como verificado, nos termos referidos, para efeitos de sua ponderação relativa com o requisito da alínea b) do n.º 1 do artigo 121.º, tal como decorre do n.º 4 do mesmo preceito.

2.°) Inexistência de grave lesão para o interesse público
23.º Para o decretamento da suspensão de eficácia de um acto administrativo, a lei, para além da verificação do requisito supra referido, exige também, como se viu, agora em termos negativos, que «A suspensão não determine grave lesão do interesse público concretamente prosseguido pelo acto» (alínea b) do n.º 1 do artigo 121.º do CPAC).
24.º E no que respeita a este 2.° requisito, fácil é de ver que a lei não consente conclusões automáticas como aquela que faz presumir que o decretamento da suspensão de eficácia de acto de aplicação de sanção disciplinar causa, sempre, necessariamente, grave lesão do interesse público, ou como aquela outra, e que se traduz no mesmo, que faz derivar a decisão de indeferimento do pedido de suspensão de eficácia de uma ideia de gravidade da pena disciplinar.
25.º Pelo contrário, a lei impõe, tal como de resto bem entendem a doutrina e os nossos tribunais, que, na verificação deste requisito legal, se proceda a uma verificação em concreto da gravidade da lesão do interesse público resultante da suspensão de eficácia do acto punitivo,
26.º o que exige que se faça uma análise do quadro factual motivador da punição e que se atenda às circunstâncias concretas em que ocorreram os factos, bem como um juízo de prognose das eventuais repercussões que, sobre o regular funcionamento dos serviços, terá o prosseguimento da sua actividade notarial até ser proferida decisão no recurso contencioso interposto do acto que o sancionou disciplinarmente.
27.º Sendo que neste juízo se deverão considerar os reflexos que a suspensão pode ter em termos dos fins de prevenção geral, atendendo ao círculo das pessoas onde as infracções foram cometidas, ao tipo de serviço onde aquelas se verificaram e à natureza das funções desempenhadas pelo ora requerente punido disciplinarmente.
28.º Ora, atendendo à metodologia referida e tendo por base o quadro factual motivador da sanção aplicada ao ora requerente, e com o devido respeito por entendimento contrário, não temos dúvidas em afirmar, desde já, que também se encontra verificado estoutro requisito, ou seja, que a suspensão de eficácia do acto punitivo não determina grave lesão do interesse público prosseguido pelo acto punitivo, para que a suspensão de eficácia possa ser concedida.
29.º Não pode aceitar a conclusão de que o requerente não cumpriu as leis, regulamentos e instruções relativas ao serviço pois, como fez consignar, o sucedido foi fruto de uma manifesta infelicidade.
30.º Nessa medida, o requerente não violou os deveres de dignificação do cartório notarial e de obediência às circulares e determinações genéricas emitidas pela DSAL, a qual veio a ser, a final do despacho punitivo o enquadramento legal conferido a um acto que mais traduziu um momento de profunda infelicidade do requerente, afigurando-se desproporcionada a listagem de normas alegadamente violadas pelo requerente - artigo 8.º, n.ºs 1 e 3 e 12.º, n.º 2 do ENP e a pena disciplinar concomitantemente aplicada.
31.º Tenha-se ainda em consideração que o requerente, conforme é reconhecido no Relatório Final do procedimento, "informou de imediato a Senhora Inspectora de que estavam em falta maços de documentos relativos aos actos lavrados nos livros de notas para escrituras diversas n.º 78 a 140 do seu cartório (cfr. artigos 3.º e 28.º do relatório final), tendo afirmado que isso fora fruto de uma infelicidade ocorrida aquando de obras realizadas no seu cartório (cfr. n.º 12 e 21 do relatório final). (Doc. 2)
32.º Mais dando a conhecer que o desaparecimento dos maços em questão se deu surpreendentemente no âmbito de um processo de deslocação dos arquivos dentro do mesmo edifício, "pelo que nada faria prever a ocorrência de uma tal calamidade" (cfr. artigo 31.º do relatório final), havendo, aliás, a Sr.ª Inspectora enaltecido no requerente "uma postura de boa fé e de integral colaboração com os Serviços de Inspecção" (cfr. n.º 22.º do mesmo relatório) e "de um empenhado envolvimento pessoal na recuperação dos documentos desaparecidos de forma a conseguir a sua recuperação" [artigo 24.º do relatório final).
33.º Como o juízo conceituado proferido por esse Venerando Tribunal, no Acordo do Recurso n.º 219/2003/A: "Quanto à lesão de interesse público, não é de presumir, devendo antes ser afirmada pelo autor do acto" e "Um qualquer acto administrativo pressupõe que se prossegue o interesse público, face ao artigo 4.º do Código de Procedimento Administrativo”.
34.º Além de que, mesmo que se viesse a demonstrar a verificação da lesão do interesse público, o que se afirma sem conceder, isso não seria suficiente só por si para levar ao indeferimento da suspensão pedida, uma vez que a lei exige que essa lesão do interesse público seja uma "lesão grave" (alínea b) do n.º 1 do artigo 121.º do CPAC), e essa o ora requerente, por maioria de razão, entende não se ter verificado.
35.º Mas ainda que se demonstrasse que a suspensão de eficácia do despacho punitivo causa uma grave lesão do interesse público, o que também se afirma se conceder, nem mesmo isso impunha que aquele pedido tivesse de ser indeferido automaticamente.
36.º Com efeito, mesmo que se verifique essa grave lesão, a lei permite que o tribunal possa suspender a eficácia de um acto, quando os prejuízos causados ao requerente pela imediata execução do acto sejam desproporcionadamente superiores àqueles que decorrem para o interesse público da suspensão da eficácia do acto.
37.° O que, no caso concreto sempre se teria por verificado, pois que, como se viu, da imediata execução do despacho punitivo decorre uma perda significativa da qualidade de vida do ora requerente, na medida em que fica com o seu nível de subsistência gravemente afectado e, consequentemente, o direito que todo o homem tem de viver com o mínimo de dignidade.

3.° Inexistência de fortes indícios de ilegalidade do recurso
38.° Finalmente, não se verificam indícios de manifesta ilegalidade do recurso contencioso interposto do despacho punitivo em causa, designadamente quanto à recorribilidade do acto, tempestividade do recurso ou legitimidade do ora requerente.
* * *
Citada, veio a Requerida, Senhora Secretária para a Administração e Justiça, contestar nos seguintes termos :
1. Foi instaurado um procedimento disciplinar contra o Sr. Dr. A, Notário Privado, detentor da licença n° 46/94, actualmente com domicílio / profissional na Avenida da XX, n° XX, Edifício XX, XX° andar - Macau.
2. Decorrida toda a tramitação entendida pertinente, o Exmo. Senhor Instrutor propõe a aplicação da sanção de suspensão administrativa de 2 (dois) anos, entendendo, o Exmo. Senhor Director da DSAJ no mesmo sentido.
3. Concordando com a qualificação jurídica dos factos adiantada no processo disciplinar, verifica-se que o arguido incorreu na violação dos deveres de dignificação do cartório notarial e de obediência às circulares e determinações genéricas emitidas pela DSAJ, previstos, respectivamente nos n.ºs 1 e 3 do artigo 8° e n° 2 do artigo 12° do ENP, sendo também evidente o preenchimento da previsão da alínea c) do n° 1 do artigo 18° do mesmo complexo legal.
4. Tendo como base todo o quadro legal decorrente dos normativos combinados dos artigos 5°, 7°, 12° do Código do Notariado e 8° do ENP, conjugando-o com todos os factos ocorridos, é de concluir que o arguido não só não respeitou os deveres a que está obrigado, pois não seguiu os normais e básicos procedimentos práticos no sentido de manter salvaguardados e intactos todos os documentos suporte dos actos notariais praticados, como demonstrou uma evidente negligência em todo o sucedido.
5. O arguido, não só não tomou todas as providências necessárias - pelo menos isso nunca o demonstrou - para que na situação das alegadas obras, nada de anormal acontecesse aos documentos que lhe incumbia zelar, como até delegou numa empresa, portanto uma entidade que não está vinculada a quaisquer deveres especiais, a tarefa de remover os documentos e papéis sem o mínimo controlo e supervisão.
6. Todo o registo factual existente e demonstrado permite concluir que não houve a mais pequena preocupação em estar atento e acompanhar todo o processo relativo à guarda e ao tratamento a dar aos documentos, bem como não se teve o menor cuidado em preservar o acesso a documentos sujeitos a segredo profissional.
7. Tal assume maior evidência perante a circunstância de o arguido ser uma pessoa com especiais deveres e preparação.
8. De acordo com o plasmado no artigo 180 do ENP, são aplicáveis aos notários privados as penas de suspensão administrativa até dois anos ou cassação de licença, sempre que infrinjam deveres a que se encontram sujeitos, designadamente quando não sejam encontrados livros ou documentos ou aqueles e estes apresentem indícios de viciação.
9. Acresce que em matéria disciplinar, e desde que estejam em causa aspectos não expressamente tratados no diploma próprio, são subsidiariamente aplicáveis aos notários privados, com as necessárias adaptações, as regras relativas ao regime disciplinar dos trabalhadores da Administração Pública, como se extrai do disposto no artigo 21º do ENP.
10. Nesta senda, parece óbvio que estando em causa diploma especial, e no que respeita à matéria relativa ao elenco de sanções possíveis, apenas estas o são, não existindo quaisquer outras passíveis de imposição.
11. Com efeito, a própria epígrafe do 18º do ENP ao exibir de modo cristalino a expressão Penas disciplinares, consignando o seu número 1, que aos notários privados são aplicáveis as penas em referência, sempre que infrinjam os deveres a que estão adstritos, elucida que neste campo de acção, apenas e só estas sanções existem e, consequentemente só a elas pode a entidade competente socorrer-se, como forma de censura.
12. Não colhe aqui fazer apelo a outros estatutos profissionais - advogados, notários privativos -, ao elenco de penas constante do artigo 3000 do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública (doravante ETAPM) ou ao regime do ordenamento jurídico português (não se descortina qual a razão de ser de tal invocação pelo arguido). Perante lei especial a regular a matéria específica, é somente essa lei que tem aplicação.
13. Ao retrato aqui em presença é aplicável qualquer das penas referidas em 8. pelo que, não indicando o ENP quais os caminhos a seguir para encontrar qual a pena em concreto a perpetrar, importa fazer uso do consagrado no artigo 316º ETAPM, como o indica o disposto no artigo 21º do ENP.
14. Mostrando-se possível a aplicação da sanção mais elevada - cassação de licença - tendo em atenção o elevado volume de documentos em causa, a circunstância assumida pelo arguido de que parte deles - procurações e / ou instrumentos com poderes representativos dos outorgantes - serão de difícil reconstituição pois muitos dos mandantes já não se encontram em Macau e o facto de se patentear uma evidente negligência, importa igualmente atentar noutros vectores factuais que exorbitam que, no caso, assumem dimensão atenuante, de acordo com o plasmado no artigo 282º do ETAPM - aplicável ex vi do artigo 21º do ENP.
15. Assim, resulta que o arguido exerce a função de notário privado há cerca de 24 anos, de forma ininterrupta, tendo sido classificado nas diversas inspecções de que foi alvo, com a notação de Bom Desempenho - alínea a) do artigo 282º do ETAPM.
16. Foi o arguido quem, em primeira mão, deu conhecimento do desaparecimento dos 62 maços de documentos e ainda antes do início da prevista inspecção ordinária - alínea b) do artigo 282º do ETAPM.
17. O arguido é pessoa reconhecida no território da RAEM, tendo já exercido diversos cargos públicos de relevo e prestígio, como o de Deputado à Assembleia Legislativa, presidindo a diversas instituições de carácter associativo e cultural - alínea c) do artigo 282º do ETAPM.
18. Os factos relacionados com o desaparecimento dos documentos não são do domínio público, nada existindo que demonstre algum sentimento de alarme social com aqueles relacionado, sendo que não há notícia de alguma acção judicial intentada, por causa do sucedido - alínea f) do artigo 282º do ETAPM.
19.O arguido tem-se mostrado interessado e empenhado na tentativa de recuperação / reconstituição dos documentos extraviados, o que denota não ter actuado com dolo - alínea g) do artigo 282º do ETAPM.
20. Até ao presente momento não são conhecidas consequências reais danosas quer para os Serviços, quer para terceiros - alínea h) do artigo 282º do ETAPM.
21. Todo este circunstancialismo permite o recurso ao instituto da atenuação especial previsto no 316°, n° 2 do ETAPM, pelo que se entende ser de ponderar a aplicação da sanção mais leve, a suspensão administrativa até 2 anos, em quantum a graduar.
22. Contrariamente ao propugnado pelo arguido não tem aqui qualquer aplicação o mecanismo da atenuação especial previsto no artigo 66º elo CP.
23. Estando a atenuação especial expressamente prevista e regulada em sede de direito disciplinar, como decorre do já citado 316º do ETAPM, inexiste qualquer suporte legal para recorrer ao regime do CP, tal como transparece do disposto no artigo 277º do ETAPM. o regime supletivo das normas de Direito Penal, só será de aplicar quando não exista tratamento da matéria em causa no ETAPM. Não é o caso.
24. Por seu turno, mesmo que assim se não entenda, o que se não concede, é óbvio que in casu não se verificam as circunstâncias previstas nas alíneas c), d) e e) do n° 2 do artigo 66° do CP, como pretende o arguido.
25. Nesta medida, fixada a opção pela pena mais leve, apelando às orientações constantes do artigo 316°, n° 1 do ETAPM e tendo em atenção: - as diversas atenuantes existentes - as quais se atenderam logo para se proceder à atenuação especial; - a existência de realidade de notória gravidade, envolvendo um significativo acervo documental, cujas repercussões ainda não é possível dimensionar com segurança, podendo redundar em sérios prejuízos futuros; - ao comportamento do arguido, fortemente negligente, desrespeitador das regras básicas e elementares que o dever de cuidado, por estarem em causa documentos (muitos deles até com informação pessoal), exige e reclama, concordando com o Relatório elaborado pelo Exmo. Senhor Instrutor pensa-se adequado e proporcional aplicar ao arguido a pena concreta de suspensão administrativa de dois anos.
26. Quanto à possibilidade de suspensão desta pena com base no que consigna o artigo 317°, n° 1 do ETAPM, como também reclama o arguido, entende-se ser a mesma de afastar.
27. Partindo da previsão aqui consignada, onde se refere expressamente essa possibilidade para as penas de repreensão escrita, multa e suspensão - penas estas que não existem para os notários privados - e conjugando com o regime, nesta matéria, tratado no ENT, entende-se que tal pretensão carece de suporte legal, parecendo claro ter sido intenção do legislador que, neste especial domínio, o instituto da suspensão da pena não tenha aplicação.
28. Por outro lado, mesmo que assim se não entenda, o que se não concede, não se mostram minimamente verificados os pressupostos necessários a tal.
29. Nestes termos, concordando na sua essência com o adiantado pelo Exmo. Senhor Instrutor e suportado pelo Exmo. Senhor Director da DSAJ, em matéria de qualificação da infracção cometida pelo arguido Dr. A, Notário Privado, entende-se razoável, proporcional e adequado, aplicar-lhe a proposta pena disciplinar de suspensão administrativa de 2 (dois) anos, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 8º. n.ºs 1 e 3. 12°. n° 2 e 18°. n° 1 alínea c) do ENP e 316°. n.ºs 1 e 2 do ETAPM.
* * *
O Digno. Magistrado do MP oferece o seguinte douto parecer, pugnando pela improcedência do pedido :
     A, devidamente identificado nos autos, requer a suspensão da eficácia do acto de 5 de Junho de 2018, da Exm.ª Secretária para a Administração e Justiça, através do qual lhe foi aplicada a pena disciplinar de suspensão administrativa do exercício de funções de notário privado por 2 anos.
Alega que está em causa um acto de conteúdo positivo e que se mostram preenchidos todos os requisitos de que depende a concessão da providência.
A entidade requerida apresentou a contestação inserta a fls. 61 e seguintes, onde refuta a verificação dos requisitos prejuízo de difícil reparação e ausência de grave lesão para o interesse público, pronunciando-se, em consequência, pelo indeferimento do pedido.
Vejamos.
A suspensão de eficácia dos actos administrativos de conteúdo positivo ou que, sendo de conteúdo negativo, apresentem uma vertente positiva e a suspensão a esta se circunscreva, está, em regra, dependente da verificação cumulativa dos três requisitos, um positivo e dois negativos, enunciados nas alíneas a) a c) do artigo 121.°, n.º 1, do Código de Processo Administrativo Contencioso, a saber:
- previsibilidade de que a execução provoque prejuízo de difícil reparação para o requerente ou para os interesses que ele defenda ou venha a defender no recurso;
- não acarretar a suspensão grave lesão do interesse público concretamente prosseguido pelo acto;
- não resultarem do processo fortes indícios de ilegalidade do recurso.
     
A primeira questão que se coloca é a de saber se estamos ou não perante acto de conteúdo positivo.
Cremos que a alteração provocada pelo acto suspendendo na esfera jurídica do requerente se apresenta óbvia. Ele foi alvo de uma punição disciplinar, que aliás tem o efeito de o privar, durante dois anos, do exercício da função notarial, pelo que nenhuma dúvida se suscita quanto ao conteúdo positivos do acto.
Porque assim, vejamos se estão preenchidos aqueles requisitos, que, no vertente, acabam por se reduzir a dois, ou seja, os das alíneas b) e c), do n.º 1 do artigo 121.° do Código de Processo Administrativo Contencioso, por força da norma do n. o 3 do mesmo artigo, que, nas hipóteses de actos com a natureza de sanção disciplinar, como ora sucede, dispensa a demonstração da verificação do requisito da alínea a).
Como se disse e é sabido, os requisitos necessários à suspensão são de verificação cumulativa, pelo que bastará a falta de um deles para conduzir ao insucesso da providência.
Não se afigura que o processo aponte para a existência de fortes indícios de ilegalidade do recurso (artigo 121.°, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Administrativo Contencioso). Ao falar de fortes indícios de ilegalidade do recurso, a lei pretende aludir a uma situação de inviabilidade manifesta, notória e evidente do recurso contencioso - neste sentido, cf., v.g., o acórdão de 30 de Maio de 2002, do TSI, processo n.º 92/2002 -, o que nos remete para a sindicância de pressupostos essencialmente formais, tais como a legitimidade, a tempestividade e a recorribilidade, não havendo lugar, no procedimento de suspensão, a considerações sobre a validade do acto e a procedência do recurso contencioso.
Não se vislumbra, como dissemos, que haja indícios fortes dessa ilegalidade, e a autoridade requerida também o não aventa, pelo que temos, assim, preenchido o requisito da alínea c).
No que toca ao requisito da alínea b), a entidade requerida entende e sustenta que a peticionada suspensão acarretará grave lesão ao interesse público prosseguido pelo acto.
Corroboramos tal visão.
Está em causa o interesse público da função notarial, à qual andam umbilicalmente ligadas a fé pública e a feição legal dos actos jurídicos extrajudiciais. A credibilidade pública do notariado e o prestígio da função, já abalados com o desaparecimento, em circunstâncias que o acto considerou de evidente e lamentável negligência, de um acervo considerável de documentos notariais, a que, por desleixo do requerente, estranhos terão logrado aceder, ainda ficariam mais em xeque e deveras afectados com a suspensão da execução da punição. Neste contexto, a permanência do requerente em funções e o protelar da execução do acto punitivo seriam dificilmente compreensíveis, quer pelos profissionais ligados ao notariado, quer pela comunidade em geral. A imagem e o prestígio da função notarial sairiam irrefragavelmente molestados.
Crê-se, pois, que a suspensão iria causar lesão grave ao interesse público concretamente prosseguido pelo acto, tal como vem sustentado pela entidade requerida, pelo que não se mostra preenchido o requisito da alínea b) do n.º 1 do artigo 121.º do Código de Processo Administrativo Contencioso.
Resta acrescentar que, no confronto com o interesse particular do requerente - a propósito do qual este invoca o prejuízo resultante da privação de auferir os rendimentos decorrentes do exercício da advocacia conecto à sua actividade como notário privado - esse interesse público revela-se superior e reclama primazia, pelo que, também não pode, a nosso ver, sustentar-se a suspensão na norma do artigo 121.º, n.º 4, do Código de Processo Administrativo Contencioso.
Aliás, não está demonstrado que o exercício da advocacia possa sair afectado, em termos de clientela, pela suspensão das funções como notário privado, nem se sabe qual a expressão percentual que a componente notarial desempenha no rendimento da actividade global do requerente, e que este deixa de perceber, pelo que se toma inviável dar por assente a previsibilidade da ocorrência de prejuízo de reparação difícil em resultado da execução do acto.
Nestes termos, e por inverificação dos exigidos requisitos, o nosso parecer vai no sentido de ser negada a peticionada suspensão de eficácia.
RAEM, 4 de Julho de 2018
* * *

II - PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
Este Tribunal é o competente em razão da nacionalidade, matéria e hierarquia.
O processo é o próprio e não há nulidades.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e são dotadas de legitimidade “ad causam”.
Não há excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
* * *
    III – FACTOS
    Resulta dos autos a seguinte factualidade provada:
O despacho, cuja eficácia se requer suspender, tem o seguinte teor:
DESPACHO
Assunto: Procedimento Disciplinar n.º 011PD/2018
Arguido: Dr. A
    
Conforme resulta do processado - Procedimento Disciplinar n.º 01/PD/2018, o arguido Dr. A, Notário Privado, melhor identificado nos autos, incorreu na violação dos deveres de dignificação do cartório notarial e de obediência às circulares e determinações genéricas emitidas pela DSAJ, previstos nos n.ºs 1 e 3 do artigo 8° e n° 2 do artigo 12° do Estatuto dos Notários Privados (doravante ENP), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 66/99/M, de 1 de Novembro, alterado e republicado pela Lei n.º 7/2016, mostrando-se também verificada a previsão da alínea c) do n° 1 do artigo 18° do mesmo complexo legal.
Com efeito, incumbindo àquele a obrigação de assegurar a conservação dos instrumentos e suportes documentais de actos praticados no exercício das suas funções notariais e, bem assim, salvaguardar, acautelar e guardar os livros, documentos e ficheiros do cartório, verificou-se que estavam em falta 62 maços de documentos (estando um causa mais de mil documentos) respeitantes aos actos lavrados nos livros de notas para escrituras diversas n.ºs 78 a 140, correspondentes a instrumentos notariais realizados entre os anos de 2007 e 2010. (Destaque nosso)
Tal verificação ocorreu no decurso de inspecção específica levada a efeito entre Novembro de 2017 e Fevereiro de 2018, no cartório notarial do arguido Dr. A.
Este comportamento pode ser sancionado com a medida disciplinar de cassação de licença, por força do estatuído no artigo 18°, n° 1 do ENP.
Verifica-se, no entanto, que militam a favor do arguido diversas circunstâncias atenuantes - num total de seis - que importa ponderar e que, nessa medida, possibilitam o recurso à imposição de sanção de menor dimensão, por via do recurso do instituto da atenuação especial expresso no artigo 316°, n.º 2 do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública (doravante ETAPM), aplicável ex vi do artigo 21° do ENP.
Com efeito, mostram-se preenchidas as circunstâncias referidas nas alíneas a), b), c), f), g) e h) do artigo 282° do ETAPM, entendendo-se por isso ser adequado, proporcional e ponderado o recurso à sanção proposta pelo Exmo. Senhor Instrutor, a qual mereceu a concordância do Exmo. Senhor Director da DSAJ.
Nestes termos, face ao exposto, e atendendo ao invocado no Relatório do Exmo. Senhor Instrutor e bem assim à fundamentação constante do parecer elaborado neste Gabinete, cujos conteúdos se dão por inteiramente reproduzidos, no uso das competências conferidas pelo disposto nos artigos 19° do ENP, 2°, n.º 1, alíneas 4) e 6) do Regulamento Administrativo n.º 6/1999 e 1 ° da Ordem Executiva n° 109/2014 decido aplicar ao arguido Dr. A, Notário Privado pelos factos em causa - a pena disciplinar de suspensão administrativa graduada em 2 (dois) anos, ao abrigo dos normativos combinados dos artigos 8°, n.ºs 1 e 3, 12°, n.º 2, 18°, n° 1 alínea c) do ENP e 316°, nºs 1 e 2 do ETAPM.
     À DSAJ para notificação do arguido, entregando cópias deste despacho, da informação / proposta da DSAJ - 39/DSAJ/DARN/2018 de 28 de Maio de 2018 - e do parecer deste Gabinete.
     No acto de notificação deve ser o arguido informado de que desta decisão pode, no prazo de 30 (trinta) dias interpor recurso contencioso para o Tribunal de Segunda Instância - artigos 21° do ENP, 340°, 342° do ETAPM, 25°, n° 2 alínea a) do CPAC e 36°, n.º 8 alínea (2) da Lei n.º 9/1999, alterada em último pela Lei n.º 9/2009 (LBOJ).
     
     Gabinete da Secretária para a Administração e Justiça, aos 5 de Junho de 2018.
     A Secretária para a Administração e Justiça
     B
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    IV - FUNDAMENTOS
1. Vem o Requerente requerer a suspensão de eficácia do despacho do punitivo da Senhora Secretária para a Administração e Justiça, datado de 05/06/2018 que, na sequência de processo disciplinar, lhe aplicou pena disciplinar de suspensão administrativa por 2 anos, do exercício de funções de notário privado.
    Trata-se de suspensão de eficácia de acto impositivo de sanção disciplinar.
    Este instituto traduz-se numa medida de natureza cautelar, cujo principal objectivo é atribuir ao recurso, de que é instrumental, o efeito suspensivo. Isto porque, como regra, o recurso contencioso de anulação tem sempre efeito meramente devolutivo, já que o acto administrativo a impugnar goza de presunção de legalidade e do privilégio da executoriedade, entendida esta como “a força que o acto possui de se impor pela execução imediata, independentemente de nova definição de direitos”.1
Não estará em causa a análise dos fundamentos e pressupostos da sanção aplicada, havendo que partir, no âmbito do presente procedimento preventivo e conservatório, da presunção da legalidade do acto e da veracidade dos respectivos pressupostos e que serão analisados no recurso contencioso de que aquele depende.
2. Prevê o artigo 121º do CPAC:
“1. A suspensão de eficácia dos actos administrativos, que pode ser pedida por quem tenha legitimidade para deles interpor recurso contencioso, é concedida pelo tribunal quando se verifiquem os seguintes requisitos:
a) A execução do acto cause previsivelmente prejuízo de difícil reparação para o requerente ou para os interesses que este defenda ou venha a defender no recurso;
b) A suspensão não determine grave lesão do interesse público concretamente prosseguido pelo acto; e
c) Do processo não resultem fortes indícios de ilegalidade do recurso.
2. Quando o acto tenha sido declarado nulo ou juridicamente inexistente, por sentença ou acórdão pendentes de recurso jurisdicional, a suspensão de eficácia depende apenas da verificação do requisito previsto na alínea a) do número anterior.
3. Não é exigível a verificação do requisito previsto na alínea a) do n.º 1 para que seja concedida a suspensão de eficácia de acto com a natureza de sanção disciplinar.
4. Ainda que o tribunal não dê como verificado o requisito previsto na alínea b) do n.º 1, a suspensão de eficácia pode ser concedida quando, preenchidos os restantes requisitos, sejam desproporcionadamente superiores os prejuízos que a imediata execução do acto cause ao requerente.
5. Verificados os requisitos previstos no n.º 1 ou na hipótese prevista no número anterior, a suspensão não é, contudo, concedida quando os contra-interessados façam prova de que dela lhes resulta prejuízo de mais difícil reparação do que o que resulta para o requerente da execução do acto.”
Da observação desta norma é fácil verificar que não importa nesta sede a análise de eventuais erros nos pressupostos de facto e de direito subjacentes à decisão punitiva, tendo, no âmbito do presente procedimento preventivo e conservatório, que se partir da presunção da legalidade do acto e da veracidade dos respectivos pressupostos.
A suspensão dessa eficácia depende aqui, por se tratar de sanção disciplinar, apenas da verificação dos dois requisitos negativos das alíneas b) e c) do nº1 artigo 121º do CPAC: inexistência de grave lesão de interesse público pelo facto da suspensão e o não resultarem do processo fortes indícios da ilegalidade do recurso.
O artigo 18º do DL nº66/99M, de 1 de Novembro, alterado pela Lei nº 7/2016, de 28 de Novembro, sanciona determinadas condutas com penas disciplinares, como tal há lugar à aplicação do artigo 121º/3 do CPC.
3. Lesão de interesse público
3.1. Sobre a lesão do interesse público já se decidiu neste Tribunal que, ressalvando situações manifestas, patentes ou ostensivos a grave lesão de interesse público não é de presumir, antes devendo ser afirmada pelo autor do acto. Trata-se de um requisito que se prende com o interesse que, face ao artigo 4º do CPA, todo o acto administrativo deve prosseguir.2
Relativamente a este requisito, na área disciplinar existe grave lesão desse interesse se a suspensão contende com a dignidade ou com o prestígio que o serviço deve manter perante o público em geral e, também contende com a fé pública e a feição legal dos actos jurídicos extrajudiciais, pondo-se em causa a fé pública do notariado e o prestígio desta função.
Só o interesse público definido por lei pode constituir motivo principalmente determinante de qualquer acto administrativo. Assim se um órgão da Administração praticar um acto administrativo que não tenha por motivo principalmente determinante o interesse público posto por lei a seu cargo, esse acto estará viciado por desvio de poder, e por isso será um acto ilegal, como tal anulável contenciosamente. E o interesse público é o interesse colectivo, que, embora de conteúdo variável, no tempo e no espaço, não deixa de ser o bem-comum.3
Ora, tratando-se de lesão grave – séria, notória, relevante – a execução não pode ser suspensa.
Perante um acto punitivo há que apurar se a suspensão de eficácia viola de forma grave a imagem e funcionamento públicos em causa.
Tem-se entendido que preenche tal previsão a suspensão que “põe em causa a confiança dos utentes e de público em geral” no serviço em causa ou ofende “a fé pública e a feição legal dos actos jurídicos extrajudiciais praticados pelos notários privados e a própria disciplina da função”. (Veja-se ainda o Acórdão deste T.S.I. de 17 de Fevereiro de 2000 – Pº30/A/2000 – e a jurisprudência aí citada”). É justamente o caso que estamos a analisar.
3.2. Neste ponto, bem observou o Digno. Magistrado do MP, quando opina:
Está em causa o interesse público da função notarial, à qual andam umbilicalmente ligadas a fé pública e a feição legal dos actos jurídicos extrajudiciais. A credibilidade pública do notariado e o prestígio da função, já abalados com o desaparecimento, em circunstâncias que o acto considerou de evidente e lamentável negligência, de um acervo considerável de documentos notariais, a que, por desleixo do requerente, estranhos terão logrado aceder, ainda ficariam mais em xeque e deveras afectados com a suspensão da execução da punição. Neste contexto, a permanência do requerente em funções e o protelar da execução do acto punitivo seriam dificilmente compreensíveis, quer pelos profissionais ligados ao notariado, quer pela comunidade em geral. A imagem e o prestígio da função notarial sairiam irrefragavelmente molestados.
Crê-se, pois, que a suspensão iria causar lesão grave ao interesse público concretamente prosseguido pelo acto, tal como vem sustentado pela entidade requerida, pelo que não se mostra preenchido o requisito da alínea b) do n.º 1 do artigo 121.º do Código de Processo Administrativo Contencioso.
Resta acrescentar que, no confronto com o interesse particular do requerente - a propósito do qual este invoca o prejuízo resultante da privação de auferir os rendimentos decorrentes do exercício da advocacia conecto à sua actividade como notário privado - esse interesse público revela-se superior e reclama primazia, pelo que, também não pode, a nosso ver, sustentar-se a suspensão na norma do artigo 121.º, n.º 4, do Código de Processo Administrativo Contencioso.
Não encontramos razões ponderosas para não seguir esta linha de pensamento.
Pela própria natureza dos factos imputados ao Requerente, motivadores da aplicação da sanção em causa, com repercussão externa, afectando a imagem de credibilidade pessoal e funcional, quer na classe profissional de notários privados, quer no serviço que esta classe profissional presta, junto da Comunidade, sendo factos que marcam bastante os cidadãos, para mais quando são os cidadãos os utentes desses serviços do notariado.
3.3. A lesão do interesse público resulta neste caso da desconfiança generalizada dos cidadãos na manutenção, ainda que provisória, em funções de alguém em que sentem não poder confiar. Poder-se-á argumentar que as pessoas e instituições não poderão deixar de lidar com uma situação de manutenção em funções se se vier a decidir não haver lugar à punição disciplinar. Só que nesse caso, a decisão não deixará de estar depurada com uma decisão judicial, onde não se deixarão de evidenciar, se for esse o caso, as razões justificativas da bondade da sanção ou da sua não aplicação.
Entende-se, neste caso, pelas indicadas razões, de confiança dos cidadãos, dignidade dos profissionais em causa, bom funcionamento dos serviços de notários privados, legalidade de actuação que não se ocorre o requisito negativo da alínea b) do nº1 do citado artigo 121º, antes, pelo contrário, está bem patenteada a lesão do interesse público neste caso em concreto, relembrando-se os factos imputados ao Requerente:
“Com efeito, incumbindo àquele a obrigação de assegurar a conservação dos instrumentos e suportes documentais de actos praticados no exercício das suas funções notariais e, bem assim, salvaguardar, acautelar e guardar os livros, documentos e ficheiros do cartório, verificou-se que estavam em falta 62 maços de documentos (estando um causa mais de mil documentos) respeitantes aos actos lavrados nos livros de notas para escrituras diversas n.ºs 78 a 140, correspondentes a instrumentos notariais realizados entre os anos de 2007 e 2010.
     Tal verificação ocorreu no decurso de inspecção específica levada a efeito entre Novembro de 2017 e Fevereiro de 2018, no cartório notarial do arguido (...)”

4. Ilegalidade do recurso
Impõe o preceito acima citado que não resultem fortes indícios de ilegalidade do recurso contencioso.
A instrumentalidade desta medida cautelar, implica uma não inviabilidade manifesta do recurso contencioso a interpor.
Só ocorre a acenada manifesta ilegalidade, quando se mostrar patente, notório ou evidente que, segura e inequivocamente, o recurso não pode ter êxito (v.g. por se tratar de acto irrecorrível; por ter decorrido o prazo de interposição de recurso de acto anulável) e não quando a questão seja debatida na doutrina ou na jurisprudência.4
Não nos parece que o processo aponte para a existência de fortes indícios de ilegalidade do recurso (artigo 121.°, n.º 1, alínea c), do CPAC). Ao falar de fortes indícios de ilegalidade do recurso, a lei pretende aludir a uma situação de inviabilidade manifesta, notória e evidente do recurso contencioso - neste sentido, cf., v.g., o acórdão de 30 de Maio de 2002, do TSI, processo n.º 92/2002 -, o que nos remete para a sindicância de pressupostos essencialmente formais, tais como a legitimidade, a tempestividade e a recorribilidade, não havendo lugar, no procedimento de suspensão, a considerações sobre a validade do acto e a procedência do recurso contencioso.
Não se está, pois, perante uma situação de manifesta ilegalidade do recurso, mostrando-se ainda aqui verificado o requisito negativo da alínea c) do artigo 121º do citado CPAC.
Este tem sido o entendimento unânime deste Tribunal, como resulta aliás, do acórdão de 25/1/07, n.º 649/2006/A.
No entanto, a verificação deste requisito, por si só, não obsta à denegação da suspensão, já que para esta se verificar os requisitos do art. 121º, n.º 1, do CPAC, têm de ser cumulativos.
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    5. Da desproporcionalidade
    Alegou o Requerente, a este propósito:
36.º Com efeito, mesmo que se verifique essa grave lesão, a lei permite que o tribunal possa suspender a eficácia de um acto, quando os prejuízos causados ao requerente pela imediata execução do acto sejam desproporcionadamente superiores àqueles que decorrem para o interesse público da suspensão da eficácia do acto.
37.° O que, no caso concreto sempre se teria por verificado, pois que, como se viu, da imediata execução do despacho punitivo decorre uma perda significativa da qualidade de vida do ora requerente, na medida em que fica com o seu nível de subsistência gravemente afectado e, consequentemente, o direito que todo o homem tem de viver com o mínimo de dignidade.
    Não tem razão o Requerente, ao pretender a verificação do requisito do n.º 4 do art. 121º do CPAC, como obstáculo à não verificação do requisito da al. b) do art. 121º, porquanto, em bom rigor, não esquecendo os efeitos negativos e prejudiciais, materiais e psíquicos para o modus vivendi do Requerente, o certo é que, a sua alegação esbarra com a dificuldade ou até impossibilidade de executar imediata e provisoriamente uma pena disciplinar privativa temporária de funções, pois que os prejuízos alegados se enquadram na normalidade das situações em que seja aplicada tal sanção.
    Nada se releva aqui de extraordinário ou diferente em relação ao comum das demais situações.
Resta acrescentar que, no confronto com o interesse particular do requerente - a propósito do qual este invoca o prejuízo resultante da privação de auferir os rendimentos decorrentes do exercício da advocacia conecto à sua actividade como notário privado - esse interesse público revela-se superior e reclama primazia, pelo que, também não pode, a nosso ver, sustentar-se a suspensão na norma do artigo 121.º, n.º 4, do Código de Processo Administrativo Contencioso.
Aliás, não está demonstrado que o exercício da advocacia possa sair afectado, em termos de clientela, pela suspensão das funções como notário privado, nem se sabe qual a expressão percentual que a componente notarial desempenha no rendimento da actividade global do requerente, e que este deixa de perceber, pelo que se toma inviável dar por assente a previsibilidade da ocorrência de prejuízo de reparação difícil em resultado da execução do acto.
Para além das dificuldades que a situação naturalmente arrasta consigo, ainda que perspectivadas à luz da situação concreta, o que importa é balancear os prejuízos que se contrapõem: os prejuízos particulares do requerente e os prejuízos advenientes para o interesse público com a sua manutenção em funções.
No cotejo a relevar entre as incidências de ambos os prejuízos em jogo, analisados os factos, tal como acima visto, a propósito da lesão do interesse público, vista a natureza das funções, elevado cargo então exercido, a seriedade e confiança expectáveis no exercício do cargo, a imagem e dignidade dos serviços e seus agentes, entende-se ter de ceder o interesse particular quanto à pretensa manutenção da situação funcional.
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Em síntese conclusiva:
I - A suspensão da eficácia da decisão punitiva aplicada em processo disciplinar depende apenas da verificação dos dois requisitos negativos das alíneas b) e c) do nº1 artigo 121º do CPAC: inexistência de grave lesão de interesse público pelo facto da suspensão e o não resultarem do processo fortes indícios da ilegalidade do recurso.
II - Está em causa o interesse público da função notarial, à qual andam indiscutivelmente ligadas a fé pública e a feição legal dos actos jurídicos extrajudiciais. A credibilidade pública do notariado e o prestígio da função, já abalados com o desaparecimento, em circunstâncias que o acto considerou de evidente e lamentável negligência, de um acervo considerável de documentos notariais, a que, por desleixo do Requerente, estranhos terão logrado aceder, ainda ficariam mais em xeque e deveras afectados com a suspensão da execução da punição.
III - Relativamente ao requisito da lesão do interesse público, na área disciplinar existe grave lesão desse interesse se a suspensão contende com a dignidade ou com o prestígio que o serviço deve manter perante o público em geral e, também contende com a fé pública e a feição legal do notariado jurídicos extrajudiciais, pondo-se em causa a fé pública do notariado e o prestígio da função em causa.
IV – Por outro lado, não está demonstrado que o exercício da advocacia possa sair afectado, em termos de clientela, pela suspensão das funções como notário privado, nem se sabe qual a expressão percentual que a componente notarial desempenha no rendimento da actividade global do requerente, e que este deixa de perceber, pelo que se torna inviável dar por assente a previsibilidade da ocorrência de prejuízo de reparação difícil em resultado da execução do acto.
V - Entende-se, neste caso, pelas indicadas razões, que a confiança dos cidadãos, a dignidade dos profissionais, o bom funcionamento dos serviços de notários privados e a legalidade de actuação ficam prejudicados, e como tal não se ocorre o requisito negativo da alínea b) do nº1 do citado artigo 121º, antes, pelo contrário, está bem patenteada a lesão do interesse público neste caso em concreto, é de ser indeferida a requerida suspensão.
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Tudo visto, resta decidir.
* * *
    V - DECISÃO
Em face de todo o que fica exposto e justificado, os Juízes do Tribunal de Segunda Instância acordam em indeferir o pedido da suspensão de eficácia da decisão punitiva da Senhora Secretária para a Administração e Justiça, datada de 05/06/2018.
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Custas pelo Requerente, que se fixam em 8 UCs.
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Notifique e Registe.
RAEM, aos 12 de Julho de 2018.
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Fong Man Chong Mai Man Ieng
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Ho Wai Neng
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José Cândido de Pinho

        1 Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo”, 8º ed., 409.
2 Ac. do T.S.I. de 22 de Novembro de 2001 – Pº205/01/A ; ac. do T.S.I. de 18 de Outubro de 2001 - Proc.191/01
3 Freitas do Amaral, Direito Administrativo”, 1988, II, 36 e 38
4 Ac. do TSI de 30/5/02, proc. 92/02
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2018-596-suspensão-notário