Processo nº 633/2018 Data: 19.07.2018
(Autos de recurso penal)
Assuntos : Acidente de viação.
Incapacidade parcial permanente.
Perdas salariais.
Perda de capacidade de ganho.
SUMÁRIO
1. Provado estando que a ofendida está “recuperada” das lesões, (e que, por sua iniciativa, se despediu do trabalho que tinha), motivos não há para se arbitrar uma “indemnização por perdas salariais”, (desde aquela data).
2. Tal não implica porém que não lhe possa ser arbitrada uma indemnização por “perda de capacidade de ganho”, se provado estiver que padece de uma “incapacidade parcial permanente”.
O relator,
______________________
Processo nº 633/2018
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. Por Acórdão datado de 13.03.2018 do Colectivo do T.J.B. decidiu-se condenar A, arguido com os sinais dos autos, como autor da prática de 1 crime de “ofensa à integridade física por negligência”, p. e p. pelo art. 142°, n.° 1 do C.P.M., e art. 93°, n.° 1 e 94°, n.° 1 da Lei n.° 3/2007, na pena de 1 ano e 3 meses de prisão suspensa na sua execução por 2 anos, e na pena acessória de inibição de condução por 1 ano.
Em relação ao “pedido de indemnização civil” pela ofendida B enxertado nos autos, decidiu-se julgar o mesmo parcialmente procedente, condenando-se a demandada civil “C, S.A.”, (C有限公司), a pagar à referida assistente e demandante uma indemnização por “danos patrimoniais” e “não patrimoniais” na quantia total de MOP$531.224,30 e juros; (cfr., fls. 331 a 338-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
*
Inconformada com o decidido em relação ao seu enxerto civil, vem a demandante recorrer pedindo que à indemnização atribuída seja aditado o valor de MOP$10.928,00, correspondente a “despesas médicas” que alega ter tido no período de 14.07.2017 a 29.01.2018, assim como um outro montante de MOP$1.032.696,00 correspondente à “perda de salário” entre o período de 14.07.2017 até à data em que vier a perfazer 65 anos de idade; (cfr., fls. 347 a 355).
*
Respondendo, diz a demandada seguradora que o recurso não merece provimento; (cfr., fls. 366 a 371).
*
Adequadamente processados os autos, e nada parecendo obstar, cumpre apreciar e decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Estão “provados” e “não provados” os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 332-v a 334, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos para todos os legais efeitos.
Do direito
3. Como resulta do que se deixou relatado, vem a assistente e demandante recorrer do Acórdão prolatado pelo Colectivo do T.J.B., impugnando (tão só) o segmento decisório que apreciou o seu pedido civil.
Pretende que à indemnização que (já) lhe foi atribuída se aditem dois montantes: um, referente a “despesas médicas”, e outro, referente à “perda de salário”.
As questões apresentam-se sem especial complexidade, pelo que, sem demoras, se passa a decidir.
–– Quanto às pretendidas “despesas médicas”, alega a demandante que as mesmas dizem respeito a gastos tidos no tratamento das lesões que sofreu com o acidente de viação dos autos e do qual foi vítima, ocorridas no período de 14.07.2017 a 29.01.2018, e calculadas em MOP$10.928,00.
E atenta a decisão – de “facto” e de “direito” – pelo T.J.B. proferida e agora em questão, evidente é a improcedência desta parte do pedido.
Com efeito, nos presentes autos, provou-se apenas que a título de “despesas médicas” em consequência das lesões pela ora recorrente tidas em consequência do acidente dos autos, suportou a mesma o quantum de MOP$70.339,00, (cfr., ponto da decisão da matéria de facto com o n.° 7, fls. 333-v), certo sendo que pelas mesmas despesas foi a recorrente (correctamente) indemnizada na decisão recorrida, arbitrando-se-lhe a dita quantia; (cfr., fls. 336-v, 1° §).
Assim, provadas não estando outras “despesas médicas”, (nem se vislumbrando que padeça a “decisão da matéria de facto” pelo T.J.B. proferida de qualquer vício), visto está que, nesta parte, à ora recorrente não se pode reconhecer razão.
–– Quanto à “perda de salário”.
Pois bem, aqui, diz a recorrente que se lhe deve ser arbitrado um montante de MOP$1.032.696,00, respeitante à perda do seu salário referente ao período de 14.07.2017 até à data em que vier a perfazer 65 anos de idade.
Ora, cremos haver equívoco.
Como do Acórdão recorrido se colhe, a título de “perdas salariais”, (também) já se arbitrou à ora recorrente a quantia de MOP$340.885,30, (cfr., fls. 336-v, 2° e 3° §).
É verdade que tal quantum se destinou a indemnizar o salário que a recorrente deixou de auferir desde o dia do acidente de viação, (20.07.2015), até ao dia 13.07.2017, (perfazendo o período total de 1 ano, 11 meses e 23 dias), valendo a pena aqui notar que a decisão recorrida remeteu para execução de sentença a decisão sobre outras eventuais perdas salariais da recorrente; (cfr., fls. 338).
Porém, seja como for, e atento o que peticionado vem, importa agora ter em conta que provado está que a recorrente estava “medicamente recuperada” em 13.07.2017, (cfr., ponto da matéria de facto n.° 10, fls. 333-v, que remete para “parecer” e “perícia médica”), e, tendo presente que igualmente provado está que a mesma recorrente se despediu do seu trabalho em 01.10.2015, (cfr., ponto da matéria de facto n.° 9), e provadas não estando outras “perdas”, cremos que, (pelo menos), por ora, face ao decidido, e a título de “perdas salariais”, nada mais se lhe pode atribuir.
Todavia, seja como for, (e aqui, cremos nós, estará o referido equívoco), provado está que em virtude do acidente e das lesões que do mesmo lhe advieram, ficou a recorrente a padecer de uma “incapacidade parcial permanente de 10(3+7)%”; (cfr., ponto da matéria de facto n.° 11).
E, independentemente do demais, tal I.P.P. constitui, (certamente), uma causa de “perda de capacidade de ganho” que justifica uma justa e adequada compensação.
Como se decidiu no douto Acórdão do Vdo T.U.I. de 25.04.2007, Proc. n.° 20/2007, “A perda da capacidade de ganho por incapacidade permanente parcial ou total é indemnizável, ainda que o lesado mantenha o mesmo salário que auferia antes da lesão”, consignando-se aí igualmente que “No cômputo da indemnização por perda da capacidade de ganho por incapacidade permanente parcial, o tribunal deve atender ao disposto no n.º 5 do art. 560.º do Código Civil, bem como recorrer à equidade, nos termos do n.º 6 do art. 560.º do mesmo Código”.
E, mostrando-se-nos de acompanhar o assim entendido, afigura-se-nos aqui adequadas umas breves considerações sobre a questão.
O “dano” é a perda in natura que o lesado sofreu, em consequência de certo facto, nos interesses (materiais, espirituais ou morais) que o direito violado ou a norma infringida visam tutelar.
Pode revestir “a destruição, subtracção ou deterioração de certa coisa, material ou incorpórea” (dano real) ou ser “reflexo do dano real sobre a situação patrimonial do lesado” (dano patrimonial); (vd., A. Varela, in “Das Obrigações em Geral”, Vol. I, pág. 598).
Dentro do “dano patrimonial”, cabem e são indemnizáveis, o dano “emergente” – o prejuízo causado nos bens ou nos direitos existentes na titularidade do lesado – e os “lucros cessantes” – os benefícios que o lesado deixou de obter por causa do facto ilícito e a que ainda não tinha direito na data da lesão.
Nos termos do n.° 2 do art. 558° do C.C.M., na fixação da indemnização, pode o tribunal atender ainda aos “danos futuros”, desde que previsíveis.
Dispõe também o art. 556° do mesmo C.C.M. – onde se consagra o “princípio da restauração natural” – que a indemnização deve reconstituir a situação anterior à lesão, isto é, a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.
Não sendo possível essa “reconstituição natural” – como não o é em casos como o dos autos, em que não pode devolver-se ao lesado a capacidade e integridade física que tinha antes do acidente – a indemnização deve ser fixada em dinheiro, (art. 560°, n.° 1), e tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem os danos, (art. 560°, n.° 5).
Ora, o “dano corporal”, lesivo da saúde, (“dano biológico”), está na origem de outros danos, (“danos – consequência”), designadamente, aqueles que se traduzem na perda, total ou parcial, da capacidade de trabalho.
Como se decidiu no Ac. do S.T.J. de 19.02.2015, Proc. n.° 99/12, “O dano biológico consubstancia uma violação da integridade físico-psíquica de uma pessoa, com tradução médico-legal, sendo que, estando em causa a incapacidade para o trabalho, o mesmo existe haja ou não perda efectiva de proventos laborais”, afirmando aí mesmo que: “(…) havendo uma incapacidade permanente, mesmo que sem rebate profissional, sempre dela resultará uma afetação da dimensão anatomo-funcional do lesado, proveniente da alteração morfológica do mesmo e causadora de uma diminuição da efetiva utilidade do seu corpo ao nível de atividades laborais, recreativas, sexuais, sociais ou sentimentais, com o consequente agravamento da penosidade na execução das diversas tarefas que de futuro terá de levar a cargo, próprias e habituais de qualquer múnus que implique a utilização do corpo.
E é neste agravamento de penosidade que se radica o arbitramento de uma indemnização”; (in “www.dgsi.pt”).
Seja como for, o certo é que o dano por “perda de capacidade” ou “incapacidade”, (e que como se viu, tem a natureza de “dano patrimonial”), é distinto e autónomo do “dano não patrimonial” que se reconduz à dor, desgosto e sofrimento de uma pessoa que se sente fisicamente diminuída para toda a vida; (sobre esta “distinção” e “autonomia”, vd., v.g., os Acs. do S.T.J. de 03.03.2016, Proc. n.° 4931/11; de 07.04.2016, Proc. n.° 237/13; e da Rel. do Porto de 27.09.2016, Proc. n.° 2007/13, e de 11.10.2016, Proc. n.° 805/15, e Sinde Monteiro in “Estudos sobre a Responsabilidade Civil”, pág. 248).
Por fim, importa também ter presente que, em recente Ac. de Vdo T.U.I. se decidiu também que:
“Na fixação da quantia indemnizatória por perda da capacidade de ganho por incapacidade permanente, o tribunal deve atender ao disposto no n.º 5 do art.º 560.º do Código Civil, bem como recorrer à equidade, nos termos do n.º 6 do art.º 560.º do mesmo Código.
Deve-se ainda atender a outros factos provados pertinentes, como a idade da vítima, o seu estado físico antes da lesão, o seu salário actual e o seu emprego, as suas habilitações académicas, as suas perspectivas profissionais, etc.”; (cfr., o Ac. de 11.07.2018, Proc. n.° 39/2018).
Nesta conformidade, tendo presente a pretensão apresentada – e ponderando na factualidade provada, em especial, no salário que auferia mensalmente, (MOP$14.343,00), tendo presente a sua idade, (nascida em 12.06.1958), e considerando-se que a “vida activa” (normalmente) se suspende aos 65 anos de idade, a título de “perda de capacidade de ganho” da ora recorrente afigura-se-nos justo e adequado o montante de MOP$90.000,00.
Tudo visto, resta decidir.
Decisão
4. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam conceder parcial provimento ao recurso, ficando a ora recorrida, (demandada seguradora), condenada a pagar à recorrente o montante total de MOP$621.224,30.
Custas, pela recorrente e recorrida, na proporção dos seus decaimentos; (notando-se que beneficia a recorrente de apoio judiciário – cfr., fls. 57).
Honorários ao Exmo. Defensor da recorrente no montante de MOP$1.800,00, (a adiantar pelo G.P.T.U.I.).
Registe e notifique.
Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.
Macau, aos 19 de Julho de 2018
_________________________
José Maria Dias Azedo
_________________________
Tam Hio Wa
_________________________
Chan Kuong Seng
(vencido na decisão do recurso na parte respeitante às despesas médicas para além da data da “cura clínica”, porque entendo que ante o teor do documento pericial médico de fl. 233, há nexo de causalidade também para as despesas de tratamento médico ocorridas ou a ocorrer depois da cura clínica, para atenuar as dores da pessoa ofendida e tratar de problemas de foro psicológico dela, como sequelas da lesão sofrida no acidente de viação).
Proc. 633/2018 Pág. 14
Proc. 633/2018 Pág. 15