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Processo nº 538/2018 Data: 19.07.2018
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Crime de “injúria”.
Crime de “gravações e fotografias ilícitas”.
Erro.
Pena de multa.



SUMÁRIO

1. É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. art. 336° do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. art. 114° do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal.
O princípio da livre apreciação da prova, significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que pré-determinam ou hierarquizam o valor dos diversos meios de apreciação da prova, pressupondo o apelo às “regras de experiência” que funcionam como argumentos que ajudam a explicar o caso particular com base no que é “normal” acontecer.
Com o mesmo, consagra-se um modo não estritamente vinculado na apreciação da prova, orientado no sentido da descoberta da verdade processualmente relevante pautado pela razão, pela lógica e pelos ensinamentos que se colhem da experiência comum, e limitado pelas excepções decorrentes da “prova vinculada”, (v.g., caso julgado, prova pericial, documentos autênticos e autenticados), estando sujeita aos princípios estruturantes do processo penal, entre os quais se destaca o da legalidade da prova e o do “in dubio pro reo”.

2. Com a incriminação do crime de “injúria” não se visa proteger a mera “susceptibilidade pessoal”, mas tão só a dignidade individual do cidadão, expressa no respeito pela honra e consideração que lhe são devidas, assentes na sua dimensão normativo-pessoal, em que a “honra” é vista como bem jurídico complexo que inclui, quer o “valor pessoal” ou “interior” de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a sua própria “reputação ou consideração exterior”.
No crime de “difamação” (e injúria) não é exigível um qualquer dolo específico ou elemento peculiar do tipo subjectivo que se traduza no especial propósito de atingir o visado na sua honra e consideração, o designado animus injuriandi, admitindo os respectivos tipos legais qualquer das formas de dolo, incluindo o dolo eventual, sendo assim suficiente que o agente admita o teor ofensivo da imputação ou juízo formulados e actue conformando-se com ele, preenchendo-se o elemento subjectivo do tipo com a vontade de praticar o acto com a consciência de com ele se atribuir um facto ou se formular um juízo com significado ofensivo do bom nome ou consideração alheias.

3. Filmar é toda a acção que permite fixar (gravar, registar, conservar) a imagem óptica de outra pessoa, parada ou em movimento, qualquer que seja o meio técnico de gravação e de conservação, sendo que o ilícito típico do crime de “gravações e fotografias ilícitas” consuma-se com o termo do processo de registo.

4. A “pena de multa” não deve ser encarada de ânimo leve pelos condenados, pois que (também) se destina a satisfazer as “finalidades da punição”, não constituindo uma mera despesa – corrente – do condenado ou do seu agregado familiar.
Imperativa é pois uma adequada ponderação quanto ao “património do condenado”, porém, como “verdadeira pena”, não pode converter-se em “cómodo negócio”, havendo de constituir algum “sacrifício (económico)” para o condenado, sem que, contudo, se transforme num “rigor injusto” e de impossível cumprimento.
Importa ter em conta que uma pena de multa que, a final, represente um “valor insignificante” (ou simbólico), não tem quaisquer potencialidades para lograr as “finalidades da punição”, (tal com elas estão legalmente previstas no art. 40° do C.P.M.), nem contribuirá para que a comunidade sinta que a ordem jurídica tutela adequadamente os seus interesses, (sendo mesmo caso para dizer que nem mesmo o arguido sentirá que o “crime não compensa”, havendo o risco de vir a considerar até que “vale a pena”, podendo-se repetir, face à suavidade da justiça criminal).
Daí que se devem evitar penas de multa fixadas junto ao seu mínimo, devendo-se reservar estas para arguidos com comprovada “situação económica difícil”.

O relator,

______________________
José Maria Dias Azedo

Processo nº 538/2018
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. A, (2a) arguida com os restantes sinais dos autos, respondeu no T.J.B., vindo, a final, a ser condenada como autora material e em concurso real da prática de 2 crimes de “injúria qualificada”, p. e p. pelo art. 175°, n.° 1 e 178° do C.P.M., na pena de 60 dias de multa cada, e 1 outro crime de “gravações e fotografias ilícitas”, p. e p. pelo art. 191°, n.° 2, al. a) do C.P.M., na pena de 150 dias de multa.

Em cúmulo jurídico, foi a arguida condenada na pena única de 210 dias de multa, à taxa diária de MOP$150,00, perfazendo a multa global de MOP$31.500,00 ou 140 dias de prisão subsidiária, e no pagamento de MOP$2.000,00 de indemnização ao ofendido B; (cfr., fls. 203 a 210 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

*

Inconformada, a arguida recorreu, afirmando que a decisão recorrida padecia do vício de “erro notório na apreciação da prova” e “errada qualificação jurídica”, considerando que a sua conduta integra apenas a prática de 1 crime de “gravações e fotografias ilícitas” na “forma tentada”, afirmando ainda que “excessiva” era a pena aplicada; (cfr., fls. 222 a 229).

*

Respondendo, diz o Ministério Público que o recurso não merece provimento; (cfr., fls. 232 a 234-v).

*

Neste T.S.I., e em sede de vista, juntou o Exmo. Representante do Ministério Público o seguinte douto Parecer:

“Acusada da prática de dois crimes de injúria agravada, previstos e puníveis pelos artigos 175.°, n.° 1, e 178.° do Código Penal, e de um crime de gravação ilícita, previsto e punível pelo artigo 191.°, n.° 2, alínea a), do Código Penal, viria a arguida e ora recorrente A, após julgamento em processo comum perante tribunal singular, a ser condenada, nas penas de multa de 60 dias pela prática de cada um dos crimes de injúria agravada e de 150 dias pelo crime de gravação ilícita. E, em cúmulo jurídico destas penas parcelares, acabou por ser condenada na pena conjunta de 210 dias de multa, à taxa diária de MOP $150, o que perfaz um total de MOP $31.500 (trinta e uma mil e quinhentas patacas).
Inconformada, vem recorrer da decisão condenatória, imputando-lhe os vícios de erro notório na apreciação da prova e errada qualificação quanto à forma do crime, no tocante à gravação ilícita, e excessividade da pena, no tocante à taxa diária da multa.
Diga-se, desde já, que se afigura improcedente a argumentação da recorrente, tal como a Exm.a colega faz notar na sua judiciosa resposta à motivação do recurso, cujo teor acompanhamos inteiramente.
A recorrente começa por afirmar que o tribunal a condenou por gravação ilícita apenas com base no depoimento de duas testemunhas. E aí residiria, no seu entender, o imputado erro notório na apreciação da prova.
Mas isto é confundir erro notório na apreciação da prova com livre apreciação da prova.
Na verdade, a recorrente nem sequer avança motivos para pôr em xeque os dois depoimentos em causa, e tão pouco contrapõe outras provas disponíveis que impusessem juízo diverso acerca dos factos em questão. No fundo, o que a recorrente põe em causa é que o tribunal se tenha deixado convencer com base nos depoimentos de duas testemunhas.
Pois bem, o erro notório na apreciação da prova pressupõe que a partir de um facto se extraia uma conclusão inaceitável, que sejam preteridas regras sobre o valor da prova vinculada ou tarifada, ou que se violem as regras da experiência ou as leges artis na apreciação da prova – cf., v.g., acórdão do Tribunal de Última Instância, de 4 de Março de 2015, exarado no Processo n.° 9/2015. Nada disto sucedeu na sentença em escrutínio, não se verificando qualquer erro na apreciação da prova, muito menos o erro notório exigido pelo artigo 400.°, n.° 2, alínea c), do Código de Processo Penal.
E também se afigura óbvio que nenhuma dúvida transparece da douta sentença recorrida, que possa dar corpo a uma absolvição do crime de gravação ilícita, com base no princípio in dubio pro reo, como vem sugerido pela recorrente. A recorrente pode ter as suas dúvidas, com base na sua própria apreciação das provas. Não pode é tentar transferi-las para o tribunal.
Improcede este primeiro fundamento do recurso.
Subsidiariamente, a recorrente intenta convencer que o crime de filmagem ilícita por que foi condenada não chegou a consumar-se, ficando-se pela tentativa, que, no caso, não é punível. Nesse sentido, sustenta que apenas ficou provado que praticou actos de filmagem naquele dia, mas não se provou que o filme foi conservado no telemóvel.
Salvo o devido respeito, não podemos concordar com este ponto de vista. A conduta típica, no caso vertente, substancia-se no acto de gravar, filmar. E filmar é toda a acção que permite fixar (gravar, registar, conservar) a imagem óptica de outra pessoa, parada ou em movimento, qualquer que seja o meio técnico de gravação e de conservação… O ilícito típico consuma-se com o termo do processo de registo… (Costa Andrade em anotação ao artigo 199.° do Código Penal português, in Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo I, 2.ª edição, a páginas 1213 e 1214). Pois bem, temos para nós que esta noção não envolve necessariamente a conservação, enquanto guarda ou manutenção duradoura da imagem, como parece pressupor a recorrente. O que é necessário é que a imagem assim recolhida fique registada em suporte, digital ou outro, ainda que tal possa suceder apenas por um curto lapso de tempo, mesmo que apagada, eliminada, pouco após o registo. Este é, aliás, o sentido que comummente é associado ao vocábulo “filmar”. E o que ficou provado, com esse assinalado sentido comum, é que a recorrente filmou os ofendidos. Daí que, para a consumação do crime, se afigure indiferente saber se ela ainda mantém as imagens recolhidas ou se as apagou e por quanto tempo as conservou.
Improcede também este fundamento do recurso.
Entrando na questão da excessividade da pena, importa notar que a redução da multa teria que operar-se, em princípio, por uma de duas vias: ou através da diminuição dos dias de multa ou mediante redução da taxa aplicada. A recorrente não questiona o número de dias de multa, direccionando a sua crítica para a taxa diária aplicada. Afigura-se-nos, porém, que essa taxa se mostra perfeitamente consentânea com a condição económica revelada pela própria recorrente, tal como já frisou o Ministério Público na sua minuta de resposta, havendo ainda que ponderar que, por estar próxima do mínimo, baixá-la mais pode até contribuir para retirar à condenação a justa medida da carga que não pode deixar de lhe estar associada.
Soçobra também este fundamento do recurso.
Ante o exposto, deve o recurso ser rejeitado ou improvido”; (cfr., fls. 302 a 303-v).

*

Cumpre agora decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Estão “provados” e “não provados” os factos como tal elencados na sentença recorrida, a fls. 204 a 205, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.

Do direito

3. Vem a arguida recorrer da decisão que a condenou como autora material, em concurso real, da prática de 2 crimes de “injúria qualificada”, p. e p. pelo art. 175°, n.° 1 e 178° do C.P.M., na pena de 60 dias de multa cada, e 1 outro crime de “gravações e fotografias ilícitas”, p. e p. pelo art. 191°, n.° 2, al. a) do C.P.M., na pena de 150 dias de multa, fixando-lhe o Tribunal a pena única de 210 dias de multa, à taxa diária de MOP$150,00, perfazendo a multa global de MOP$31.500,00 ou 140 dias de prisão subsidiária, e no pagamento de MOP$2.000,00 de indemnização ao ofendido dos autos.

Considera que a decisão recorrida padece do vício de “erro notório na apreciação da prova”, “errada aplicação de direito” e “excesso de pena”.

–– Comecemos, como se mostra lógico, pelo alegado “erro”.

De forma firme e repetida tem este T.S.I. considerado que: “O erro notório na apreciação da prova apenas existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores”.
De facto, “É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 14.09.2017, Proc. n.° 729/2017, de 04.04.2018, Proc. n.° 912/2017 e de 17.05.2018, Proc. n.° 236/2018).

Como também já tivemos oportunidade de afirmar:

“Erro” é toda a ignorância ou falsa representação de uma realidade. Daí que já não seja “erro” aquele que possa traduzir-se numa “leitura possível, aceitável ou razoável, da prova produzida”.
Sempre que a convicção do Tribunal recorrido se mostre ser uma convicção razoavelmente possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve a mesma ser acolhida e respeitada pelo Tribunal de recurso.
O princípio da livre apreciação da prova, significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que pré-determinam ou hierarquizam o valor dos diversos meios de apreciação da prova, pressupondo o apelo às “regras de experiência” que funcionam como argumentos que ajudam a explicar o caso particular com base no que é “normal” acontecer.
Com o mesmo, consagra-se um modo não estritamente vinculado na apreciação da prova, orientado no sentido da descoberta da verdade processualmente relevante pautado pela razão, pela lógica e pelos ensinamentos que se colhem da experiência comum, e limitado pelas excepções decorrentes da “prova vinculada”, (v.g., caso julgado, prova pericial, documentos autênticos e autenticados), estando sujeita aos princípios estruturantes do processo penal, entre os quais se destaca o da legalidade da prova e o do “in dubio pro reo”.
Enformado por estes limites, o julgador perante o qual a prova é produzida – e que se encontra em posição privilegiada para dela colher todos os elementos relevantes para a sua apreciação crítica – dispõe de ampla liberdade para eleger os meios de que se serve para formar a sua convicção e, de acordo com ela, determinar os factos que considera provados e não provados.
E, por ser assim, nada impede que dê prevalência a um determinado conjunto de provas em detrimento de outras, às quais não reconheça, nomeadamente, suporte de credibilidade.
O acto de julgar é do Tribunal, e tal acto tem a sua essência na operação intelectual da formação da convicção.
Tal operação não é pura e simplesmente lógico-dedutiva, mas, nos próprios termos da lei, parte de dados objectivos para uma formação lógico-intuitiva.
Esta operação intelectual também não é uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis).
Para a operação intelectual contribuem regras, impostas por lei, como sejam as da experiência, a percepção da personalidade do depoente (impondo-se por tal a imediação e a oralidade), a da dúvida inultrapassável, (conduzindo ao princípio in dubio pro reo).
A lei impõe princípios instrumentais e princípios estruturais para formar a convicção. O princípio da oralidade, com os seus corolários da imediação e publicidade da audiência, é instrumental relativamente ao modo de assunção das provas, mas com estreita ligação com o dever de investigação da verdade jurídico-prática e com o da liberdade de convicção; com efeito, só a partir da oralidade e imediação pode o juiz perceber os dados não objectiváveis atinentes com a valoração da prova.
A oralidade da audiência, (que não significa que não se passem a escrito os autos, mas que os intervenientes estejam fisicamente perante o Tribunal), permite ao Tribunal aperceber-se dos traços do depoimento, denunciadores da isenção, imparcialidade e certeza que se revelam, v.g., por gestos, comoções e emoções, da voz.
A imediação que vem definida como a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de tal modo que, em conjugação com a oralidade, se obtenha uma percepção própria dos dados que haverão de ser a base da decisão.
É pela imediação, também chamado de princípio subjectivo, que se vincula o juiz à percepção à utilização à valoração e credibilidade da prova.
Por sua vez, e como igualmente temos repetidamente afirmado, não basta uma “dúvida pessoal” ou uma mera “possibilidade ou probabilidade” para se poder dizer que incorreu o Tribunal no vício de erro notório na apreciação da prova; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 21.09.2017, Proc. n.° 837/2017, de 07.12.2017, Proc. n.° 877/2017 e de 04.04.2018, Proc. n.° 151/2018).

Com efeito, importa ter em conta que “Quando a atribuição de credibilidade ou falta de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear em opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção não tem uma justificação lógica e é inadmissível face às regras da experiência comum”; (cfr., o Ac. da Rel. de Coimbra de 13.09.2017, Proc. n.° 390/14).

No caso dos autos, e atento o que se deixou expedido, evidente se apresenta que inexiste qualquer “erro”, (muito menos, “notório”), pois que em momento algum violou o Tribunal a quo qualquer regra sobre o valor da prova tarifada, regra de experiência ou legis artis.

Aliás, o Tribunal a quo, em observância do dever de fundamentação, explicita, de forma clara e lógica, a razão da sua convicção; (cfr., fls. 205 a 207).

E, como – bem – se nota do douto Parecer do Ministério Público, “No fundo, o que a recorrente põe em causa é que o tribunal se tenha deixado convencer com base nos depoimentos de duas testemunhas”, e óbvio sendo que tal não constitui o imputado “erro”, nenhuma censura merece o decidido, necessárias não se apresentando outras considerações sobre a questão.

Continuemos.

–– Do alegado vício de “errada qualificação jurídico-penal” da matéria de facto dada como provada.

Vejamos.

Nos termos do art. 175° do C.P.M.:

“1. Quem imputar factos a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, ou lhe dirigir palavras, ofensivos da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 dias.
2. Tratando-se da imputação de factos é correspondentemente aplicável o disposto nos n.os 2, 3 e 4 do artigo anterior”.

Também, nos termos do art. 178° do dito C.P.M.:

“As penas previstas nos artigos 174.º, 175.º e 177.º são elevadas de metade nos seus limites mínimo e máximo se a vítima for uma das pessoas referidas na alínea h) do n.º 2 do artigo 129.º, no exercício das suas funções ou por causa delas”

E, por sua vez, prescreve o art. 191° do C.P.M. que:

“1. Quem, sem consentimento,
a) gravar palavras proferidas por outra pessoa e não destinadas ao público, mesmo que lhe sejam dirigidas, ou
b) utilizar ou permitir que se utilizem as gravações referidas na alínea anterior, mesmo que licitamente produzidas, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.
2. Na mesma pena incorre quem, contra a vontade e fora dos casos permitidos pela lei:
a) Fotografar ou filmar outra pessoa, mesmo em eventos em que tenha legitimamente participado; ou
b) Utilizar ou permitir que se utilizem fotografias ou filmes referidos na alínea anterior, mesmo que licitamente obtidos”.

No caso, provado está que a arguida ora recorrente, agindo livre e conscientemente, dirigiu “palavras insultuosas” e ofensivas da “honra” e “consideração” dos 3° e 4° ofendidos dos autos que, sendo guardas da P.S.P., encontravam-se em (pleno) exercício de funções.

E, tratando do crime de “injúria” aqui em questão, teve já este T.S.I. oportunidade de afirmar que:

“Através da incriminação em causa, não se visa proteger a mera “susceptibilidade pessoal”, mas tão só a dignidade individual do cidadão, expressa no respeito pela honra e consideração que lhe são devidas, assentes na sua dimensão normativo-pessoal, em que a “honra” é vista como bem jurídico complexo que inclui, quer o “valor pessoal” ou “interior” de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a sua própria “reputação ou consideração exterior”.
No crime de “difamação” (e injúria) não é exigível um qualquer dolo específico ou elemento peculiar do tipo subjectivo que se traduza no especial propósito de atingir o visado na sua honra e consideração, o designado animus injuriandi, admitindo os respectivos tipos legais qualquer das formas de dolo, incluindo o dolo eventual, sendo assim suficiente que o agente admita o teor ofensivo da imputação ou juízo formulados e actue conformando-se com ele, preenchendo-se o elemento subjectivo do tipo com a vontade de praticar o acto com a consciência de com ele se atribuir um facto ou se formular um juízo com significado ofensivo do bom nome ou consideração alheias”; (cfr., v.g., o Ac. de 17.05.2018, Proc. n.° 236/2018).

Por sua vez, provado está também que a mesma arguida, utilizando o seu telemóvel, filmou a actuação dos ofendidos dos autos enquanto estes estavam em exercício de funções, continuando-o a fazer mesmo depois de advertida que incorreria em responsabilidade criminal.

E, como ensina Costa Andrade, (in “Com. Conimbricense do C.P. português”, tomo I, pág. 1213), certo sendo que “filmar é toda a acção que permite fixar (gravar, registar, conservar) a imagem óptica de outra pessoa, parada ou em movimento, qualquer que seja o meio técnico de gravação e de conservação…”, sendo também que “O ilícito típico consuma-se com o termo do processo de registo…”, e, sendo esta a factualidade que se deu como assente, cremos que inexiste qualquer “erro” na qualificação jurídico-penal pelo T.J.B. efectuada à conduta da arguida, (o mesmo sendo de suceder em relação à suscitada “tentativa”, quanto ao crime de “gravações e fotografias ilícitas”, pois que, como se viu, provado está que a arguida “captou” a imagem dos ofendidos, havendo, assim, que se dar tal crime como consumado).

–– Quanto à “pena”.

E, neste capítulo, perante retratada a factualidade, manifesto se apresenta que nenhuma censura merece também a decisão de se condenar a arguida como autora material em concurso real da prática de 2 crimes de “injúria qualificada”, p. e p. pelo art. 175°, n.° 1 e 178° do C.P.M., na pena de 60 dias de multa cada, e 1 outro crime de “gravações e fotografias ilícitas”, p. e p. pelo art. 191°, n.° 2, al. a) do C.P.M., na pena de 150 dias de multa, e em cúmulo jurídico, na pena única de multa de 210 dias, à taxa diária de MOP$150,00, perfazendo a multa global de MOP$31.500,00 ou em 140 dias de prisão subsidiária.

Com efeito, tendo o T.J.B. optado pela pena de multa, e cabendo ao crime de “injúria qualificada” a pena de multa de 45 a 180 dias; (cfr., art. 175° e 178° do C.P.M.), e ao crime de “gravações e fotografias ilícitas”, a de multa de 30 a 240 dias, (cfr., art. 191° do C.P.M.), motivos não se vislumbram para se considerar as penas parcelares fixadas inflaccionadas, o mesmo sucedendo com a pena única, apresentando-se-nos que reflectem, adequadamente, o dolo directo e intenso da arguida assim como o grau de sua ilicitude, mostrando-se em conformidade com os critérios dos art°s 40°, 65° e 71° do C.P.M..

Quanto à “taxa diária”, importa aqui atentar no art. 45° do C.P.M., onde se prescreve que:

“1. A pena de multa é fixada em dias, de acordo com os critérios estabelecidos nos n.os 1 e 2 do artigo 65.º, tendo, em regra, o limite mínimo de 10 dias e o máximo de 360.
2. Cada dia de multa corresponde a uma quantia entre 50 e 10 000 patacas, que o tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais.
3. Sempre que a situação económica e financeira do condenado o justificar, o tribunal pode autorizar o pagamento da multa dentro de um prazo que não exceda 1 ano, ou permitir o pagamento em prestações, não podendo a última delas ir além dos 2 anos subsequentes à data do trânsito em julgado da condenação; dentro dos limites referidos e quando motivos supervenientes o justificarem, os prazos de pagamento inicialmente estabelecidos podem ser alterados.
4. A falta de pagamento de uma das prestações importa o vencimento das restantes”.

Perante isto, que dizer do quantum da “pena de multa” fixada?

Pois bem, temos como adequado o entendimento segundo o qual a “pena de multa” não deve ser encarada de ânimo leve pelos condenados, pois que (também) se destina a satisfazer as “finalidades da punição”, não constituindo uma mera despesa – corrente – do condenado ou do seu agregado familiar; (nesse sentido, cfr., v.g., o Ac. da Rel. do Porto de 01.06.2016, Proc. n.° 1187/08, in “www.dgsi.pt”).

Imperativa é pois uma adequada ponderação quanto ao “património do condenado”, porém, como “verdadeira pena”, não pode converter-se em “cómodo negócio”, havendo de constituir algum “sacrifício (económico)” para o condenado, sem que, contudo, se transforme num “rigor injusto” e de impossível cumprimento.

Importa ter em conta que uma pena de multa que, a final, represente um “valor insignificante” (ou simbólico), não tem quaisquer potencialidades para lograr as “finalidades da punição”, (tal com elas estão legalmente previstas no art. 40° do C.P.M.), nem contribuirá para que a comunidade sinta que a ordem jurídica tutela adequadamente os seus interesses, (sendo mesmo caso para dizer que nem mesmo o arguido sentirá que o “crime não compensa”, havendo o risco de vir a considerar até que “vale a pena”, podendo-se repetir, face à suavidade da justiça criminal).

Daí que se devem evitar penas de multa fixadas junto ao seu mínimo, devendo-se reservar estas para arguidos com comprovada “situação económica difícil”.

Nesta conformidade, ponderando no estatuído no n.° 2 do transcrito art. 45°, e tendo em conta que provado está que a arguida ora recorrente aufere mensalmente um vencimento de MOP$30.000,00 a MOP$60.000,00 e que tem a seu cargo a mãe, e dois filhos, cremos que excessiva não se apresenta a taxa diária fixada pelo T.J.B., considerando-se justa e adequada a taxa de MOP$150,00 por dia, (perfazendo assim uma multa global de MOP$31.500,00), mantendo-se, igualmente aqui, o decidido.

Tudo visto, resta decidir.

Decisão

4. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam negar provimento ao recurso.

Custas pela arguida com a taxa de justiça que se fixa em 8 UCs.

Honorários ao Exmo. Defensor no montante de MOP$1.800,00.

Registe e notifique.

Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.

Macau, aos 19 de Julho de 2018
José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa
Proc. 538/2018 Pág. 28

Proc. 538/2018 Pág. 29