Processo n.º 865/2015 Data do acórdão: 2018-7-26 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– falsificação de folhas de ponto do trabalho
– burla
– Serviços de Saúde de Macau
– faltas injustificadas do trabalhador ao serviço
– punição do crime continuado
– art.o 73.o do Código Penal
– art.o 65.o, n.o 2, do Código Penal
– circunstâncias agravantes na medida da pena do crime continuado
S U M Á R I O
1. O facto provado de o arguido ter falsificado o teor de diversas folhas de ponto do trabalho já representou o emprego, por ele, de astúcia sobre os Serviços de Saúde de Macau (SSM) como sua entidade patronal. É que se ele não tivesse falsificado o teor das folhas de ponto em causa, essa entidade patronal teria descoberto logo a realidade de ele não ter estado no serviço e como tal teria determinado o desconto remuneratório correspondente aos dias de falta injustificada dele ao serviço, em procedimento próprio e momento oportuno.
2. É, assim, de passar a condenar o arguido também como autor material de um crime de burla do art.o 211.o, n.o 1, do Código Penal.
3. A punição do crime continuado tem que seguir a regra especial do art.o 73.o do Código Penal, à luz da qual a moldura penal aplicável ao crime continuado é a moldura penal aplicável “à conduta mais grave que integra a continuação”, o que não significa, obviamente, que as circunstâncias fácticas já provadas relativas a outras condutas (menos graves) que integram a continuação não possam ser consideradas a título de circunstâncias agravantes (nos termos do art.o 65.o, n.o 2, do Código Penal) em sede da medida concreta da pena dentro daquela moldura penal aplicável.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 865/2015
(Recurso em processo penal)
Recorrente: Ministério Público
Recorrido (arguido): A
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA
REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformada com o acórdão proferido a fls. 942 a 997v do subjacente Processo Comum Colectivo n.o CR4-14-0301-PCC do 4.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base na parte em que se decidiu absolver o arguido A, aí já melhor identificado, da imputada prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime continuado de burla (de montantes remuneratórios do trabalho aos Serviços de Saúde de Macau (SSM) no valor total de MOP93.488,00), p. e p. pelo art.o 211.o, n.o 1, do Código Penal (CP), e aplicar ao mesmo arguido a pena de um ano de prisão pela comprovada prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime continuado de falsificação de documento praticada por funcionário, p. e p. pelos art.os 244.o, n.o 1, alínea b), e 246.o, n.o 1, do CP, veio a Digna Delegada do Procurador junto desse Tribunal sentenciador recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), alegando que deveria o arguido ser condenado no referido crime de burla em pena de prisão não inferior a um ano e três meses (porquanto a factualidade dada por provada por esse Tribunal recorrido já daria para se considerar existentes o emprego de astúcia e o prejuízo patrimonial efectivo como elementos constitutivos do tipo legal de burla descrito no art.o 211.o, n.o 1, do CP), e deveria ser aumentada a pena de prisão do aludido crime de falsificação para, pelo menos, dois anos de duração (já que a pena de um ano de prisão achada no aresto recorrido para este crime era demasiado leve), e, em cúmulo dessas duas penas de prisão com a pena de nove meses de prisão já aplicada no mesmo aresto recorrido a um outro crime consumado continuado de burla do arguido, deveria o arguido passar a ser condenado em pena única de prisão não inferior a três anos de prisão (cfr. em detalhes, o teor da motivação do recurso apresentada a fls. 1004 a 1009 dos presentes autos correspondentes).
Ao recurso, respondeu o arguido (a fls. 1015 a 1021) no sentido de manutenção do julgado.
Subidos os autos, opinou a Digna Procuradora-Adjunta (a fls. 1038 a 1040v), no sentido de não provimento do recurso na parte relativa à pretendida condenação do crime de burla (de montantes remuneratórios do trabalho) (por entender inexistir efectivamente o emprego de astúcia pelo arguido contra os SSM), e do provimento, já, do recurso no tocante à agravação da pena do crime de falsificação de documento por funcionário, com consequente feitura necessária do novo cúmulo jurídico das penas.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte:
1. O acórdão ora recorrido consta de fls. 942 a 997v, cujo teor integral, em português, se dá por aqui integralmente reproduzido.
2. A acusação então deduzida pelo Ministério Público contra o arguido consta, na sua versão original em chinês, de fls. 592 a 601v, cujo teor se dá por aqui inteiramente reproduzido.
3. O arguido foi inicialmente acusado pela prática, em autoria material, na forma consumada, e continuada, de:
– um crime de abandono de funções, p. e p. pelo art.o 350.o do CP (crime este do qual acabou o arguido por ser absolvido no acórdão recorrido);
– dois crimes de uso de documento de identificação alheio, p. e p. pelos art.os 251.o, n.o 1, e 243.o, alínea c), do CP (crimes estes dos quais acabou o arguido por ser absolvido no acórdão recorrido);
– um crime de falsificação de documento por funcionário (concretamente, por falsificação do conteúdo de diversas folhas de ponto do trabalho), p. e p. pelos art.os 244.o, n.o 1, alínea b), e 246.o, n.o 1, do CP (crime este pelo qual acabou o arguido por ser condenado em um ano de prisão no acórdão recorrido);
– de dois crimes de burla simples (concretamente, por burla de medicamentos aos SSM no valor total de MOP138.609,54), p. e p. pelo art.o 211.o, n.o 1, do CP (crimes estes que acabaram por ser provados e punidos, mas a título de um só crime consumado continuado de burla simples, através da imposição, no acórdão recorrido, de nove meses de prisão ao arguido);
– e de um crime de burla simples (concretamente, por burla de montantes remuneratórios do trabalho aos SSM no valor total de MOP93.488,00), p. e p. pelo art.o 211.o, n.o 1, do CP (crime este do qual acabou o arguido por ser absolvido no acórdão recorrido).
4. No acórdão recorrido, o arguido ficou finalmente condenado em um ano de seis meses de prisão única, suspensa na sua execução por dois anos, na condição de pagar, no prazo de trinta dias, a indemnização cível de MOP232.097,54 (com juros legais desde a data do acórdão recorrido até integral e efectivo pagamento).
5. A matéria fáctica alegada nos art.os 90.o e 108.o da acusação pública no tocante ao montante total de MOP93.488,00 de prejuízo causado pela conduta do arguido (relativamente a folhas de ponto do trabalho) aos SSM já ficou materialmente descrita como provada no facto provado 100.o, na página 81 do acórdão recorrido (a fl. 982).
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cabe notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver apenas as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
É nesses parâmetros que vai ser decidida a presente lide recursória.
A Digna Delegada do Procurador insurgiu-se primeiro contra a decisão absolutória do crime consumado continuado de burla (dos montantes remuneratórios do trabalho) do art.o 211.o, n.o 1, do CP então acusado ao arguido.
Observa-se, desde já, que a matéria fáctica então alegada nos art.os 90.o e 108.o da acusação no tocante ao montante total de MOP93.488,00 de prejuízo causado aos SSM já ficou materialmente descrita como provada no facto provado 100.o do texto do acórdão recorrido.
Assim sendo, ante a matéria de facto já dada por assente no acórdão recorrido (e mormente descrita nos factos 4 a 87 e 100), deve proceder também o crime consumado continuado de burla simples então acusado ao arguido por causa do dito montante total de MOP93.488,00. Não se concorda, pois, com o Tribunal recorrido segundo o qual não se verificou, no caso, o emprego de astúcia por parte do arguido na obtenção desse montante total remuneratório.
É que o facto provado de o arguido ter falsificado o teor de diversas folhas de ponto do trabalho já representou o emprego, por ele, de astúcia sobre os SSM como sua entidade patronal: se ele não tivesse falsificado o teor das folhas de ponto em causa, essa entidade patronal teria descoberto logo a realidade de ele não ter estado no serviço e como tal teria determinado o desconto remuneratório correspondente aos dias de falta injustificada dele ao serviço, em procedimento próprio e momento oportuno.
Quanto ao efectivo prejuízo patrimonial como um dos elementos constitutivos do tipo legal do crime de burla, ficou o mesmo prejuízo efectivo já também provado em primeira instância (cfr. o teor do facto provado 100.o descrito no acórdão recorrido), no valor total de MOP93.488 (sendo certo que o dia de salário mais elevado em causa e então não descontado ao arguido foi de MOP1.455,40).
É, assim, de passar a condenar o arguido também como autor material de um crime consumado continuado de burla do art.o 211.o, n.o 1, do CP (relativamente aos referidos montantes remuneratórios), nos termos inicialmente acusados.
Por outra banda, procede também o pedido de agravação da pena do crime consumado continuado do arguido de falsificação de documento, porquanto a punição deste crime continuado tem que seguir a regra especial do art.o 73.o do CP, à luz da qual a moldura penal aplicável ao crime continuado é a moldura penal aplicável “à conduta mais grave que integra a continuação”, o que não significa, obviamente, que as circunstâncias fácticas já provadas relativas a outras condutas (menos graves) que integram a continuação não possam ser consideradas a título de circunstâncias agravantes (nos termos do art.o 65.o, n.o 2, do CP) em sede da medida concreta da pena dentro daquela moldura penal aplicável. Por aí fica demonstrado, logicamente, que o crime continuado do arguido de falsificação de documento por funcionário nunca poderia ser punido somente com um ano de prisão (um ano de prisão esse que é o limite mínimo da moldura penal aplicável a este crime nos termos do art.o 246.o, n.o 1, do CP).
Agora uma vez por todas em questão da medida da pena:
O crime consumado continuado de falsificação de documento por funcionário do art.o 246.o, n.o 1, do CP é punível com pena de prisão de um a cinco anos.
O crime consumado continuado de burla simples do art.o 211.o, n.o 1, do CP é punível com pena de prisão até três anos (nota-se que não se pode optar pela aplicação da pena de multa, devido às elevadas exigências da prevenção geral deste tipo de conduta delitual praticada pelo arguido – cfr. o critério material do art.o 64.o do CP na questão da escolha da espécie da pena).
Assim, ponderando todas as circunstâncias fácticas já apuradas em primeira instância com pertinência à medida concreta das penas aos padrões vertidos nos art.os 40.o, n.os 1 e 2, 65.o, n.os 1 e 2, e 71.o, n.os 1 e 2, do CP, com consideração também das elevadas exigências da prevenção geral dos crimes praticados pelo arguido, há que passar a condenar o arguido em:
– dois anos de prisão pela autoria material de um crime consumado continuado de falsificação de documento por funcionário;
– nove meses de prisão pela autoria material de um crime consumado continuado de burla simples (relativamente aos montantes remuneratórios do trabalho);
– e finalmente, em cúmulo jurídico (destas duas penas de prisão com a pena de nove meses de prisão já aplicada no acórdão recorrido ao crime consumado continuado de burla simples praticado pelo arguido relativamente a medicamentos), em dois anos e seis meses de prisão, suspensa na sua execução (nos termos dos art.os 48.o, n.os 1 e 5, e 49.o, n.o 1, alínea a), do CP) por quatro anos, sob condição de o arguido pagar aos SSM, dentro de trinta dias, a quantia indemnizatória de MOP232.097,54 (com juros legais contados a partir da data do acórdão recorrido até integral e efectivo pagamento).
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar provido o pedido formulado no recurso do Ministério Público, passando a condenar o arguido em:
– dois anos de prisão pela autoria material de um crime consumado continuado de falsificação de documento por funcionário p. e p. sobretudo pelo art.o 246.o, n.o 1, do Código Penal;
– nove meses de prisão pela autoria material de um crime consumado continuado de burla simples (relativamente aos montantes remuneratórios do trabalho) do art.o 211.o, n.o 1, do Código Penal;
– e, em cúmulo jurídico destas duas penas de prisão com a pena de nove meses de prisão aplicada no acórdão recorrido ao crime consumado continuado de burla simples relativamente a medicamentos), finalmente em dois anos e seis meses de prisão, suspensa na sua execução por quatro anos, sob condição do pagamento aos Serviços de Saúde de Macau, dentro de trinta dias, da quantia indemnizatória de MOP232.097,54 (com juros legais contados a partir da data do acórdão recorrido até integral e efectivo pagamento).
Custas do recurso pelo arguido, com seis UC de taxa de justiça.
Macau, 26 de Julho de 2018.
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Chan Kuong Seng
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Chou Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
(Vencido por entender que por ser o crime de
falsificação de documento crime instrumental
de crime da burla e em do concurso aparente.)
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