Proc. nº 499/2018
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 19 de Julho de 2018
Descritores:
- Processo de jurisdição voluntária
- Inibição do exercício do poder paternal
SUMÁRIO:
I - No âmbito de um processo de jurisdição voluntária, como é o caso da inibição do exercício do poder paternal (arts. 1769º do CC e 95º, nº1, al. m) e 100º do DL nº 65/99/M), o tribunal tudo deve fazer para proteger os interesses relevantes em causa, que são os dos menores, sem obediência a critérios de legalidade estrita, e procurando para cada caso a solução mais conveniente e oportuna (artr. 1208º, do CPC).
II - Se, independentemente do que tiver ocorrido no passado, reportado ao momento do nascimento do menor, a mãe se arrependeu, mostra afeição, carinho e amor por ele, pretende cuidar dele, e se esse afecto é recíproco, não há razões para lhe retirar o exercício do poder paternal.
Proc. nº 499/2018
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM
I – Relatório
O digno Magistrado do Ministério Público junto do TJB, em favor e em representação da menor B, nascida em Macau no dia XX/XX/20XX, requereu a inibição do exercício do poder paternal de sua mãe C, de nacionalidade filipina, nascida em X/XX/19XX, titular do passaporte das Filipinas nº EC39XXXXX.
*
Por sentença de 9/04/2018 foi a acção julgada improcedente e autorizada a mãe a levar a filha para sua terra natal a fim de cuidar dela.
*
O digo Magistrado do MP interpôs recurso dessa sentença, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
“- Ao absolver a ré C, do pedido de inibição do exercício do poder paternal, o Tribunal violou o disposto no artº 578º do CPC.
- Ao decidir a entrega da menor B à ré, o tribunal conheceu de questões de que não podia ter conhecido.
- Porque apesar de se tratar de um processo de jurisdição voluntária, o Tribunal (cujus poderes são mais amplos na possibilidade de recolha de provas) foi muito para além do pedido, violando assim, o disposto no artº 571º, nº 1, d) do CPC.
- Inquinando a decisão nesta parte, de nulidade que aqui se invoca.
Motivos por que a douta sentença deverá ser revogada e substituída por outra que decrete a inibição do exercício do poder paternal de C, e sobretudo declare nula e de nenhum efeito a decisão de entregar a menor B à sua mãe.”
**
O mesmo Magistrado do Ministério Público requereu ainda, ao abrigo do art.º 56.º n.º 2 alínea 1) da Lei de Bases da Organização Judiciária, art.º 67.º n.º 1 alínea a), art.º 68.º alínea f), art.º 74.º, art.º 76.º n.º 2 e art.º 93.º do Decreto-Lei n.º 65/99/M de 25 de Outubro (Regime Educativo e de Protecção Social de Jurisdição de Menores), em conjugação com os art.ºs 1772.º e 1773.º do Código Civil, a aplicação de um medida comum do regime de protecção social - confiança a instituição da referida menor B.
*
Por despacho de 17/04/2018 foi julgada extinta a instância deste outro processo com fundamento em inutilidade superveniente da lide.
*
O digno Magistrado do MP recorreu dessa decisão, tendo concluído as suas alegações da seguinte forma:
“1 - A menor B encontra-se numa situação de perigo não iminente;
2 - Justificativa de aplicação da medida peticionada pelo Ministério Público;
3 - A implementação da medida cautelar de confiança ao lar está ferida de ilegalidade porque não se verificam nenhum dos seus pressupostos;
4 - Tal medida tem carácter provisório e destina-se a assegurar a execução da decisão final;
5 - Não tendo a virtualidade de arquivar o processo por inutilidade superveniente da lide;
6 - Inutilidade essa que não ocorreu, sendo pelo contrário, premente a aplicação da referida medida;
7 - Os autos deverão prosseguir com a realização das diligências oficiosas ou a requerimento que permitam a prolação de uma decisão final que defenda efectivamente os interesses da menor.
Nesta conformidade, revogando a douta sentença e determinando a sua substituição por outra determine o prosseguimento dos autos, V. Exas farão a elementar JUSTIÇA”
*
Cumpre decidir.
*
II – Os Factos
Os autos têm por assente a seguinte factualidade:
1) A menor B nasceu no dia XX/XX/20XX. (Cfr. Fls. 4 dos autos n.º FM1-17-0091-MPS-A)
2) Sendo filha da Ré e de pai incógnito. (Cfr. Fls. 4 dos autos n.º FM1-17-0091-MPS-A)
3) A Ré foi julgada em Macau e condenada de pena de 2 anos e 9 meses de prisão, pela prática de um crime de abandono, p. e p. no art.º 135.º n.º 1 e 2, CPM. (Cfr. Fls. 4 a 10 dos presentes autos)
4) A Ré engravidou em 2015.
5) No dia XX/XX/20XX, por volta de 00:30, quando entrou em trabalho de parto, em vez de se dirigir ao Hospital de Macau para ser assistida, manteve-se, só, na casa da amiga da sua patroa sita na Rua ......, n.º ..., Edf. ......, ...-..., Taipa.
6) Mais, propriamente na casa de banho do referido apartamento, onde deu à luz a menor B.
7) Durante os primeiros 30 minutos após o parto, a Ré manteve-se deitada no chão, a recuperar do parto.
8) Seguidamente, e embora a filha tivesse sinais de vida, embrulhou-a numa toalha, sem a ter limpado, nem retirado o cordão umbilical e os vestígios da placenta.
9) Levando-a para a zona dos contadores de água do prédio, onde colocou a recém-nascida no caixote do lixo, tapando-o de seguida.
10) Porque o seu choro despertou a atenção da empregada de limpeza do prédio e a vizinha D, retiraram-na do caixote do lixo e a entregaram às autoridades.
11) A Ré violou o seu dever de guardar e assistir.
12) Colocando a filha recém-nascida numa situação de total abandono.
13) Não chamou os serviços dos tratamentos médicos de que carecia após parto.
14) Colocando-a em perigo a vida.
15) Revelou total desinteresse pela situação da filha, não se preocupando com o seu bem-estar nem com a sua vida.
16) A qual somente está viva devido à intervenção de terceiros.
17) A Ré tem um outro filho de 5 anos nas Filipinas.
18) Pelo que sabia perfeitamente quais os cuidados de que carece um recém-nascido.
*
Além disso, também dão-se por provados os seguintes factos relevantes:
19) A mãe da menor é residente das Filipinas onde era empregada doméstica e, no momento da prática do crime, encontrava-se a visitar Macau com a sua empregadora.
20) Na altura, a mãe da menor tinha 23 anos, e como receava que a empregadora a fosse despedir se soubesse da gravidez, não disse ao empregador ou familiares deste, por todo o tempo, que estava grávida.
21) O Instituto de Acção Social alojou a menor no lar de infância e juventude de Cradle of Hope deste 4 de Maio de 2016 até hoje.
22) Em 18 de Dezembro de 2017 foi concedida à mãe da menor a liberdade condicional, e agora encontra-se alojada pelo Instituto de Acção Social em Casa Corcel, subordinado de Caritas Macau, até que seja repatriada às Filipinas.
23) A mãe não violou as regras da prisão no período de cumprimento da pena, o seu comportamento prisional foi classificado de bom.
24) A mãe espera levar a menor para as Filipinas, declara que não vai renunciar à menor, nem concorda com a organização de adopção desta, compromete-se a assumir as responsabilidades de alimentar a menor e reparar a lesão causada.
25) Antes de o irmão da menor completar 3 anos, era a mãe (requerida) quem tomava conta dele, depois a avó materna passou a cuidar deste, e actualmente encontra-se a ser cuidado pelo pai.
26) Antes de entrar na prisão, a mãe tomava conta dos 2 filhos do empregador e fez tarefas domésticas na Manila das Filipinas durante 4 anos, até ao parto em Macau.
27) As despesas do irmão foram geralmente suportadas pelo rendimento da mãe (requerida) no trabalho de empregada doméstica, mas o pai também contribuiu com dinheiro para o efeito.
28) A mãe declara que actualmente a situação económica da família não enfrenta dificuldade, agora as despesas da família são pagas pelas 2 tias e o tio da menor, as tias trabalham respectivamente na Singapura e no Coreia do Sul, não prestam apoio económico à avó materna, quando a menor tiver voltado à terra natal, os familiares vão prestar ajuda económica se for necessário.
29) O Consulado das Filipinas solicitou ao órgão de assistência social da terra natal da mãe para inspeccionar a situação da família da mãe e entregar relatório, e agora está a pedir o passaporte provisório da menor para lhe permitir voltar às Filipinas.
30) A menor em causa tem 2 anos, é animada e adorável, tem boa capacidade de estudar, está adaptada à vida no lar, as refeições são bem tomadas e dorme bem, os descansos são regulares e a saúde é boa.
31) A menor pode expressar as suas necessidades e tem personalidade independente, como comer por ela própria, vestir-se e desvestir-se e dizer que quer ir à casa de banho, etc ..
32) Em Fevereiro de 2017, o pessoal do lar de Cradle of Hope começou a levar a menor a ir visitar a mãe na prisão de Coloane. A menor e a mãe encontravam-se 1 vez por mês até que foi concedida à mãe a liberdade condicional em Dezembro de 2017. Durante esse período não se descobriu que a mãe lesou de novo a menor e nas visitas elas estabeleceram boa relação de comunicação.
33) Depois da 4ª a 5ª visitas, a menor e a mãe tinham mais contactos e interacções, a menor até foi aproximar-se à mãe. Nas visitas seguintes, a menor deixou a mãe abraçá-la e jogou os brinquedos com esta na sala de visita, estando relaxada.
34) Desde 5 de Janeiro de 2018, a mãe foi ao lar visitar a menor a cada dois dias em coordenação com o lar.
35) A menor chamava “mami” ao ver a mãe, a menor manifestava-se sempre alegre e feliz, ia voluntariamente aproximar-se à mãe, geralmente, a mãe e a menor deram-se bem, a menor seguia o ensino da mãe, gostava de estar com ela, a mãe também acompanhou a menor para participar em actividades realizadas pelo lar, sempre acompanhando e tomando cuidado da menor.
36) A mãe já contactou com os familiares, após discussão, vai levar a menor a voltar às Filipinas e morar em casa da avó materna, ficar em casa para tomar cuidado da menor e só arranjar emprego de novo quando a menor complete 3 anos e frequente a escola.
37) Os assistentes social de Casa Corcel declaram que a mãe se aloja em Casa Corcel após a concessão de liberdade condicional há um período, durante o qual cumpriu as regras da instituição, comportou-se e deu-se bem com os coabitantes e pessoal da instituição, participou em actividades de feriados, é estável a emoção pessoal e a situação de vida.
38) A avó materna disse que a mãe seguiu sempre as regras desde a infância, não tinha conduta ou costume ruins, sendo trabalhadora e calorosa para os familiares.
39) A vizinha da família da mãe, ou seja esposa do pastor do irmão da menor, disse que viu o crescimento dela, sendo esperta e tendo piedade filial, ela não tinha conduta ruína.
40) O ex-empregador da mãe indicou que, a mãe foi trabalhadora, tinha experiência em cuidar de crianças e foi dedicada.
41) O ex-empregador da mãe declarou que iria ajudar a mãe quanto mais possível em caso de necessidade.
42) A técnica superior na área psicológica do IAS proferiu o seguinte parecer: “a mãe está muito arrependida pela sua conduta (de abandono da menor), sempre que se mencionasse o parto da menor e a conduta da mãe, choraria imediatamente esta. Está também preocupada com a falta de prolação de sentença até hoje, mas responde positivamente ao apoio da família e está disposta a assumir responsabilidades e tomar cuidado da menor. Quando estava com a menor, deu-se bem com ela, mostrando-se naturalmente a alegria e a maternidade.”
43) A avó materna tem 62 anos, dedica-se ao trabalho de agricultura nas Filipinas, declara que concorda com o plano de levar a menor a voltar às Filipinas e viver com os familiares, vai ajudar a mãe a cuidar bem da menor, os familiares estão a esperar o regresso delas.
44) A avó materna diz ainda que não sabia porque a mãe pariu e abandonou a menor em Macau, se soubesse, impediria absolutamente a mãe de praticar essa conduta temerária de abandono da menor, nem permitiria à mãe lesar a menor no futuro.
45) A esposa do pastor do irmão da menor também está preocupada com a situação da mãe e menor, disse que iria ajudá-las se necessário e apoiaria o regresso destas.
46) De acordo com a avaliação e a proposta da informação de investigação elaborada pelo órgão de benefícios sociais das Filipinas, “se a mãe possa levar a menor a voltar às Filipinas, a avó materna e os familiares comprometem-se a ajudar a mãe a cuidar da menor, que se sentirá do amor incondicional da família.” O Governo local não vai permitir tratamento inadequado para crianças, está sempre disposto a prestar auxílio.
47) No relatório social, a funcionária sugere a consideração em deixar a mãe levar a menor para ter cuidado na sua terra; ao mesmo, oficiar ao Consulado das Filipinas na RAEM, pedindo a entidade de Acção Social em causa das Filipinas o acompanhamento da situação da vida e do cuidado da menor, indo prestar apoios quando for necessário”.
***
III – O Direito
1 – Introdução
O “processo principal” foi, no caso, aquele em que o Ministério Público, no quadro de um “regime de protecção social da jurisdição de menores”, requereu a aplicação de uma “providência geral”, traduzida na medida de confiança a instituição da menor B, filha de C.
Por razões de cronologia, porque a sentença proferida nos autos de inibição do poder paternal foi proferida (9/04/2018) antes da decisão sobre a providência geral (17/04/2018), mas também de lógica, visto que a providência talvez agora só faça sentido, caso a inibição venha a ser decretada, por esta pretensão começaremos a nossa avaliação recursória.
*
2 – O caso
C, solteira, de 26 anos de idade (nasceu em X/XX/19XX), cidadã filipina e residente naquele país, onde é empregada doméstica, era e é mãe de um filho, também ali residente, neste momento com 7 anos. Estando em visita a Macau, com a sua empregadora, encontrava-se alojada em casa de uma pessoa amiga desta na Taipa (Macau).
Era desconhecida a sua gravidez.
Na noite de XX/XX/20XX, foi à casa de banho dessa residência e sozinha deu à luz a menor. Cortando o cordão umbilical da filha, e alegando que a não ouvia gritar, e pensando-a morta, embrulhou o feto e foi colocá-lo no caixote do lixo do prédio.
Posteriormente, uma empregada de limpeza ouviu choro vindo do local e, deparando-se com o que via, deu conhecimento à Polícia. A menor foi conduzida ao Hospital Conde S. Januário, vindo a sobreviver.
É desconhecida a identidade do pai.
A mãe, aqui requerida, ficou em prisão preventiva, vindo posteriormente a ser julgada e condenada no âmbito do Processo nº CPE-16-0263-PCC na pena de 2 anos e 9 meses de prisão pela prática de crime p. e p. pelo art. 135º, nºs 1 e 2, do CPM.
Presentemente, encontra-se em liberdade condicional.
Este é o essencial grupo de factos concernente ao ilícito cometido pela requerida.
É com base neles que o Ministério Público pede a inibição do poder paternal, nos termos do art. 1760º do CC.
*
2 – Da inibição do poder paternal
2.1 – Da arguida nulidade de sentença
Começa o digno recorrente por advogar que a sentença foi além do que lhe foi pedido, que conheceu de matéria de que não podia conhecer, cometendo, por isso, a nulidade de que trata ao art. 571º, nº1, al. d), do CPC.
Com o devido respeito, não existe nulidade nenhuma.
Na verdade, o que o MP contesta é a entrega da menor à mãe, quando o que estava em causa, precisamente, era a inibição do poder paternal desta sobre aquela.
Ora, em primeiro lugar, se a mãe nunca anteriormente tinha chegado a perder o poder paternal sobre a filha, e se a sentença proferida não lho retirou, então a entrega é uma consequência lógica e concreta das virtudes desse poder, abstracta e legalmente consignado.
Em segundo lugar, se estamos no âmbito de um processo de jurisdição voluntária (arts. 1769º do CC e 95º, nº1, al. m) e 100º do DL nº 65/99/M), então o que cremos é que o tribunal tudo deve fazer para proteger os interesses relevantes que estão em causa, que são os da menor, sem obediência a critérios de legalidade estrita, e procurando em cada caso a solução mais conveniente e oportuna (art. 1208º, do CPC).
Somos, pois, a concluir pela inaplicabilidade do preceito do CPC invocado, o que significa que o princípio do dispositivo não tem aqui o seu préstimo habitual e que a invocação da nulidade por excesso de pronúncia não procede.
*
2.2 – Da inibição
O artigo citado do Código Civil prevê a inibição “quando qualquer dos pais infrinja culposamente os deveres para com os filhos, com grave prejuízo destes, ou quando, por inexperiência, enfermidade, ausência ou outras razões, se não mostre em condições de cumprir aqueles deveres” (nº1)
É verdade que a atitude da requerida não se pode de maneira nenhuma aplaudir e é grave. Um filho que acaba de nascer merece, em mais do que nenhum outro momento, o maior dos amparos, pela fragilidade do novo ser que, de repente, sai de um suave mundo protegido pelo morno líquido amniótico e enfrenta um mundo hostil em que tudo é novo para si, até o respirar, que rapidamente tem que aprender. Alguns bebés não choram imediatamente e é aí que, por vezes, se torna necessária a presença dos obstetras para, se necessário, fazer a reanimação neonatal.
Foi alegadamente por isso, por esse silêncio e ausência de choro, segundo o relatório da assistente social junto aos autos, que a mãe da bebé pensou que esta não estaria viva, razão pela qual a embrulhou e foi depositar no caixote do lixo.
Bem. Esta tese para justificar o acto não terá sido aceite pelo tribunal do julgamento do ilícito criminal que lhe foi imputado e, a bem dizer, nem é muito plausível, uma vez que também existem elementos que sugerem que o bebé dava sinais de estar a respirar.
Mesmo que pensasse que estava com problemas, a mãe deveria ter dado conta do facto às pessoas ali próximas, a fim de tentar salvar a filha em cuidado urgentes que fosse necessário prestar no hospital. E isso não fez. Agiu mal, sim, e pelo facto foi punida criminalmente.
Mas, as palavras tão fortes utilizadas pelo MP são chocantes e cruas e dificilmente se aceitam. De onde podemos nós inferir que esta mãe quis “matar” a menor? Se a quisesse matar, ser-lhe-ia muito fácil, através de um estrangulamento ou afogamento, tanto mais que nem sequer gritava (ao que parece) no momento em que nasceu. Depois de a estrangular ou afogar, não precisaria sequer de sair da casa de banho onde se encontrava para se desfazer do corpo, por muito que nos custe dizê-lo. Mas, não, limitou-se a embrulhá-la e colocá-la no reservatório para o lixo (talvez essa tivesse sido uma forma, consciente ou subconsciente, de tentar que ela viesse a ser encontrada viva por outrem…, não sabemos). Aliás, é bom lembrar que a requerida foi punida, simplesmente, pelo crime de abandono, p. e p. pelo art. 135º, nºs 1 e 2, do CPM.
De toda a maneira, foi condenável o que ela fez, à luz de um critério objectivo, de senso comum e de ordem humanitária. Sem dúvida!
E mesmo que se admita que o tenha feito para encobrir uma gravidez que ali chegava ao seu termo ou, sabe-se lá, por outras quaisquer razões (por exemplo, porque a sua situação económica não era boa, porque já tinha um filho, por vergonha, por não ser casada, etc., etc., etc), não cremos que nada disso justificasse, de todo, o seu comportamento omissivo de protecção de que a sua filha carecia no momento. Ponto final quanto a isto!
Mas, assim como os crimes se punem, assim também na vida e no dia-a-dia das pessoas (de todas, porque todas erram, não apenas as mais fracas e humildes), os pecados se remitem e as culpas se expiam. A sociedade, através dos seus mecanismos, pune criminalmente quem prevarica contra as regras, quem age contra o socialmente lícito em cada momento. Quanto a isso, a requerida pagou pelo que fez. E se a memória lhe não faltar jamais, haverá de ser em cada dia da sua vida, que desejamos longa, que a expiação da sua culpa terá concretização prática pelo amor que há-de dedicar à sua filha, até dela obter, tácita ou expressamente, o perdão que merecer.
A este respeito, estamos convencidos que já o está a merecer. Basta ler o relatório social junto aos autos, onde as referências à sua atitude para com a filha são vastamente elogiosas, depois que se encontra em liberdade condicional, e nos momentos em que a visita de dois em dois dias no lar em que a menor se encontra.
São inúmeras as passagens desse relatório de onde se pode extrair uma boa relação entre mãe e filha: a criança já sabe quem é a mãe, já brincam juntas, já interagem, já há afecto recíproco e amor. Perante um quadro destes, não se pode pedir aos juízes deste tribunal que não tenham tais factores em consideração, porque os magistrados, a montante do múnus que exercem, são seres humanos que nem sempre podem esconder o seu sentimento nos casos em que os critérios de justiça mais se impõem, tal como sucede nos processos de jurisdição voluntária em que estão envolvidos os superiores interesses das crianças.
A mãe, além de mostrar grande arrependimento (e ninguém da Acção Social se atreveu a dizer que esse arrependimento não é sincero), chorava quando se falava da sua conduta por ocasião do parto da menor, afirma que não mais abandonará a filha, que quer cuidar bem dela e que, para isso, não quererá empregar-se até que a filha atinja os 3 anos de idade, que contará com o apoio da avó (sua mãe) e de duas tias que se dispõem a ajudá-la.
Ir contra todos estes elementos a fim de inibir o poder paternal desta mãe sobre a sua filha, por causa de um passado que não volta mais, sem que qualquer juízo de prognose sobre o futuro que enegreça todas as esperanças, face ao presente que já vamos conhecendo nas boas relações entre mãe e filha, e tendo em conta as garantias e promessas de que elas continuarão a manter-se no futuro, seria atentar contra os interesses da menor. E isso não o pode levianamente ratificar este tribunal.
Significa isto que o recurso não poderá obter provimento e que a sentença se deve manter.
*
3 – Da medida de confiança a instituição social
Tinha o digno Magistrado do MP requerido a aplicação de uma medida comum do regime de protecção social, concretamente a confiança da menor a uma instituição, com fundamento em abandono da filha menor no momento do nascimento por parte da mãe.
A decisão da 1ª instância teve em linha de conta todo o actual circunstancialismo actualístico e prognóstico em redor deste caso, nomeadamente:
- A promessa de que a mãe iria tomar conta da menor após regressar às Filipinas (e ao que parece isso só ocorrerá com o trânsito das duas decisões que estão em análise nos presentes recursos);
- O facto de a segurança, saúde, formação moral e educação da menor não estarem em risco;
- A circunstância de o tribunal da inibição ter, além de não inibir o poder paternal, permitido deixar a mãe levar a menor para a sua terra natal para cuidar dela ali.
Ou seja, o tribunal da protecção entendeu que não havia motivos para a aplicação da medida requerida, não só porque não fora a mãe inibida do exercício do seu poder paternal, como ainda pelo facto de, em consequência do recurso interposto dessa sentença, e como medida cautelar, ter sido a menor confiada provisoriamente ao lar (até ao seu trânsito), onde a mãe a pode ir visitar sem qualquer restrição.
Neste sentido, não cremos que a decisão tenha andado mal na sua dispositividade. Quer dizer, se esta mãe não perdeu o poder paternal sobre a filha e se não existem motivos para uma protecção institucional da menina, não haveria razão para a tomada da decisão. Cremos, pois, que de um certo ponto de vista, existe, de facto, um motivo para julgar extinta a instância por inutilidade superveniente da lide.
E, já agora, “ex abundanti” acrescentamos que nunca, de qualquer modo, entenderíamos que o pedido pudesse proceder nos termos pretendidos. É que afectar a criança ao cuidado de uma instituição e retirá-la de um amor maternal, mesmo que tardiamente descoberto e nas condições que se conhecem, depois dos laços aparentemente já criados entre ambas, seria, isso sim, matar de vez qualquer chance de futuro feliz para a menor ao lado da sua mãe e no seio dos seus familiares. É essa chance de felicidade que desejamos ardentemente e que este tribunal, dentro do que lhe é possível, pretende assegurar.
***
IV – Decidindo
Face ao exposto, acordam em negar provimento aos recursos, mantendo as decisões recorridas.
Sem custas.
T.S.I., 19 de Julho de 2018
Relator José Cândido de Pinho
Primeiro Juiz-Adjunto Tong Hio Fong
Segundo Juiz-Adjunto Lai Kin Hong
499/2018 20