Reclamação nº 5/2018/R
I – Relatório
A, arguido constituído nos autos de inquérito nº 1023/2018, não se conformando com o despacho do Exmº Juiz de Instrução que lhe aplicou a medida de coacção de proibição de contactos com o ofendido que é o seu cônjuge, e com os seus dois filhos menores, veio interpor recurso ordinário para o Tribunal de Segunda Instância, mediante o requerimento motivado que deu entrada na secretaria do Juízo de Instrução Criminal em 09ABR2018.
Por despacho da Exmª Juiz de Instrução, autora do despacho recorrido, o recurso não foi admitido nos termos seguintes:
根據卷宗資料,上訴人A於2018年3月8日已獲親身通知卷宗第152頁及背頁對其採用禁止接觸被害人D及兩名未成年兒子B及C的強制措施的決定(見卷宗第153頁)。同日,A向本法庭表示就上述實施強制措施的批示提起上訴並要求指派辯護人。為此,本法庭於2018年3月9日作出批示,指派E實習律師為其辯護人以便為其提交上訴之理由闡述。E實習律師於2018年4月6日透過傳真方式向本法庭提交上訴之理由闡述,並於2018年4月9日提交相關正本。
根據澳門《刑事訴訟法典》第401條的規定第1款a) 項的規定,提起上訴的期間為二十日,自裁判的通知之日起計。上訴人A於2018年3月8日接獲對其採用強制措施的批示的通知,有關提起上訴的期間應自2018年3月8日起計。
關於作出行為的時間及訴訟行為期間之計算,澳門《刑事訴訟法典》第93條及第94條作出了相關的規定。原則上,訴訟行為須在工作日及司法部門辦公時間內,且在非法院假期期間作出,但有例外的情況。其中,澳門《刑事訴訟法典》第93條第2款a) 項規定,與被拘留或拘禁之嫌犯有關之訴訟行為,又或對保障人身自由屬必要之訴訟行為,不適用第93條第1款的規定。
Manuel Leal-Henriques在《ANOTAÇÃO E COMENTÁRIO AO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL DE MACAU》第一冊對澳門《刑事訴訟法典》第93條的註釋第5點提到,對保障人身自由屬必要之訴訟行為,舉例而言,是與強制措施或財產擔保措施有關的訴訟行為1。Paulo Pinto de Albuquerque在《COMENTÁRIO AO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL》對葡萄牙《刑事訴訟法典》第103條(就比較法而言,相對應於澳門《刑事訴訟法典》第93條)的註釋中亦指出對保障人身自由屬必要之訴訟行為包括關於任何強制措施或財產擔保措施的訴訟行為,這個第一款的例外情況是依法律操作(funciona ope legis)。2
澳門《刑事訴訟法典》第176條第1款規定:人之自由,僅得按具防範性質之訴訟程序上之要求,由法律規定之強制措施及財產擔保措施全部或部分限制之。本案中,上訴人A對採用禁止接觸的強制措施的批示提出上訴及提交上訴闡述理由的行為,目的在於廢止有關批示,從而解除有關限制,顯然屬於為保障人之自由屬必要之訴訟行為。根據澳門《刑事訴訟法典》第94條第2款的規定,有關期間在假期仍進行。
綜上所述,有關提起上訴及提交上訴闡述理由的期間自2018年3月8日起計,上訴人於2018年4月6日提交之上訴狀明顯屬逾時,故本法庭根據澳門《刑事訴訟法典》第93條第2款a) 項、第94條第2款、第401條第1款及第2款的規定,決定不受理A針對採用禁止接觸的強制措施的批示所提出之上訴。
通知上訴人,如不服本批示,其可根據澳門《刑事訴訟法典》第395條的規定,於接獲通知日起計二十日內向中級法院院長提出異議,異議的聲請須向本法庭辦事處提交。
通知及採取適當措施。
Notificado do despacho que não admitiu o recurso por ele interposto do despacho, vem, ao abrigo do disposto no artº 395º do CPP formular a presente reclamação dizendo que:
A, Arguido nos autos à margem referenciados e neles melhor identificado, notificado do despacho de fls. 178 a 179 dos autos proferido pela Mm.a Juíza do Juízo de Instrução Criminal que decidiu indeferir o recurso por si apresentado, por alegada extemporaneidade, vem, nos termos do disposto no artigo 395°, no. 1, do Código de Processo Penal (“CPP”) apresentar
RECLAMAÇÃO CONTRA DESPACHO QUE NÃO ADMITIU O RECURSO
o que faz nos termos e com os seguintes fundamentos:
I. Da tempestividade do recurso
1. Foram o Arguido e ora Reclamante notificados do despacho de fls. 178 a 179 dos autos que, invocando extemporaneidade, indeferiu o recurso da aplicação da medida de coacção por si interposto.
Segundo o despacho ora em reclamação, entende a Mma Juíza do Tribunal a quo, basicamente e em síntese, que, nos termos do artigo 401°, n.º 1, alínea a), conjugado com a alínea a) do n.º 2 do artigo 93°, ambos do CPP, o recurso, por ser um acto urgente, deveria ter sido interposto dentro de 20 dias seguidos a contar da notificação daquele despacho, isto é, sem interrupção nas férias judiciais que ocorreram entre 25 de Março e 2 de Abril inclusive, pelo que, tendo o mesmo sido apresentado apenas no dia 06/04/2018, via telecópia (em 09/04/2018 apresentou o respectivo original junto do Tribunal a quo), foi-o de forma extemporânea, razão pela qual não o admitiu.
2. Crê-se, porém, e salvo sempre o enorme e devido respeito que merecem todas as decisões judiciais, que não padece o recurso interposto pelo Reclamante de qualquer vício nem existe qualquer fundamento que obste à sua admissão, nomeadamente a alegada extemporaneidade, razão pela qual deveria ter sido admitido, conforme a seguir se expõe.
3. Para melhor esclarecimento dos actos processuais relevantes relativos à questão ora em crise nesta Reclamação, julga-se conveniente a seguinte exposição sequencial e sucinta dos actos processuais praticados com relevância para a questão em apreço:
a) Por carta com carimbo postal de 12/03/2018, o Defensor do Reclamante foi notificado do despacho que o nomeava como tal, para efeitos de recurso da decisão de fls. 126 a 127 dos autos, que decidiu aplicar ao Reclamante a medida de coacção de proibição de contactar a sua ex-mulher, D, e os seus 2 filhos menores, B e C, por existiram fortes indícios de o Reclamante ter cometido o crime de ameaça nos termos do artigo 147º do Código Penal de Macau;
b) Em 20/03/2018, o Defensor requereu a consulta dos autos junto do Ministério Público a fim de preparar o recurso, tendo, em 23/03/2018, sexta-feira, pelas 15:44, recebido, via telecópia, a notificação de que tinha sido deferido o seu requerimento de consulta dos autos;
c) Entre 25/03/2018 e 02/04/2018, inclusive, foi o período de férias judiciais;
d) Não obstante, em 26/03/2018, segunda-feira, o Defensor dirigiu-se ao Ministério Público para consultar os autos. Todavia, o funcionário de turno no Ministério Público recusou dar-lhe acesso aos autos, alegando que o processo não é urgente porque não havia arguido preso, não tendo, por isso o “carimbo vermelho”, únicos processos que são permitidos consultar durante as férias judiciais. Alegou ainda que não sabia onde estava o processo porque o funcionário responsável pelo mesmo estava de férias (ou melhor todos os funcionários na secção 8a estavam de férias). Assim, o funcionário de turno disse-lhe que só poderia consultar o processo após as férias judiciais, isto é, a partir do dia 3 de Abril;
f) Em 27/03/2018, terça-feira, o Defensor recebeu, via postal, o despacho original do deferimento do pedido de consulta os autos, tendo-se dirigido novamente, desse mesmo dia, ao Ministério Público a fim de consultar os autos, o que novamente lhe foi recusado pelos mesmos motivos acima referidos;
g) Assim, só conseguiu consultar os autos em 03/04/2018, terça-feira.
4. Resulta do supra exposto que nunca o processo no qual foi proferido o despacho objecto de recurso foi tratado ou visto como urgente.
5. No entanto, o Tribunal a quo decidiu não admitir o recurso, invocando como fundamento o seguinte: “(...) Manuel Leal-Henriques在《ANOTAÇÃO E COMENTÁRIO AO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL DE MACAU》第一冊對澳門《刑事訴訟法典》第93條的註釋第5點提到,對保障人身由自屬必要之訴訟行為,舉例而言,是與強制措施或財產擔保措施有關的訴訟行為。Paulo Pinto de Albuquerque 在《COMENTÁRIO AO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL》 對葡萄牙《刑事訴訟法典》第103條(就比較法而言,相對應於澳門《刑事訴訟法典》第93條)的註釋中亦指出對保障人身自由屬必要之訴訟行為包括關於任何強制措施或財產擔保措施的訴訟行為,這個第一款的例外情況是依法律操作(funciona ope legis)。(…)本案中,上訴人A對採用禁止接觸的強制措施的批示提出上訴及提交上訴闡述理由的行為,目的在於廢止有關批示,從而解除有關限制,顯然屬於為保障人之自由屬必要之訴訟行為。根據澳門《刑事訴訟法典》第94條第2款的規定,有關期間在假期仍進行。” (constante no despacho das fls. 178 verso dos autos).
6. Salvo o devido respeito, não se pode concordar com a interpretação da alínea a) do n.º 1 do artigo 93° do Código Penal (“CP”), vertida no despacho de que se recorreu para fundamentar a extemporaneidade do recurso, mormente no que concerne ao entendimento demasiado abrangente do que são “os actos processuais (...) indispensáveis à garantia da liberdade das pessoas”.
Senão vejamos.
7. Com efeito, com a expressão da alínea a) do n.º 2 do artigo 93° do CPP, “os actos processuais (...) indispensáveis à garantia da liberdade das pessoas;”, a lei utiliza um conceito indeterminado, deixando ao julgador a margem necessária para fixar em concreto e de acordo com as circunstâncias, quando é que se está perante um acto processual indispensável à garantia da liberdade das pessoas.
8. O Tribunal a quo, sustentando-se numa certa doutrina, entende que tal conceito indeterminado abrange o recurso interposto contra a aplicação de qualquer medida de coacção, pois, em tais casos, está sempre em causa a liberdade das pessoas.
9. Crê-se, porém, salvo o devido respeito, que não foi intenção do legislador consagrar que o recurso de qualquer medida de coacção tenha de ser tratado como um acto urgente, porque senão tê-lo-ia dito expressamente, como faz para as situações de arguido preso. Julga-se que a utilização do conceito aberto visou exactamente deixar ao julgador decidir, de acordo com as circunstâncias, as situações em que se está perante um “acto indispensável à liberdade das pessoas”, tendo como ponto de referência a situação máxima de limitação da liberdade que é a situação de prisão ou detenção.
10. Por outro lado, nos termos do n.º 1 do artigo 178º do CPP: “As medidas de coacção e de garantia patrimonial a aplicar em concreto devem ser adequadas às exigências cautelares que o caso requerer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas.”. Através do elemento literal, bem como do elemento teleológico pode-se concluir desta norma que existem diferentes graus de medidas de coacção em relação à sua gravidade da restrição da liberdade das pessoas.
“Entre as medidas de coacção admissíveis há como que uma hierarquia em razão da sua gravidade. aparecendo no topo aquela que atinge de forma mais gravosa a liberdade das pessoas que é a prisão preventiva. e no patamar mais baixo, o termo de identidade e residência que pouco afecta a liberdade do indivíduo. Em razão da intensidade da limitação da liberdade individual, gravidade que se afere em função da gravidade da pena previsivelmente aplicável ao arguido e que constitui pressuposto especial de cada uma das medidas de coacção.”(cfr. v.g., Germano Marques Da Silva in “Curso de Processo Penal”, Vol. II, em concreto, “Das Medidas de Coacção”, II cap., pág. 376) (sublinhados e realçados nossos).
11. Crê-se, pois, que é em função dessa hierarquia ou da intensidade da limitação do direito à liberdade, eventualmente conjugada com a circunstância do caso, é que se deve preencher em concreto o conceito utilizado na alínea a) do n.º 2 do artigo 93° do CPP, “os actos processuais (...) indispensáveis à garantia da liberdade das pessoas.
Assim, quando a lei fala em acto indispensável à liberdade, no seguimento da referência às situações relativas a arguidos detidos ou presos, pensa-se que tem em vista apenas as situações em que está em causa a liberdade no seu sentido estrito, isto é, que se contrapõe à prisão ou detenção, e não liberdade no sentido amplo do termo e que abrange todas as outras manifestações da liberdade individual. Ou seja, a norma tem em vista as situações em pode estar em causa a decretação ou manutenção de uma detenção ou medida privativa da liberdade.
De resto, o próprio Leal Henriques, autor citado no despacho, não obstante dar a ideia de que o recurso de qualquer medida de coacção deve ser entendido como um acto urgente, parece ser do entendimento que se defende supra, pois, afirma, referindo-se à segunda parte da alínea a) do n.º 2 do artigo 93° que:
“Na segunda alternativa, inscrita na alínea a) do nº 2, incluem-se os actos processuais indispensáveis a assegurar a liberdade das pessoas.
Aqui a situação já difere da anterior (referindo-se a situação referida na primeira parte da alínea, arguidos presos ou detidos), porquanto se torna necessário que o acto seja mesmo dirigido à garantia da liberdade das pessoas, o que pressupõe, obviamente, que a entidade competente decida, caso a caso, se se trata ou não de acto dessa natureza (v.g. a avaliação das condições de prestação de caução que substitua a prisão preventiva ou da libertação do arguido detido).” (Leal Henriques, Anotação e Comentário ao Código de Processo Penal de Macau, Vol. I, pág. 638).
Ou seja, também o autor citado no despacho parece entender que actos processuais indispensáveis a assegurar a liberdade das pessoas são apenas aqueles actos, incluindo medidas de coacção ou de garantia patrimonial, em que estejam em causa a liberdade no sentido estrito do termo, isto é a manutenção ou revogação de uma medida privativa de liberdade ou de uma detenção.
12. De resto, a ser correcto o entendimento vertido no despacho de que ora se reclama, o recurso de toda e qualquer sentença condenatória em processo penal, deveria ser urgente pois, de certa forma, qualquer sentença condenatória restringe ou afecta a liberdade no seu sentido amplo, designadamente as que condenam um indivíduo a uma pena suspensa, a uma prisão convertível em multa, a uma inibição qualquer, pois todas elas atingem a liberdade das pessoas no sentido lato do termo.
13. Assim, entende-se que, no caso concreto, em que apenas foi proibido o contacto do Reclamante com determinadas pessoas, embora a medida atinja o direito fundamental do reclamante a contactar quem entenda, e, assim, a sua liberdade no sentido lato, não é uma medida privativa da sua liberdade, no sentido estrito, não devendo, pois, ser considerado, um acto indispensável à liberdade das pessoas.
14. Resta ainda dizer, como resulta da exposição supra, que o Ministério Público nunca tratou processo do Reclamante como urgente, razão pela qual os seus funcionários não disponibilizaram o processo para consulta durante as férias judiciais.
15. Termos em que, atento o supra exposto e o disposto no artigo 395º do CPP, deve a presente reclamação ser julgada procedente, e, em consequência, revogar-se o despacho de fls. 178 a 179 ora reclamado, ordenando-se a admissão do recurso interposto pelo Reclamante nos termos por si requeridos em 06/04/2018.
II- Existência do justo impedimento quanto ao prazo para a interposição do recurso
16. Caso não seja aceite o entendimento supra-referido, ou seja, caso se entenda que o recurso deveria ter sido interposto até 28/03/2018, então desde já se invoca o justo impedimento devido a actuação dos funcionários de turno do Ministério Público que impediram o Defensor oficioso do Reclamante de aí consultar o processo em 26/03/2018 e 27/03/2018 a fim de preparar o recurso.
17. Ou seja, deve-se entender que houve justo impedimento, nos termos do artigo 94° do CPP, que remete para o artigo 96° do Código de Processo Civil ("CPC"), pois o Defensor do Reclamante não poderia preparar o recurso sem estar munido dos elementos que constavam dos autos e uma vez que lhe foi negado o acesso atempado aos mesmos.
18. Enfim, termos em que, atento o supra exposto, e o disposto conjugadamente nos artigos 94°, 395° do CPP e 96° do CPC, também deve a presente reclamação ser julgada procedente, e, em consequência, revogar-se o despacho de fls. 178 a 179 ora reclamado, ordenando-se a admissão do mesmo recurso interposto pelo Reclamante por existência do justo impedimento.
Nestes termos e nos demais de direito, requer-se a V. Exa. se digne julgar procedente a presente Reclamação e, em consequência, seja revogado o despacho de fls. 178 a 179, e ordenada a admissão do recurso do Reclamante interposto nestes autos em 04/06/2018, ou, se o Venerando do Juiz do Presidente não concordou, ainda se digne julgar procedente a presente Reclamação por existência de justo impedimento, e admissão do mesmo recurso.
Assim fazendo V. Exa, Meritíssimo Juiz Presidente, a habitual boa e sã
Justiça!
No uso dos poderes conferidos pelo artº 597º/2 do CPC, ex vi do artº 4º do CPP, foi solicitado ao Ministério Público a informação sobre a veracidade dos factos invocados pelo reclamante no ponto 3, alínea d) da motivação da reclamação.
II – Fundamentação
A Exmª Juiz não admitiu o recurso com fundamento na extemporaneidade.
Para a Exmª Juiz a quo que não admitiu o recurso, estando em causa um acto indispensável à garantia das pessoas, a que se refere o artº 93º/2-b) do CPP, o prazo legal para a prática desse acto corre nas férias judiciais. E in casu, tendo sido interposto fora do prazo legal de 20 dias, contados sem suspensão nas férias judiciais de Páscoas, não é de admitir o recurso por extemporaneidade.
O recorrente, ora reclamante, alega, em síntese, que o recurso foi tempestivamente interposto, uma vez que, estando em causa o despacho que lhe aplicou a medida de coacção de proibição de contactos que para ele, não se trata de uma medida privativa de liberdade stricto sensu, o recurso tendo por objecto este despacho e visando à sua revogação não se integra no elenco dos actos processuais indispensáveis à garantia da liberdade das pessoas.
Então vejamos.
Nos termos do disposto no artº 85º, 2º parágrafo, da Lei Básica da RAEM, foi determinada a manutenção na organização judiciária da RAEM do regime do Tribunal de Instrução Criminal anteriormente existente.
Como se sabe, uma das manifestações do regime do Tribunal de Instrução Criminal é a intervenção obrigatória do Juiz de instrução criminal, na fase de inquérito, para praticar, autorizar e ordenar a prática de todos os actos processuais que implicam a privação ou limitação dos direitos fundamentais das pessoas.
No plano da lei ordinária, temos o Código de Processo Penal que estabelece no seu artº 250º/1-b) que durante o inquérito compete exclusivamente ao juiz de instrução criminal proceder à aplicação de medidas de coacção ou de garantia patrimonial, à excepção da prevista no artigo 181.º, a qual pode ser aplicada pelo Ministério Público.
Tirando a medida de coacção de termo de identidade e residência, de forma alguma limitativa e privativa da liberdade das pessoas (artº 181º/2 do CPP), que pode ser aplicada pelo Ministério Público, a quem cabe a direcção da fase de inquérito, a nossa lei impõe sempre a intervenção de um órgão judicial para decidir sobre a matéria de medidas de coacção.
Por força do princípio da acusação, a direcção do inquérito cabe exclusivamente ao Ministério Público – artº 246º do CPP.
Assim, a intervenção obrigatória de um Juiz no inquérito terá de ser justificada por razões bem convincentes. De outro modo, poderia desautorizar o Ministério Público numa fase processual em que ele próprio é Senhor do processo, poria em causa a sua autonomia na condução dessa fase pré-julgamento, e até geraria desconfiança das pessoas nesta autoridade judiciária, como tal definido no artº 1º/1-b) do CPP.
Umas dessas razões bem convincentes é justamente a garantia da tutela efectiva da liberdade das pessoas.
Para a efectivação dessa tutela, ao decidir manter o regime do Tribunal de Instrução Criminal anteriormente existente no acima citado artº 85º, 2º parágrafo, da Lei Básica, o nosso legislador constituinte teve todo o cuidado e a forte intenção de fazer confiar a competência para a aplicação das medidas de coacção, por natureza privativa ou pelo menos limitativa da liberdade das pessoa, a um órgão judicial, considerado não subjectivo ou mais objectivo, por não se meter na condução da investigação pré-acusatória e fazer sujeitar a aplicação das medidas de coacção ao controlo jurisdicional, controlo esse que é muito mais garante do que o mecanismo hierárquico interno dentro do Ministério Público.
Na esteira desse entendimento, cremos que o recurso ordinário de um despacho judicial que decidiu sobre a aplicação de medidas de coacção não pode deixar de ser considerado um dos actos processuais indispensáveis à garantia da liberdade das pessoas, a que se refere o artº 93º/2-a), in fine, do CPP, uma vez que a interposição de recurso visa justamente à activação do tal controlo jurisdicional do despacho judicial que na óptica do visado, é-lhe injusto por ser ilegalmente privativo ou limitativo da sua liberdade.
Improcede assim o fundamento principal da reclamação, passemos a debruçar-nos sobre o fundamento subsidiário.
Neste aspecto, o reclamante invocou a existência do justo impedimento para tentar legitimar a interposição do recurso fora do prazo.
Para o efeito, alegou que os funcionários do Ministério Público não disponibilizavam o processo ao seu Defensor para consulta durante as férias judiciais de Páscoas, de modo a que lhe impossibilitasse a preparação e a interposição do recurso em tempo.
É verdade que os actos processuais podem ser praticados fora dos prazos estabelecidos por lei, por despacho da autoridade referida no número anterior, a requerimento do interessado e ouvidos os outros sujeitos processuais a quem o caso respeitar, desde que se prove justo impedimento – o artº 97º/2 do CPP
A lei processual penal não define o que se deve entender por justo impedimento.
Há que recorrer às normas do processo civil que se harmonizem com o processo penal – artº 4º do CPP.
Já o CPC diz-nos o que é justo impedimento.
Considera-se justo impedimento o evento não imputável à parte nem aos seus representantes ou mandatários, que obste à prática atempada do acto – artº 96º/1 do CPC.
Todavia, atendendo ao que se passou com o ora reclamante, a boa decisão da presente reclamação não terá de passar pela averiguação da existência do invocado justo impedimento.
Diz o artº 97º/3 do CPP que o requerimento referido no número anterior, ou seja, para a prática tardia do acto, é apresentado no prazo de 5 dias, contado do termo do prazo legalmente fixado ou da cessação do impedimento.
Dai decorre claramente que, incumbindo a nossa lei ao sujeito processual interessado na prática do acto o ónus de requerer a admissão tardia fundamentada em comprovado justo impedimento e que ele só deve ser admitido a praticar o acto fora do prazo se alegar e provar os factos constitutivos do justo impedimento no prazo de 5 dias, contado do termo do prazo legalmente fixado ou da cessação do impedimento.
In casu, o recorrente, ora reclamante, só veio alegar e prova-los na presente reclamação, apresentada muito posteriormente ao terminus do tal prazo de 5 dias.
Assim, independentemente da existência do justo impedimento, é sempre extemporâneo e portanto não é de admitir o recurso de cuja não admissão ora se reclama.
Sem mais delongas, é de concluir que bem andou a Exmª Juiz de Instrução Criminal, ao concluir como concluiu pela inadmissibilidade do recurso interposto com fundamento na extemporaneidade.
Resta decidir.
III – Decisão
São bastantes as razões acima expostas, cremos nós, para que indefiramos, como indeferimos, a reclamação deduzida, confirmando na íntegra o despacho reclamado.
Custas pelo reclamante, com taxa de justiça fixada em 6 UC.
Cumpra o disposto no artº 597º/4 do CPC, ex vi do disposto o artº 4º do CPP.
R.A.E.M., 27JUL2018
O presidente do TSI
Lai Kin Hong
1 《ANOTAÇÃO E COMENTÁRIO AO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL DE MACAU》,Manuel Leal-Henriques,第一冊,第637頁,原文為:actos processuais indispensáveis à garantia da liberdade das pessoas, como, por exemplo, os que respeitam às medidas de coacção ou de garantia patrimonial [al. a], parte final]。
2 《COMENTÁRIO AO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL》,4ªedição,Paulo Pinto de Albuquerque,第289頁。
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Recl. 5/2018-14