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Proc. nº 428/2018
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 13 de Setembro de 2018
Descritores:
- Acidente de viação
- Culpa
- Risco
- Atravessamento brusco da via por peão.

SUMÁRIO:

I - Não havendo nenhum elemento factual que permita extrair a conclusão que aponte para a culpa do condutor do veículo pesado de passageiros na produção do danos sofridos pela queda do passageiro que nele era transportado, e se essa queda foi provocada por uma travagem brusca efectuada pelo referido condutor para evitar o atropelamento de um peão que inesperadamente surgiu à frente do veículo, não é possível a condenação da seguradora a título de responsabilidade civil por facto ilícito.

II - Mas igualmente não é possível a sua condenação com fundamento na responsabilidade pelo risco, em virtude de o evento danoso se ficar a dever exclusivamente ao terceiro, peão que inesperadamente surgiu na frente do veículo.

Proc. nº 428/2018

Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM

I - Relatório.
A, casada, titular do bilhete de identidade de residente n.º XXX, residente em (澳門XXX), instaurou no TJB (Proc. nº CV1-16-0075-CAO) ------
Contra:------
Companhia de Seguros XXX (XXX保險有限公司), com sede em Macau, na XXX, -----
acção declarativa de condenação com processo ordinário,-----
Pedindo a condenação desta no pagamento -----
a) Da quantia de MOP$123,704.00 (cento e vinte e três mil, setecentas e quatro patacas) relativa a danos patrimoniais, acrescida de juros de mora à taxa legal a contar desde a data da citação até efectivo e integral pagamento; e-----
b) Da quantia de MOP$400,000.00 (quatrocentas mil patacas) referente a danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora a contar da data da decisão final, até efectivo e integral pagamento, -----
Em consequência de um acidente de viação de que a autora diz ter sido vítima, provocado por um veículo pesado de passageiros, em que era transportada, e conduzido por C, que tinha a sua responsabilidade civil transferida para a demandada.
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Foi, a seu tempo, proferida sentença, que julgou a acção parcialmente provada e procedente, vindo a condenar a ré a pagar à autora a indemnização no montante de MOP$ 419.963,61 e juros de mora respectivos contados da data da sua prolação.
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Contra esta sentença vem a ré apresentar recurso jurisdicional, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
“1) A douta Sentença proferida a fls. 190 a 199 dos autos em epígrafe considerou que o facto ilícito gerador da responsabilidade civil foi a travagem brusca do condutor do autocarro melhor identificado nos autos.
2) Tal facto ilícito consubstanciou-se no surgimento inesperado à frente da viatura de um transeunte, sendo este quem, ao atravessar a faixa de rodagem sem se acautelar de que tal punha a em perigo a circulação estradal, violou as regras do trânsito rodoviário, nomeadamente o artigo 70º da LTR.
3) Assim, a douta Sentença recorrida determinou que “d) a travagem brusca do veículo indicada no item c) se deu por ter surgido inesperadamente à frente do mesmo um transeunte”, cfr. facto provado d) a fls. 192,
4) Concluindo in fine o douto Tribunal a quo (tal como o Ministério Público por despacho de arquivamento do Processo de Inquérito com o n.º 8918/2015) que “Contudo, apenas se apurou que a travagem brusca resultou de um transeunte se ter atravessado à frente do autocarro, pelo que, não resultou aquela de qualquer violação de cuidado e menos ainda da vontade do respectivo motorista” (cfr. douta Sentença a fls. 195v e 196).
5) Pelo exposto, é mister concluir que o facto ilícito é imputável ao transeunte (e não à Ré, aqui Recorrente), sendo sobre este que recairá a responsabilidade civil pelos danos verificados, e não, como concluiu a douta Sentença recorrida, o condutor do autocarro, a título de responsabilidade pelo risco.

6) Não se verificando o preenchimento do primeiro requisito da responsabilidade civil pelo risco da Ré, aqui Recorrente, deveria a acção interposta pela Autora ter sido julgada improcedente,
7) Pelo que deverá a Sentença do douto Tribunal a quo ser revogada na parte em que condena a Ré no pagamento dos valores indemnizatórios aí indicados, devendo a Ré ser absolvida em consonância do pedido, o que, expressamente, se requer.
Por outro lado,
8) O douto Acórdão do Tribunal a quo deu como provado que “Em consequência da manobra supra, a Autora, que se encontrava sentada do lado esquerdo do veículo, num assento de coxia, em relação ao sentido da marcha do veículo, foi projectada do seu assento e caiu no chão da viatura”, cfr. alínea f) da factualidade assente da douta Sentença a fls. 190 e ss. dos autos.
9) Ora, salvo o devido respeito, tal conclusão não se coaduna com a travagem brusca que terá causado a queda da Recorrida, cfr. alínea d) da factualidade assente da douta Sentença,
10) Tão-pouco quanto à alegada posição da Autora, ora Recorrente, que, retome-se, “(...) se encontrava sentada do lado esquerdo do veículo, num assento de coxia, em relação ao sentido da marcha do veículo, foi projectada do seu assento e caiu no chão da viatura”, cfr. a supracitada alínea f) da factualidade assente (negrito nosso).
11) A verificar-se uma travagem brusca, indicam as regras da experiência que a Recorrida teria sido projectada para a frente, isto é, contra as costas do assento imediatamente à sua frente, e nunca para o seu lado direito e, consequentemente, para o chão da viatura.
12) Por outro lado, cabendo aos Autores, no respeito do princípio do ónus da prova ínsito no artigo 335º do CC, fazer prova dos factos constitutivos do direito alegado, não poderia o douto Tribunal a quo decidir, face à prova testemunhal em sede de audiência, senão no sentido da não prova do quesito 3º da base instrutória,
13) Quando muito, deveria o douto Tribunal ter decidido tão-somente pela prova parcial do mesmo quesito, concluindo que a Recorrida não se encontrava convenientemente sentada, ou, pelo menos, não estava sentada de modo a garantir a sua segurança num veículo em movimento.
14) De facto, o testemunho vertido em sede de audiência não demonstrou que a Recorrida, se encontrava sentada no seu assento, mormente quando confrontado com as mais elementares regras da lógica e da experiência comum.
15) Nos termos do artigo 558º, n.º 1 do CPC, o Tribunal aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto - no entanto, tal apreciação deverá ancorar-se nas regras da lógica e da experiência comum, sob pena de configurar um caso de erro notório na apreciação de prova, nos termos do artigo 599º, n.º 1, alínea a) do CPC.
16) Assim, salvo melhor opinião, existe uma contradição insanável entre o depoimento das testemunhas em audiência e as mais elementares regras da lógica e da experiência - a saber, que uma pessoa sentada num veículo em movimento, quando sujeita a uma travagem brusca, será projectada em frente, e não para o lado, como concluiu o douto Tribunal a quo.
17) Acresce que mais nenhum ocupante do veículo sofreu quaisquer danos em consequência da travagem, como aliás testemunhou C e como, também, se pode depreender do testemunho de D.
18) Sendo forçoso concluir que a conduta da Autora foi decisiva para a produção dos danos, salvo o devido respeito, andou mal a douta Sentença do Tribunal a quo ao decidir que a queda da Autora, ora Recorrida, foi consequência da travagem inesperada do veículo em que circulava, porquanto tal queda nunca teria ocorrido caso a mesma estivesse sentada como alega.
19) De facto, e para que a Autora, ora Recorrida, caísse como alega ter feito, com as consequências físicas melhor descritas em sede das alíneas n) a p) da factualidade assente, nunca poderia estar sentada do lado esquerdo do veículo, num assento de coxia, mas sim de pé, no corredor de acesso aos assentos do veículo (ou, in limine, não estaria sentada de molde a garantir a sua segurança em caso de travagem).
20) Em suma, resultando evidente que a conclusão constante da alínea f) não corresponde de nenhuma maneira às mais elementares regras da experiência, deverá concluir-se que a conduta da Autora - a saber, o facto de estar de pé num veículo em movimento - foi determinante para a produção dos danos.
21) A decisão ora recorrida encontra-se, pois, ferida de vício de erro notório na apreciação da prova (nos termos do artigo 599º, n.º 1, alínea a) do CPC), sendo mister concluir pela não prova do quesito 3º da base instrutória,

22) Pelo que, nos termos do artigo 490º do CC, aplicável ex vi artigo 492º do CC, deveria a responsabilidade pelos danos sofridos pela Autora correr exclusivamente por conta desta, na medida em que foi a própria que, pelo seu comportamento, causou os danos físicos e morais provocados pela queda no veículo.
23) Caso assim não se entenda, o que não se concede, é forçoso concluir, ainda assim, pela prova parcial do mesmo quesito, dando-se como provado que a Recorrida, não se encontrava sentada de modo a garantir a sua segurança num veículo em movimento,
24) Devendo, in limine, a responsabilidade pelos danos ser repartida entre as partes, nos termos dos supracitados artigos 490º e 492º do CC, porquanto a conduta da Autora, ora Recorrida, concorreu, de forma fundamental, para a verificação dos danos decorrentes da travagem, o que se requer.
Ainda quanto à conduta da Recorrida,
25) A douta Sentença recorrida considerou provado que “A Autora, aquando da travagem da marcha do veículo indicado no item c), não tinha o cinto de segurança colocado que se encontrava em regular funcionamento”, cfr. alínea e) da factualidade assente (negrito nosso).
26) Porém, o douto Tribunal a quo concluiu in fine que a Recorrida não concorreu para o acidente, porquanto inexiste qualquer norma no elenco normativo de Macau que estipulasse no veículo in casu a obrigatoriedade de uso de cinto de segurança.
27) Se é verdade que a Recorrida não concorreu para a produção do acidente, é mister concluir que esta não deixou de contribuir, no mínimo, para a produção dos danos, porquanto não tinha colocado o cinto de segurança.
28) De facto, ainda que a falta de cinto de segurança não constitua a violação de um normativo legal, consubstancia no entanto a inobservância de um elementar dever de cuidado,
29) Dever esse que tem sido alvo de cada vez maior sensibilização por parte das autoridades de Macau, atendendo à constatação evidente de que o seu uso é, indubitavelmente, essencial para a garantia da segurança dos passageiros.
30) Por outro lado, a violação do dever de cuidado por parte da Recorrida, causou (ou, in limine, agravou), in casu, o resultado produzido, conforme evidenciado nas alíneas e) e f) dos factos provados (fls. 192 da douta Sentença a quo).
31) Pelo exposto, sem conceder, é mister concluir que, nos termos do artigo 490º do CC, aplicável ex vi artigo 492º do CC, a responsabilidade pelos danos sofridos pela Recorrida, deveria ter sido repartida entre as partes, pelo facto de a conduta da Recorrida ter agravado a verificação dos danos decorrentes da travagem, o que se requer.
Acresce que,
32) A douta Sentença de fls. 190 a 199 refere, na alínea j) da factualidade assente, que “Em virtude dos tratamentos a que se submeteu, a Autora [aqui Recorrida] ficou internada no hospital até ao dia 15 de Julho de 2015”,
33) Acrescentando na alínea k) da factualidade assente que a Recorrida “(...) durante todo o período de internamento [sofreu] muitas dores, não se conseguindo mexer e necessitando de ajuda para se movimentar”.
34) Por outro lado, e conforme a alínea n) da factualidade assente, “No dia 23 de Julho de 2015, a Autora sentiu dores e deslocou-se até ao hospital Xin Hui Second People’s Hospital, onde realizou exames, nomeadamente uma tomografia computorizada, tendo tal exame demonstrado que as dores que a Autora sentia se deviam a uma fractura na zona lombar direita”.
35) Tais factos comprovam que as sequelas do acidente, melhor identificadas nas alíneas g), h), k), m) e q) da factualidade assente, não são imputáveis à Recorrente, outrossim a erro médico por parte ao Hospital Kiang Wu,
36) Porquanto foi o hospital Kiang Wu quem, após examinação e tratamento da Recorrida aquando do acidente, deu alta àquela no dia 15 de Julho de 2015, quando esta ainda padecia de uma fractura na zona lombar direita (cfr. alínea n) da factualidade assente).
37) Destarte, sem prejuízo do exposto supra, os tratamentos de fisioterapia a que foi sujeita a Recorrida entre 16 e 29 de Julho são de molde a agravar não apenas as dores e sequelas sentidas em consequência da sua queda, mas ainda os restantes danos alegados pela Recorrida, (vide a demora na recuperação após as lesões sofridas, as deslocações para tratamento médico, as despesas medicamentosas, a incapacidade para o trabalho, etc).
38) Atendendo à factualidade assente indicada supra, impunha-se ao douto Tribunal a quo que decidisse pela não imputação de parte dos danos à ora Recorrente, porquanto - sem conceder quanto ao que antecede - os mesmos não são consequência directa e necessária do acidente sub judice.

39) Pelo que, sem conceder quanto que antecede, nos termos do artigo 490º do CC, aplicável ex vi artigo 492º do CC, a responsabilidade pelos danos sofridos pela Recorrida deveria ter sido parcialmente imputada à conduta do Hospital Kiang Wu, devendo tal entidade responder também pelos danos decorrentes da travagem, e reduzindo-se consequentemente a responsabilidade da Recorrente pelo risco, o que se requer.
Por outro lado,
40) A douta Sentença recorrida fixou o valor indemnizatório pelos danos sofridos pela Recorrida em MOP 119.963,61, nos quais se incluem (entre outros) MOP 62.200,00 por perda salarial da Recorrida, MOP 4,000.00 por perda salarial do marido da Recorrida, e ainda RMB 870,00 relativas a despesas de transporte deste.
41) Sem conceder, ficou assente que a Recorrida auferia o salário de MOP 12.200,00, o que equivale a um valor diário de MOP 401,00 (arredondado à unidade mais próxima).
42) No entanto, a douta Sentença recorrida não contemplou diversas faltas remuneradas nos termos da LRT para os cinco meses e três dias aí indicados, nomeadamente seis faltas por doença ou acidente, por cada ano civil, para o trabalhador que tenha completado o período experimental (cfr. artigo 53º, n.º 2 da Lei das Relações de Trabalho),
43) Ou ainda um período de descanso remunerado de vinte e quatro horas consecutivas por semana, o que equivaleria a cerca de 22 dias úteis para os cinco meses e três dias indicados na douta Sentença recorrida (nos termos do artigo 42º, n.º 1 da LRT),
44) Aos quais acrescem, os dias de feriados obrigatórios sem perda de remuneração de base - in casu, Chong Chao, 1 de Outubro e Chong Yeong - nos termos do artigo 44º, n.º 1 e 2 da LRT,
45) E ainda, seis dias úteis de férias anuais remuneradas para o trabalhador cuja relação de trabalho seja superior a um ano, o que, pro rata, equivale a dizer que a Recorrida tinha direito a 2 dias e meio de férias anuais remuneradas no período em análise, nos termos do artigo 46º, n.º 1 da LRT.
46) Deste modo, sendo forçoso subtrair 33,5 dias remunerados aos cinco meses e três dias indicados na douta Sentença, sem conceder, a Autora apenas teria direito a 119,5 dias que terá faltado ao trabalho sem receber a remuneração correspondente.
47) Com base no montante diário de MOP 401,00, tal corresponderia a um total indemnizatório de MOP 47.919,50, ao qual, sem prejuízo do alegado supra, desde já se requer seja reduzida a indemnização em consonância.
48) Sem conceder, sublinhe-se que a Recorrida apenas peticionou MOP 61.000,00 no artigo 50º da sua Petição Inicial.
49) Ora, salvo melhor opinião, e sem conceder, o valor indemnizatório nunca poderia exceder tal montante, sob pena de constituir uma condenação extra petitio, causa de nulidade da Sentença nos termos do artigo 571º, n.º 1, alínea e), 2ª parte do CPC, pelo que deveria em todo o caso o montante indemnizatório ser reduzido a este valor, o que se requer.
50) Quanto aos valores arbitrados a título de despesas incorridas pelo marido da Recorrida (MOP 4,000.00 por perda salarial e RMB 870,00 por despesas de transporte), estes não poderiam nunca constar da douta Sentença recorrida, porquanto o marido da Recorrida é quem teria a legitimidade activa para eventualmente reclamar tais valores, e o mesmo não é parte no presente processo.
51) Assim, salvo o devido respeito, andou mal o douto Tribunal a quo ao arbitrar os valores indemnizatórios supra indicados a favor da Recorrida - in casu, pela ilegitimidade activa da Recorrida quanto a este pedido - devendo a douta Sentença recorrida ser revogada também quanto a este ponto, o que se requer.
Por fim,
52) O douto Tribunal a quo atribuiu, a título de indemnização por danos não patrimoniais, o valor de MOP 300.000,00, atendendo às consequências do acidente.
53) Sem prejuízo do supra exposto, é forçoso concluir que o douto Tribunal a quo determinou um montante claramente excessivo a título de compensação de cerca de três semanas de internamento.
54) Tal como referido na douta Sentença recorrida, “em situações de responsabilidade civil por factos ilícitos, tem este tribunal vindo a usar por referência o valor mínimo diário de MOP 1.400,00, havendo contudo que ponderar se o período de recuperação implicou internamento, incapacidade temporária absoluta ou parcial para o trabalho, a natureza das lesões, a parte do corpo afectada, se ocorreu deformação física, etc.”.

55) Sem conceder quanto à responsabilidade da Recorrida nos danos verificados, bem como quanto à responsabilidade desta e do Hospital Kiang Wu no que tange ao agravamento das lesões sofridas, segundo a douta Sentença recorrida, o cálculo do montante indemnizatório (ad minimum) a título de danos não patrimoniais seria de MOP 1.400,00 x 5 meses = MOP 210.000,00.
56) Ora, a título comparativo, o valor arbitrado pela douta Sentença recorrida é largamente superior a outros casos análogos na jurisprudência dos Tribunais de Macau, dos quais se salienta o Acórdão do Tribunal de Última Instância de 21/11/2012, com o número 60/2012, o Acórdão do Tribunal de Segunda Instância de 12/1/2009 (processo n.º 317/2009), e ainda o Acórdão do Tribunal de Segunda Instância de 25/11/2004 (processo n.º 278/2004),
57) Pelo que, sem conceder quanto à responsabilidade da Recorrida e do Hospital Kiang Wu, nos termos supra expostos, a indemnização arbitrada pelo doutro Tribunal a quo não deveria ultrapassar os MOP 210.000,00 indicados na douta Sentença recorrida, o que se requer.
Nestes termos e nos melhores de direito aplicáveis, que V. Exas. doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado totalmente procedente, revogando-se a decisão recorrida em conformidade, fazendo V. Exas., mais uma vez, a costumada Justiça”
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A autora respondeu ao recurso nos seguintes termos conclusivos:
“A responsabilidade pelo risco é independente de culpa.
B. A Recorrente, para quem foi transferida a responsabilidade pelo veículo em causa, conforme factualidade assente, responde pelos riscos do veículo.
C. Não houve erro médico porquanto o perito médico afirmou em audiência não ser comum que a verdadeira extensão do tipo de lesões sofridas pela Recorrida apenas ser visível num momento posterior, pelo que a Recorrente responde exclusiva e inteiramente pelos danos.
D. A Recorrente não provou que a Recorrida tivesse contribuído para os danos.
E. A tese de que a Recorrida estaria de pé não pode ser acolhida por não se adequar às provas produzidas.
F. O facto de a Recorrida ter caído para o lado é o resultado de a travagem se ter dado numa curva, como comprovado pelas testemunhas em audiência.
G. Não é obrigatório o uso de cinto de segurança pelos passageiros no tipo de veículos em causa.
H. Se falta de cuidado houve, é da própria companhia, e por extensão da Recorrente que assumiu a responsabilidade pelos riscos do veículo, ao não recomendar aos passageiros nem verificar o uso quer do cinto de segurança quer dos apoios dos braços.
I. Não há excesso de condenação porquanto o montante global da indemnização pedida pela Recorrida não foi excedido pelo Tribunal a quo.
J. Os montantes arbitrados a título de indemnização por perda salarial estão correctos, porquanto correspondem ao montante efectivo que a Recorrida deixou de auferir em virtude do acidente.
K. A Recorrida tem legitimidade para requerer a indemnização pelas despesas incorridas e pelas perdas salariais do seu marido, pois as mesmas não só foram consequência directa do acidente, como saíram do orçamento familiar, afectando directamente a Recorrida.
L. Não há uma tabela dos quantitativos a arbitrar a título de danos não patrimoniais, devendo os mesmos ser atribuídos segundo juízos de equidade e tendo em conta as circunstâncias do caso concreto.
M. Pelo que não merece censura a sentença do Tribunal a quo.
Termos em que deverão improceder as alegações apresentadas pela Recorrente e, consequentemente, ser confirmada a douta Sentença proferida pelo Tribunal a quo, só assim se fazendo JUSTIÇA!”
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Cumpre decidir.
***
II – Os Factos
A sentença deu por assente a seguinte factualidade:
“a) “E Tourism Limited” (E旅遊有限公司), entidade designada por “Sands Casino” para realizar transporte de passageiros é dono do veículo pesado MQ 85-XX, tendo transferido a sua responsabilidade através da contratação de uma apólice de seguro à entidade Companhia de Seguros XXX (XXX保險股份有限公司);
b) No dia 28 de Junho de 2015, pelas 18 horas, C conduzia o veículo automóvel pesado de passageiros, com a matrícula MQ-85-XX, pela Rua Norte do Canal das Hortas/Travessa das Hortas, transportando a Autora como passageira;
c) Enquanto circulava na via de trânsito em direcção às Portas do Cerco, C, efectuou uma travagem brusca;
d) A travagem brusca do veículo indicada no item c) deu-se por ter surgido inesperadamente à frente do mesmo um transeunte;
e) A Autora, aquando da travagem da marcha do veículo indicada no item c), não tinha o cinto de segurança colocado que se encontrava em regular funcionamento;
f) Em consequência da manobra supra, a Autora, que se encontrava sentada do lado esquerdo do veículo, num assento de coxia, em relação ao sentido da marcha do veículo, foi projectada do seu assento e caiu no chão da viatura;
g) O referido no item anterior causou à Autora dores intensas e agudas;
h) As quais, não permitiam, sequer, que a mesma se mantivesse de pé;
i) Na sequência do referido acidente, a Autora foi de imediato transportada, de ambulância, para o Serviço de Urgência do Hospital Kiang Wu, onde foi examinada e submetida aos tratamentos necessários;
j) Em virtude dos tratamentos a que se submeteu, a Autora ficou internada no hospital até ao dia 15 de Julho de 2015;
k) Tendo durante todo o período de internamento sofrido muitas dores, não se conseguindo mexer e necessitando de ajuda para se movimentar;
l) A Autora teve alta, no dia 15 de Julho de 2015, e no período entre 16 e 29 de Julho de 2015, foi submetida a tratamentos de fisioterapia e repouso no hospital;
m) Durante esse período a Autora sofreu dores intensas; que lhe causaram fortes incómodos e mal-estar, tendo muita dificuldade em se locomover;
n) No dia 23 de Julho de 2015, a Autora sentiu dores e deslocou-se até ao hospital Xin Hui Second People’s Hospital, onde realizou exames, nomeadamente uma tomografia computorizada, tendo tal exame demonstrado que as dores que a Autora sentia se deviam a uma fractura na zona lombar direita;
o) A Autora deslocou-se ao Hospital Kiang Wu em 27 de Julho de 2015, onde realizou os exames adicionais e foi confirmado o diagnóstico de fractura de vértebras lombares;
p) Por causa da referida fractura, resultante do acidente de viação em causa, foi prolongada a baixa médica da Autora, pelo período de 30 de Julho a 5 de Agosto de 2015;
q) Desde o acidente até 30 de Novembro de 2015 a Autora não pôde fazer uma vida normal, não podendo trabalhar por não dispor de condições físicas para tal.
r) A Autora tem de se deslocar com frequência ao hospital, quase sempre acompanhada pelo seu marido, para realizar exames e tratamentos médicos;
s) Por causa das fortes dores que sentia nas zonas afectadas pelo acidente a Autora deixou de trabalhar e receber salário durante o período de 28 de Junho de 2015 a 30 de Novembro de 2015;
t) Com os tratamentos, internamento, restantes despesas médicas e medicamentosas a Autora despendeu um total de MOP28.708,00 e RMB451,00;
u) À data da ocorrência do acidente, a Autora exercia as suas funções no Casa Real Hotel, como croupier;
v) Auferindo na altura um salário mensal de MOP12,200.00;
w) A Autora efectuou trabalhos leves desde 1 de Dezembro de 2015 a 5 de Janeiro de 2016, data em que regressou ao desempenho total das suas funções;
x) O marido da Autora pelo menos por 20 vezes teve de se ausentar do seu trabalho na China Continental para acompanhar a Autora ao Hospital deixando de receber MOP200,00 por cada dia de trabalho e suportando despesas de transportes no valor de RMB870,00;
y) Dada a dificuldade de movimentos e locomoção, a Autora pagou pela assistência prestada pelos familiares numa média de MOP200.00 por dia, ascendendo este montante a um valor que se estima nunca inferior a MOP23,400.00;
z) A Autora teve dor e sofrimento psicológico pelo acidente ocorrido que se traduzem na angústia e na ansiedade que o próprio acidente e posteriores tratamentos necessários à sua reabilitação lhe causaram;
aa) Com o acidente, a Autora não pode partilhar o período de férias escolares com os seus filhos no ano de 2015, e usufruir do tempo que poderia ter passado com estes, em lazer”.
***
III – O Direito
1 – A sentença, apesar de ter referido que o facto ilícito (um dos pressupostos da responsabilidade civil que estudou) consistiu na travagem brusca do veículo que transportava a autora da acção, acabou por admitir que essa manobra não resultou de qualquer falta de dever de cuidado, e menos da vontade, do condutor respectivo, antes se deveu à atitude de um peão que atravessou a via inesperadamente à frente do mesmo.
Depois, por ter concluído que se não podia imputar a ocorrência do acidente ao condutor, por falta de culpa do agente, considerou que a responsabilidade pelos danos resultaria do risco, nos termos do art. 496º, do Código Civil.
A ré da acção, no recurso, discorda. Insiste que a culpa do acidente unicamente ao transeunte é imputável, por ter surgido inesperadamente à frente do veículo segurado. Daí que entenda que não podia ser accionado o mecanismo do risco.
E, para encurtar razões, achamos que tem razão.
Com efeito, nada está provado que ligue o acidente à conduta do condutor do veículo. Nenhuma conduta irregular foi apontada ao condutor do veículo. Não está provado que seguia a velocidade desaconselhável para o local, que ia distraído e sem prestar atenção ao trânsito e aos peões, que conduzia embriagado, que lhe faltava lucidez por efeito de droga ou álcool, etc., etc. Sabemos, isso sim, que o acidente só ocorreu por, inopinadamente, um peão ter atravessado a via, obrigando o condutor do veículo a efectuar uma travagem brusca. Pode até dizer-se que, se teve tempo para a travagem, ao ponto de evitar o atropelamento, isso até se deverá ao facto de conduzir com a atenção que se impunha.
Portanto, em relação a si, nenhuma imputação na produção do evento pode ser assacada a título de culpa. Nisso a sentença tem razão, pois a esta conclusão também ela chegou.
Claro que tudo seria diferente se o peão estivesse a fazer a travessia da via numa passadeira para peões. Aí, sim, ainda que não houvesse sinalização luminosa por semáforos, o condutor deveria sempre redobrar o seu cuidado e reduzir a velocidade ou até mesmo parar a sua marcha, consoante a situação, para deixar passar todos os peões no momento. Porémk, isso nunca foi equacionado, sequer, nos autos.
Portanto, ao motorista não pode ser assacada a culpa, seja em que perspectiva for.
Ora, a travagem brusca foi efectuada, como se disse, para evitar o atropelamento de um transeunte, que “inesperadamente” surgiu à frente da viatura. Sendo assim, o acidente só se deu por causa e culpa do peão.
Efectivamente, “o condutor de veículo não tem de contar com um peão que inicia a travessia da via, invadindo a faixa de rodagem, sem olhar para o lado de onde provém o veículo, de forma repentina, quando este se encontrava já a curta distância. Pois cada condutor supõe que as outras pessoas aceitam as regras de trânsito e os deveres gerais de prudência. Outro entendimento conduziria à paralisação do trânsito” (Ac. da RP, de 14.07.2008, Proc. nº 0834104).
Como se colhe de um outro aresto, em termos de direito comparado, “Não pode ser assacada responsabilidade na produção de um acidente a um condutor ao qual surge um peão, embriagado, a atravessar em diagonal uma via, em local não destinado ao atravessamento de peões e que se precipita nesse atravessamento sem qualquer cuidado, o qual para mais reage da forma possível, travando e tentando contornar (evitar) o choque” (Ac. da RP, de 21/09/2015, Proc. nº 2394/09; em sentido semelhante, o Ac. do STJ, de 20/07/1976, Proc. nº 066251)
Consequentemente, jamais se poderia fundar a responsabilidade pelos danos a título de risco (arts. 492º e 496º, do CC), já que este apenas se verifica quando não seja possível apurar a culpa de quem quer que seja na produção do facto danoso (neste sentido, o Ac. do STJ, de 11/06/2002, Proc. nº 01B4158).
Acresce que, no caso em apreço, valeria a aplicação do art. 498º do CC, segundo o qual a responsabilidade decorrente do art. 493º é excluída quando o acidente for imputável ao próprio lesado ou a terceiro (como era, precisamente, o caso). O terceiro peão foi, sem dúvida, o único e exclusivo culpado na produção deste facto danoso.
Nesta conformidade, não podia o tribunal “a quo” convolar o fundamento da responsabilidade extracontratual fundada na ilicitude para o do risco.
Esta conclusão prejudica que apreciemos os restantes fundamentos do recurso, quer sobre a impugnação da matéria de facto respeitante ao art. 3º da BI, quer sobre a eventual contribuição da própria autora no interior do autocarro na produção dos danos, por não levar o cinto de segurança colocado, nem, finalmente, sobre os danos sofridos por esta.
Face ao exposto, o recurso não pode deixar de vingar.
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IV – Decidindo
Face ao exposto, acordam em conceder provimento ao recurso, revogando a sentença impugnada e julgam improcedente a acção, absolvendo a ré do pedido.
Custas pela autora em ambas as instâncias.
T.S.I., 13 de Setembro de 2018
José Cândido de Pinho
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong


428/2018 19