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--- Decisão Sumária nos termos do art.º 407º, n.º 6 do C.P.P.M. (Lei n.º 9/2013). -----------------------
--- Data: 20/09/2018 ----------------------------------------------------------------------------------------------
--- Relator: Juiz José Maria Dias Azedo -----------------------------------------------------------------------


Processo nº 678/2018
(Autos de recurso penal)

(Decisão sumária – art. 407°, n.° 6, al. b) do C.P.P.M.)

Relatório

1. A, (2°) arguido com os sinais dos autos, respondeu em audiência Colectiva no T.J.B., vindo a ser condenado como cúmplice da prática de 1 crime de “usura para jogo com exigência ou aceitação de documento”, p. e p. pelo art. 14° da Lei n.° 8/96/M, na pena de 1 ano e 9 meses de prisão, suspensa na sua execução por 2 anos e 6 meses, e na pena acessória de proibição de entrada nas salas de jogo por 3 anos; (cfr., fls. 227 a 234-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

*

Inconformado, veio o arguido recorrer, apresentando em sede da sua motivação de recurso as conclusões seguintes:

“1. Ficou por demonstrar (quod erat demonstrandum) que o recorrente tivesse consciência ou representasse e quisesse, ou meramente aceitasse, que os actos por si praticados no âmbito dos eventos circunstanciada e concretamente descritos e apreciados no âmbito destes específicos autos se destinavam/se destinariam a ajudar qualquer dos demais arguidos ao cometimento, por eles, de um crime, seja de usura para jogo ou outro.
2. Teria de ter ficado positivamente provado (e não ficou) que, em sede dos factos objecto deste processo-crime (e não em qualquer outra sede), o recorrente tinha ciência e queria, ou tão simplesmente aceitou, que os actos materiais por ele praticados funcionariam como meio auxiliar à prática criminal por qualquer dos demais arguidos.
3. Inexistindo essa consciência, representação ou noção por parte do recorrente, logo dessa primeira não existência decorre inexistir a subsequente vontade, mínima que seja (desde o dolo directo até ao dolo fronteiriço com a negligência, o dolo eventual) de praticar actos materiais ou operacionais para servirem de ajuda ou auxílio à comissão de um crime por terceiros.
4. Não havendo representação nem vontade, não existe dolo. Sem dolo, não há cumplicidade.
5. Não há cumplicidade “objectiva”, isto é, desassistida de representação e vontade do “agente/actuante”: este só se torna um eventual cúmplice quando represente, queira ou assuma que a finalidade ou função dos seus actos é a de ser auxiliadora da realização de um ilícito criminal alheio, quando, pois, transforma as suas actuações meramente físicas e naturalísticas em “actos seus”, em “actos fruto de uma sua vontade consciente”.
6. Inexiste, de igual modo, cumplicidade “negligente” pois mesmo que o agente/actuante pratique actos/operações materiais e naturalísticas que, por uma sua imprevidência ou ligeireza de avaliação, sirvam objectivamente como meio auxiliatório para que um terceiro cometa um crime, nem por isso deve tal agente ser havido como “cúmplice”.
7. Impõe-se que tais actos ou operações sejam actos verdadeiramente resultantes de uma efectiva representação e vontade consciente do seu autor.
8. Sem tais elementos – representação e vontade – não há cumplicidade.
9. Tudo quanto acima ficou dito na motivação a respeito de um pretenso auxílio material deve ser estendido a um pretenso auxílio moral, igualmente invocado na decisão recorrida, de igual modo não provado ou dado como verificado nos pretensos autos.
10. Ao não ter assim decidido, o acórdão recorrido incorreu num vício que, nos termos e por força do art. 400.°, n.° 2, al. a) do C.P.P., importa a revogação da decisão recorrida e a absolvição do recorrente do crime pelo qual veio condenado a título de cumplicidade.
11. O crime de “exigência ou aceitação de documento” não subsiste nem tem autonomia quando o arguido não seja igualmente condenado pelo art. 13.°, isto porque o art. 14.° é um mero destaque emanado do crime do art. 13.° para efeitos de elevação da respectiva moldura penal, superior à do constante do art. 13.°, por referência ao art. 219.° do Código Penal.
12. Assim sendo, se o recorrente não cometeu e, pois, não foi condenado pelo crime do art. 13.°, não poderia ter sido condenado pelo delito sediado no art. 14.°
13. A haver condenação pelo art. 14.° sem a concomitante condenação pelo crime do art. 13.°, tal necessariamente deverá redundar na anulação da condenação isolada pelo crime do art. 14.°
14. Ao não ter assim decidido, o acórdão recorrido incorreu num erro de julgamento nos termos do mi. 400.°, n.° 1, do C.P.P., ao ter feito incorrecta interpretação e aplicação dos referidos artigos 13.° e 14.° da Lei 8/96/M de 22 JUL, importando a revogação da decisão recorrida e a absolvição do recorrente do crime pelo qual veio condenado a título de cumplicidade.
15. Vindo a decisão recorrida a ser revogada, como se espera, e a ser o recorrente absolvido – fruto da procedência de um ou ambos os vícios assacados ao acórdão a quo –, então, decaída que esteja a sanção principal, necessária e automaticamente decai a sanção acessória.
16. Assim, desde já expressamente se requer a V. Ex.as que, absolvendo o recorrente por qualquer uma das duas vias acima sustentadas (ou ambas), se declare imediatamente revogada também a sanção acessória de proibição de entrada em salas de jogos por 3 anos, aplicada ex vi do art. 15.° da Lei 8/96/M de 22 JUL.
17. É patente uma essencial identidade substancial que liga a proibição de entrada em salas de jogos por 3 anos, nos termos do art. 15.° da Lei 8/96/M de 22 JUL, e a medida de coacção de proibição de entrada em casino, ex vi da al. b) do n.° 1 do art. 184.° do C.P.P.: ambas têm por efeito vedar ou banir o aqui recorrente de aceder a salas de jogo e a casinos.
18. Tendo já o recorrente cumprido integralmente a medida de coacção, uma nova sujeição a uma medida de conteúdo e alcance substancial idêntico configuraria, sob a aparência da sua formal autonomia e ratio, um verdadeiro e efectivo duplo sancionamento, que está de todo em todo vedado e proibido, sendo ilegal a aplicação dupla e repetida de medida substancialmente idêntica em relação ao mesmo agente, tal como in casu sucedeu.
19. A aplicação do princípio ne bis in idem ou da proibição da dupla penalização limita a acção sancionatória em termos de vedar que uma mesma conduta dê azo à aplicação de iguais e sucessivas medidas substancialmente sancionatórias ou repressivas, ainda que sob vestes, prazos de duração e nomen juris diversos.
20. Tal princípio inscreve e subsume-se no princípio jusfundamental do Estado-de-Direito e nos seus corolários de exigência de estrita legalidade no que respeita a medidas repressivas ou sancionatórias, seja qual for a sua natureza – cfr. na Lei Básica, o art. 29.° no plano administrativo, o art. 3.° do C.P.A. e no plano criminal, o art. 1.° do Código Penal.
21. Ao não ter assim decidido, o acórdão recorrido incorreu num erro de julgamento nos termos do art. 400.°, n.° 1, do C.P.P., ao ter feito incorrecta interpretação e aplicação do art. 15.° da Lei 8/96/M de 22 JUL face ao art. 29.° da Lei Básica e ao art. 1.° do Código Penal, importando a revogação integral da decisão recorrida quanto à aplicação ao recorrente da sanção acessória de proibição de entrada em salas de jogos por 3 anos.
22. A sanção acessória de 3 anos, a fim de ser juridicamente válida, não poderá ser de cumprimento integral, mas, diferentemente, a sua duração haverá de sofrer a seguinte restrição temporal: o desconto aos 3 anos ora aplicados dos 18 meses já anteriormente cumpridos.
23. É o que a identidade substancial entre uma e a outra medida impõe!
24. Deveria ter sido aplicado ao caso, por analogia (senão por via de uma interpretação extensiva), a «norma geral de desconto» que dimana do que se dispõe no art. 74.°, n.° 1, e no art. 75.°, n.° 1, ambos do Código Penal.
25. A aplicabilidade da analogia ou da interpretação in banam partem é admitida tanto pela doutrina como pela jurisprudência e pode também ser referenciada ao que, a contrário, se dispõe no n.° 3 do art. 1.° do Código Penal.
26. A título meramente exemplificativo, pode-se também invocar em jeito de direito comparado, o que se expendeu em termos doutrinários e decidiu, em sentido homólogo, nos seguintes acórdãos de Portugal:
- Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 26 ABR 2016, tirado no processo n.° 443/14.2GFSTB-A.E1 e relatado pela Desembargadora B; ou
- Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.° 10/2009, relatado pelo Conselheiro C.
27. Ao, porém, assim não ter decidido, incorreu o acórdão recorrido num erro de julgamento, nos termos do art. 400.°, n.° 1, do C.P.P., ao ter feito incorrecta interpretação e aplicação do regime conjugado que resulta do art. 15.° da Lei 8/96/M de 22 JUL face ao art. 184.°, n.° 1, al. b), do C.P.P. e aos artigos 1.°, n.° 3, 74.°, n.° 1, e art. 75.°, n.° 1, todos do Código Penal, importando a revogação da decisão recorrida quanto à sanção acessória de proibição de entrada em salas de jogos por 3 anos, na qual se não procedeu ao desconto do período de 18 meses anteriormente aplicado e cumprido a título de medida de coacção”; (cfr., fls. 245 a 271).

*

Respondendo, pugna o Ministério Público que o recurso não merece provimento; (cfr., fls. 274 a 277).

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Neste T.S.I., e em sede de vista, juntou o Exmo. Representante do Ministério Público o seguinte douto Parecer:

“Por cumplicidade num crime e usura, com exigência ou aceitação e documentos, foi o recorrente A condenado na pena principal de 1 ano e 9 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo prazo de dois anos e seis meses, e na pena acessória de proibição de entrada em salas de jogos pelo período de 3 anos.
Vem impugnar o acórdão condenatório, imputando-lhe os vícios de insuficiência, para a decisão, da matéria de facto provada e erros na interpretação e aplicação do direito.
Afigura-se que a argumentação do recorrente está votada ao insucesso, tal como o Exm.° colega refere na sua resposta à motivação do recurso, cujo teor acompanhamos.
O recorrente começa por argumentar, em síntese, que nada ficou demonstrado, em matéria de dolo, que o possa ligar ao ilícito por que veio a ser condenado, nenhum elemento apontando no sentido de que haja representado e querido o auxílio que lhe foi atribuído e pelo qual veio a ser condenado a título de cúmplice.
Afigura-se que a matéria tida por provada é suficiente para alicerçar e sustentar a convicção que levou à prolação do acórdão com a condenação do recorrente. Com excepção do telefonema feito pelo ofendido à suspeita A, toda a acção em que se substancia a prática do ilícito se desenrola na presença do recorrente, que acompanhou os demais suspeitos e arguido, bem como o ofendido, em todos os locais relevantes para a prática consumada da usura, como se retira dos factos 2.°, 3.°, 4.°, 6.°, 8.° e 9.° dados como provados. Pois bem, tendo assistido a todas as etapas do iter criminis, e bem sabendo, como ele próprio declarou, que estava em causa o empréstimo de dinheiro para jogos, por parte do patrão D a outrem, a sua presença nos locais em que se desenrolou o ilícito, quer acompanhando/transportando o patrão e demais suspeitos e arguido, quer exibindo a sua presença – a qual, à luz das regras da experiência, não pode deixar de ser tida como intimidatória e facilitadora da recuperação do empréstimo, no que toca à deslocação e permanência no quarto do ofendido após este ter perdido a totalidade do empréstimo – não pode deixar de ser catalogada como cúmplice à luz do artigo 26.° do Código Penal.
Não se vislumbra, pois, que o acórdão padeça da alegada insuficiência, pelo que improcede este fundamento do recurso.
Quanto aos erros de direito, e referindo-se à sanção principal, o recorrente afirma que foi condenado por cumplicidade num crime de exigência ou aceitação de documento, da previsão do artigo 14.° da Lei 8/96/M, sem que houvesse cometido o crime de usura previsto no artigo 13.° da mesma Lei, pelo qual, de resto, não foi condenado, concluindo que, sem a prática do crime de usura (artigo 13.°), a que tem que se subordinar necessariamente a exigência ou aceitação de documento, não é viável a comissão do ilícito do artigo 14.° aludido.
Crê-se que há aqui algum equívoco. Na verdade, o artigo 14.° da Lei 8/96/M prevê um crime de usura, usura agravada pela exigência/aceitação de documento. A epígrafe do artigo 14.° tem levado a que o crime de usura agravada previsto em tal normativo seja apelidado de crime de exigência ou aceitação de documento. Mas, em bom rigor, o que aí se prevê é um crime de usura qualificado pela ocorrência de exigência ou aceitação de documento.
Dado que o recorrente foi condenado como cúmplice de um crime de usura para jogo, previsto e punível pelo artigo 14.° da Lei 8/96/M, não se vislumbra onde possa residir o aventado erro de direito.
Ainda em matéria de erros de direito, agora no tocante à sanção acessória, o recorrente aduz que, tendo estado submetido a medida de coacção de proibição de entrada nos casinos, durante 18 meses, no decurso do processo, não lhe podia, a final, ter sido imposta a proibição de entrada nas salas de jogos, desta feita por 3 anos, já que tal viola o princípio ne bis in idem. E, para o caso de se entender que não há violação deste princípio, então, por força da regra do desconto prevista nos artigos 74.° e 75.° do Código Penal, deveria o acórdão recorrido ter levado em conta o período de proibição já cumprido e proceder ao respectivo desconto naqueles 3 anos.
Também nesta parte se afigura que o recorrente não tem razão.
Uma coisa são as penas – sendo que a proibição de entrada decretada pelo acórdão é uma pena –, outra coisa são as medidas processuais cautelares. Têm pressupostos, finalidades e campos de aplicação distintos, pelo que não se anulam nem se excluem mutuamente. Se assim não fosse, a aplicação de certas medidas de coacção conduziria à neutralização da imposição das penas e ao termo do processo, em nítida contradição com os objectivos que tais medidas visam acautelar. Improcede a suscitada violação do princípio ne bis in idem.
Por outro lado, o instituto do desconto, no qual o recorrente se apoia para reclamar o abatimento, em 18 meses, da pena acessória de 3 anos em que foi condenado, abrange apenas casos de detenção, de prisão preventiva e de penas parcialmente cumpridas objecto de reformulação. Como se vê pelo leque de situações abrangidas, o legislador quis restringir o desconto aos casos de privação de liberdade relacionada com a factualidade que integra o objecto do processo, desiderato que, como salienta Figueiredo Dias, embora possa conflituar com exigências de prevenção especial de socialização, se justifica por imperativos de justiça material – cf. As Consequências Jurídicas do Crime, §§ 434 e seguintes.
Não se encontram, assim, abrangidas pelo instituto do desconto medidas coactivas não privativas de liberdade, pelo que igualmente soçobra este fundamento do recurso.
Ante o exposto, o nosso parecer vai no sentido de ser negado provimento ao recurso”; (cfr., fls. 329 a 331).

*

Em sede de exame preliminar constatou-se da “manifesta improcedência” do presente recurso, quanto à parte que diz respeito à condenação do arguido como cúmplice do crime de “usura para jogo com exigência ou aceitação de documento”, e, nesta conformidade, atento o estatuído no art. 407°, n.° 6, al. b) e 410°, n.° 1 do C.P.P.M., (redacção dada pela Lei n.° 9/2013, aplicável aos presentes autos nos termos do seu art. 6°, n.° 1 e 2, al. 2), e tendo-se também presente que a possibilidade de “rejeição do recurso por manifesta improcedência” destina-se a potenciar a economia processual, numa óptica de celeridade e de eficiência, visando, também, moralizar o uso (abusivo) do recurso, passa-se a decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Pelo Colectivo a quo foram dados como provados os factos seguintes:

“ 1.
Desde o dia 30 de Junho de 2016, depois de o ofendido E veio a Macau, o ofendido ficou alojado no Hotel JW Marriott Macau, quarto n.º XX.
2.
Ao anoitecer do dia 30 de Junho de 2016, o ofendido perdeu todo o capital para jogo no Casino Studio City, Macau, assim, o ofendido telefonou à “suspeita A” que lhe conheceu anteriormente no casino, com o objecto de pedir empréstimo para os jogos. A “suspeita A” manifestou que lhe podia enviar pessoal ao quarto em que o ofendido ficou alojado, a fim de negociar o assunto do pedido de empréstimo para os jogos com o ofendido. E depois, o 1º arguido F, o 2º arguido A e o “suspeito D” vieram ao quarto em que o ofendido ficou alojado no Hotel.
3.
Por último, o “suspeito D” concordou em dar um empréstimo no valor de HKD$100.000,00 ao ofendido para jogo de «Bacará», com condições de:
1. Descontar o valor HKD$5.000,00 a título de juros;
2. Cada vez quando o ofendido ganhou o ponto 7 ou 8 na jogada, combinando que retiraria de cada aposta 20% a título de juros;
3. Solicitar o ofendido a entregar o passaporte de “Chong Wa Man Kuok (Taiwan)” e a Autorização de viagem para residentes de Taiwan como hipoteca;
4. Assinar a declaração de dívida.
4.
Depois de o ofendido subscreveu às condições do empréstimo, o ofendido seguiu os 3 arguidos acima referidos, ou seja, o 1º arguido F, o 2º arguido A e o “suspeito D”, à sala de descanso do Liyard Suncity VIP Club no 2º andar do Casino Le Royal Arc, para ter encontro com “suspeito 財務Choi Mou”. De seguida, o ofendido entregou a declaração de dívida assinada e os documentos de identificação supracitados ao “suspeito 財務 Choi Mou” para que este o ajudasse a guardá-los.
5.
Durante o período de jogos, a “suspeita A” ficou a cargo de retirar os juros do ofendido, o “suspeito D”, o “suspeito 財務Choi Mou” e o “suspeito B” ficavam ao lado a vigiar o ofendido. Até às 03h00 do dia 1 de Julho de 2016, o ofendido perdeu todo o empréstimo acima referido, nos jogos supramencionados, foi retirado os juros no valor total de mais de HKD$10.000,00.
6.
E depois, o 1º arguido F e o 2º arguido A acompanharam o ofendido para voltar ao quarto n.º XX do Hotel JW Marriott Macau, a fim de obter a quantia por reembolsar. No dia 6 de Julho de 2016, o ofendido telefonou à sua irmã mais nova G, solicitando um empréstimo no valor de HKD$100.000,00 para reembolso de dívida de jogos, como G estava preocupada de alguém fazer mal ao ofendido, nesta situação, pelas 03h00 do dia 7 de Julho de 2016, G participou e pediu ajuda aos agentes da polícia. Pelas 16h00 do dia 7 de Julho de 2016, a polícia levouG ao Restaurante TW Tsui Wah do Casino Galaxy para ter encontro com o ofendido. Mais tarde, a polícia salvou o ofendido que veio a ter encontro, ao mesmo tempo, interceptou o 1º arguido F que tinha seguido o ofendido para obter a quantia por reembolsar. Posteriormente, no quarto n.º XX, a polícia interceptou o 2º arguido A que saiu do quarto para fazer as compras e voltou ao quarto acima referido.
7.
O decurso de jogos do ofendido foi parcialmente fotografado pelo sistema de vigilância do Casino (vide a fls. 128 a 132 dos autos, auto de vista de discos vídeo, que aqui se dá por integralmente reproduzido)

8.
O “suspeito D” ofereceu a verba ou outros recursos destinados aos jogos ao ofendido no casino, retirando destes os juros vultosos, a fim de obter lucro. Além disso, com a intenção de obter a vantagem patrimonial, os 2 arguidos agiram de forma livre, voluntária e conscientemente, prestaram auxílio material junto do “suspeito D”.
9.
Os 2 arguidos e vários associados de identificações desconhecidas, agiram de forma livre, voluntária e conscientemente, praticaram os actos através de mútuo acordo e de distribuição de trabalho, tirando os documentos de identificação do ofendido para servirem de garantia das dívidas de usura.
10.
Os 2 arguidos bem sabiam que as condutas referidas eram proibidas e punidas pela lei.
De acordo com o CRC, o 1º arguido tem registos criminais:
① Segundo o processo n.º CR3-12-0202-PSM, no dia 3 de Novembro de 2012, o 1º arguido foi condenado na pena de prisão de 4 meses, por ter cometido, pela prática, um crime de “condução sob influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas”, cuja execução foi suspensa por dois anos, pena essa acompanhada de regime de prova previsto pelo artigo 51º do Código Penal e o tratamento de reabilitação de toxicodependência, sujeitou-se o 1º arguido ao acompanhamento do Departamento de Reinserção Social; segundo o despacho proferido no dia 14 de Novembro de 2013, a suspensão da execução da pena de prisão do 1º arguido foi revogada, o 1º arguido tinha que cumprir a pena de 4 meses de prisão condenada, o 1º arguido interpôs contra a decisão do despacho ao TSI mas foi rejeitado o recurso; o 1º arguido já cumpriu a pena.
② Segundo o processo n.º CR4-15-0086-PSM, no dia 30 de Abril de 2015, o 1º arguido foi condenado pelo TJB na pena de 6 meses de prisão, por ter cometido, pela prática, um crime de “condução sob influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas”; foi condenado na pena de 2 meses de prisão, por ter cometido, pela prática, um crime de “consumo ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas”, em cúmulo jurídico, condena o mesmo na pena efectiva de 7 meses de prisão; o 1º arguido já cumpriu a pena.
De acordo com o CRC, o 2º arguido tem registo criminal:
① Segundo o processo n.º CR3-14-0124-PCC, no dia 27 de Março de 2015, o 2º arguido foi condenado pelo TJB na pena de 2 meses de prisão, por ter cometido, pela prática, um crime de “consumo ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas”, cuja execução foi suspensa por um ano, pena essa acompanhada de regime de prova previsto pelo artigo 51º do Código Penal, sujeitou-se o 2º arguido ao acompanhamento do Departamento de Reinserção Social, submeteu-se periodicamente ao exame de drogas; a pena aplicada neste processo foi extinta.
O 1º arguido declarou que tem como habilitações literárias o 3º ano do ensino secundário, trabalha como distribuidor, aufere mensalmente MOP$20.000,00, e tem a seu cargo a mulher, o filho e a filha.
O 2º arguido declarou que tem como habilitações literárias o 1º ano do ensino secundário, sem receita, dependendo dos familiares”; (cfr., fls. 229 a 230-v e 296 a 302).

Do direito

3. Vem o arguido recorrer do Acórdão que o condenou como cúmplice da prática de 1 crime de “usura para jogo com exigência ou aceitação de documento”, p. e p. pelo art. 14° da Lei n.° 8/96/M, na pena de 1 ano e 9 meses de prisão, suspensa na sua execução por 2 anos e 6 meses, e na pena acessória de proibição de entrada nas salas de jogo por 3 anos.

Traz o mesmo à apreciação desta Instância, 3 questões.

A primeira, relacionada com a sua “falta de efectiva representação e de vontade consciente da sua conduta” para efeitos de poder considerar preenchido o “elemento subjectivo” do crime pelo qual foi condenado, e, a segunda, quanto à “adequação da qualificação da sua conduta” como a prática do dito crime (de “usura para jogo com exigência ou aceitação de documento”).

A terceira, questionando a justeza da “pena acessória” que lhe foi aplicada, (e que se tratará a final).

E, como já se deixou adiantado, apresenta-se-nos evidente que nenhuma razão lhe assiste quanto à sua “condenação” pelo dito crime, havendo-se assim que rejeitar, nesta parte, o presente recurso nos termos do art. 407°, n.° 6, al. b) e art. 410°, n.° 1 do C.P.P.M..

Aliás, para se ver da total carência de razão do ora recorrente, basta uma leitura ao douto Parecer do Ministério Público atrás transcrito, onde se dá clara e cabal resposta às questões pelo mesmo trazidas à apreciação deste T.S.I..

Seja como for, e a título de complemento, consigna-se o que segue.

–– Comecemos, como nos parece lógico, pela 2ª questão.

Diz o recorrente que “O crime de “exigência ou aceitação de documento” não subsiste nem tem autonomia quando o arguido não seja igualmente condenado pelo art. 13.°, isto porque o art. 14.° é um mero destaque emanado do crime do art. 13.° para efeitos de elevação da respectiva moldura penal, superior à do constante do art. 13.°, por referência ao art. 219.° do Código Penal”, e que “Assim sendo, se o recorrente não cometeu e, pois, não foi condenado pelo crime do art. 13.°, não poderia ter sido condenado pelo delito sediado no art. 14.°”; (cfr., concl. 11ª e 12ª).

Porém, só por manifesto equívoco se poderá ter chegado a tal entendimento, já que o Acórdão recorrido tratou da questão em termos que se nos afiguram claros.

Vejamos.

Ambos os arguidos estavam pelo Ministério Público acusados da prática de “1 crime do art. 13°”, e “1 crime do art. 14°”; (cfr., acusação a fls. 150 a 151-v).

E, no Acórdão ora recorrido, depois de se fazer referência a tal juízo acusatório, e após de se decidir da matéria de facto, teve o Colectivo a quo o cuidado de explicitar que “O Crime de Usura para Jogo previsto no artigo 13° da Lei n.° 8/96/M é a forma fundamental de crime, mas o crime de Exigência ou Aceitação de Documentos previsto no artigo 14° da Lei n.° 8/96/M é o crime qualificado dele”, consignado, ainda, posteriormente, que “Nestes termos, o 1° arguido F e o 2° arguido A foram acusados em cometer, pela prática, em co-autoria material, na forma consumada e respectiva, um crime de “Usura para Jogo” previsto e punível pelo artigo 13°, n.° 1 da Lei n.° 8/96/M, em 22 de Julho, conjugado com o artigo 219°, n.° 1 do Código Penal, e um crime de “Exigência ou Aceitação de Documentos” previsto e punível pelo artigo 14° da Lei n.° 8/96/M, em 22 de Julho, passando a condenar:
O 1° arguido F e o 2° arguido A, da qualidade de cúmplice, cometeram, na forma consumada, um crime de “Exigência ou Aceitação de Documentos” previsto e punível pelo artigo 14° da Lei n.° 8/96/M, em 22 de Julho, (…)”, (cfr., fls. 308 a 310), neste mesmo sentido se vindo a consignar em sede do dispositivo; (cfr., fls. 312 e 313).

E, perante isto, e porque “ocioso”, mais não se mostra de dizer sobre a questão.

–– Quanto à alegada falta do “elemento subjectivo”.

Perante a decisão da matéria de facto e a factualidade dada como provada e atrás retratada, impõe-se, também, aqui concluir que incorre o recorrente em novo equívoco.

Com efeito, diz que ficou por demonstrar que “agiu com vontade e representação”, considerando, depois, que se incorreu em “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”; (cfr., concl. 1ª a 9ª e 10ª), afigurando-se-nos confundir “questões distintas”.

Vejamos.

Em síntese, e para abreviar, o vício de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão” constitui uma questão que apenas se coloca em sede da “decisão da matéria de facto”, e tão só ocorre “quando o Tribunal não se pronuncia sobre toda a matéria objecto do processo”; (cfr., v.g., os Acs. deste T.S.I. de 14.12.2017, Proc. n.° 1081/2017, de 25.01.2018, Proc. n.° 1149/2017 e de 14.06.2018, Proc. n.° 451/2018, podendo-se também sobre o dito vício e seu alcance, ver o Ac. do Vdo T.U.I. de 24.03.2017, Proc. n.° 6/2017).

No caso, inexiste qualquer “insuficiência” porque o Colectivo investigou e emitiu expressa pronúncia sore toda a dita matéria objecto do processo, elencando a matéria que resultou “provada” e “não provada”, explicitando, adequadamente, o porque desta sua convicção e decisão; (cfr., fls. 296 a 306).

Por sua vez, razão também não tem o recorrente quando afirma que ficou por demonstrar que “agiu com vontade e representação”, pois que, como se colhe da matéria de facto dada como provada e como – bem – se salienta no douto Parecer do Ministério Público, “Com excepção do telefonema feito pelo ofendido à suspeita A, toda a acção em que se substancia a prática do ilícito se desenrola na presença do recorrente, que acompanhou os demais suspeitos e arguido, bem como o ofendido, em todos os locais relevantes para a prática consumada da usura, como se retira dos factos 2.°, 3.°, 4.°, 6.°, 8.° e 9.° dados como provados. (…)”, cabendo notar que para um possível acolhimento do entendimento do ora recorrente, necessário seria que provado estivesse que o mesmo sofresse de (grave) anomalia psíquica e que em virtude desta provado também estivesse que fosse totalmente incapaz de entender/compreender toda a realidade a sua volta, o que, como se deixou retratado, não foi o que sucedeu, (tendo-se antes provado o inverso).

Dito isto, à vista está a solução em relação à inconformada condenação do ora recorrente quanto ao crime de “usura para jogo com exigência ou aceitação de documento”.

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–– Aqui chegados, eis o que se nos oferece dizer quanto à pretensão pelo recorrente apresentada em relação à “sanção acessória” de interdição de entrada nas salas de jogo.

Pois bem, diz o recorrente que se devia “descontar” o período em que, no decurso do processo, e em virtude de medida de coacção a que esteve sujeito, esteve “proibido de entrar nas salas de jogo”, invocando uma aplicação analógica do art. 74° do C.P.M..

E, também aqui, não se pode acolher esta sua pretensão.

Com efeito, e independentemente do entendimento que se possa ter sobre a invocada “aplicação analógica”, (cfr., v.g., o Ac. da Rel. de Évora de 26.04.2016, e o de Fixação de Jurisprudência do S.T.J. de 21.05.2009, pelo recorrente citados, assim como o da Rel. de Lisboa de 25.01.2005, C.J. XXX, Tomo 1, pág. 131, e o deste T.S.I. de 09.01.2014, Proc. n.° 700/2013), importa atentar que o referido “desconto”, (e ainda que da pena principal de prisão), não constitui “decisão” que tem de constar, (expressamente), da sentença.

Aliás, tenha-se em conta o estatuído no art. 355° do C.P.P.M. sobre os “requisitos da sentença” e o correspondente art. 360° (do mesmo código) para se constatar também que a (eventual) omissão do referido desconto não integra qualquer “nulidade”.

Como é óbvio, é “aconselhável” e de “boa prática”, até mesmo, atento o “princípio da economia processual”.

Porém, não é “obrigatório”; (cfr., v.g., o Ac. da Rel. de Évora de 18.02.2003, Proc. n.° 110/02, in C.J. XXVII, Tomo 1, pág. 261 e o deste T.S.I. de 07.12.2011, Proc. n.° 770/2011).

E, a ser assim, não sendo decisão que (sob pena de nulidade) se impunha ao Tribunal recorrido tomar aquando da prolacção da decisão recorrida, e, como se viu, não a tendo proferido, adequado parece de considerar tratar-se (agora) de uma “questão nova”, não sendo assim o presente “recurso” o meio processual próprio para o seu conhecimento, o que acarreta necessariamente a não admissão do recurso na parte em questão.

Tudo visto, resta decidir como segue.

Decisão

4. Em face do exposto, decide-se:
- rejeitar o recurso quanto à questão da condenação do arguido pelo crime de “usura para jogo com exigência ou aceitação de documento”;
- não conhecer do recurso quanto à questão em relação à pena acessória, (desconto).

Pagará o arguido a taxa de justiça que se fixa em 4 UCs, e como sanção pela rejeição do recurso o equivalente a 3 UCs; (cfr., art. 410°, n.° 3 do C.P.P.M.).

Registe e notifique.

Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.

Macau, aos 20 de Setembro de 2018
José Maria Dias Azedo
Proc. 678/2018 Pág. 30

Proc. 678/2018 Pág. 29