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Processo n.º 882/2016 Data do acórdão: 2018-9-24
Assuntos:
– art.º 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal
– acidente de viação
– reparação dos danos não patrimoniais
– art.os 489.o, n.os 1 e 3, do Código Civil
– período total de hospitalização
– indemnização da perda da capacidade de ganho
– incapacidade permamente parcial
– posição jurídica do Tribunal de Última Instância
S U M Á R I O


1. Verifica-se erro notório na apreciação da prova como vício aludido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal, quando se mostra patente a violação de quaisquer normas jurídicas sobre o valor legal das provas, ou de quaisquer regras da experiência da vida humana ou de quaisquer leges artis no julgamento de factos.
2. O montante destinado à reparação dos danos não patrimoniais da demandante só poderia fixado com justeza à luz dos art.os 489.o, n.os 1 e 3 (primeira parte), do Código Civil, depois de decidido, a nível da indagação da matéria de facto, qual o período total de hospitalização da demandante, pois um período mais longo da hospitalização causaria natural e compreensivelmente mais incómodos e transtornos à vida normal dela.
3. Sobre a questão de indemnização da perda da capacidade de ganho por incapacidade permamente parcial de 35% sofrida pela demandante recorrente na sequência do acidente de viação dos autos, é de seguir a posição jurídica já assumida pelo Tribunal de Última Instância no Acórdão de 25 de Abril de 2007 do Processo n.o 20/2007, reafirmada no Acórdão de 7 de Novembro de 2012 do Processo n.o 62/2012.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 882/2016
(Autos de recurso penal)
  Recorrente (demandante civil): A (A)





ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformada com o acórdão proferido a fls. 169 a 176 do Processo Comum Colectivo n.o CR2-15-0357-PCC (com enxertado pedido cível de indemnização emergente de acidente de viação) do 2.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base (TJB), veio a lesada demandante A (A) recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), apontando, na sua motivação apresentada a fls. 210 a 223 dos presentes autos correspondentes, à decisão cível aí tomada pelo TJB:
– o vício de erro notório na apreciação da prova aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal (CPP) na parte em que o Tribunal sentenciador não deu por provado, ao contrário do teor dos documentos médicos juntos aos autos, que ela tinha ficado hospitalizada também no período de 18 de Julho a 29 de Outubro de 2014, julgamento de facto esse que fez com que esse Tribunal não tenha reconhecido que ela tinha faltado ao trabalho, conforme o alegado na petição cível, no período total de 2 de Julho a 25 de Novembro de 2014, ao total de 147 dias;
– a injusteza no montante de MOP250.000,00 fixado no acórdão recorrido para reparação dos seus danos não patrimoniais, por esse montante dever ser aumentado para MOP300.000,00, atentas as circunstâncias fácticas já apuradas;
– e a injusteza da decisão, tomada no mesmo acórdão, mas desconforme com a posição jurídica firmada no Acórdão de 7 de Novembro de 2012 do Processo n.o 62/2012 do Tribunal de Última Instância, de não fixação de um montante autónomo para a reparação da perda da capacidade de ganho dela devido à sua incapacidade permanente parcial de 35% sofrida na sequência do acidente de viação dos autos, pelo que o TSI deveria passar a decidir que a perda da capacidade de ganho dela pudesse ser indemnizada pelo montante de MOP200.000,00.
Ao recurso, responderam o arguido B (B) e a demandada Companhia de Seguros X, S.A.R.L. (X保險有限公司) igualmente no sentido de improcedência da argumentação da recorrente (cfr. em detalhes, o teor das respostas ao recurso apresentadas, respectivamente, a fls. 228 a 229 a 230 a 245).
Subidos os autos, pronunciou-se a Digna Procuradora-Adjunta, em sede de vista a fl. 258, no sentido de não ter legitimidade para emitir parecer por estar em causa matéria meramente civil.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cabe decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte:
1. O acórdão ora recorrido foi proferido a fls. 169 a 176, cujo teor se dá por aqui integralmente reproduzido.
2. Nesse acórdão, só a demandada seguradora ficou condenada a pagar indemnização à demandante, tendo o arguido ficado absolvido do pedido cível, por o montante total de indemnização reclamado pela demandante estar ainda contido dentro do valor segurado no respectivo contrato de seguro (cfr. nomeadamente o teor do último parágrafo da fundamentação jurídica do acórdão recorrido, a fl. 175).
3. Constam de fls. 24, 25 e 32 dos autos três documentos médicos, cujo teor se dá por aqui integralmente reproduzido.
Do relatório médico de fl. 24, subscrito em 6 de Agosto de 2014 por uma pessoa médica do Centro Hospitalar Conde de São Januário, consta que a doente A se dirigiu, em 17 de Julho de 2014, ao Hospital Kiang Wu para continuar a ser tratada (cfr. as duas últimas linhas do conteúdo nuclear desse relatório).
Da resposta escrita, de fl. 25, subscrita em 12 de Setembro de 2014 pelo Hospital Kiang Wu ao Senhor Comandante do Corpo de Polícia de Segurança Pública, consta que a doente A se encontra ainda, nessa data, internada nesse hospital para tratamento (cfr. o último parágrafo dessa resposta).
Do relatório de perícia médico-legal feita em 9 de Dezembro de 2014, de fl. 32, por um médico do Centro Hospitalar Conde de São Januário, consta que a examinada A recebeu tratamento nesse hospital e no Hospital Kiang Wu, e ficou internada até 25 de Novembro de 2014 (cfr. o primeiro parágrafo do conteúdo nuclear desse relatório).
4. Na fundamentação do acórdão recorrido, o Tribunal sentenciador afirmou (no segundo parágrafo da página 11 do respectivo texto decisório, a fl. 174) que conforme os relatórios médicos dos autos, nomeadamente os documentos de fls. 41 e 73, fica revelado que a ofendida ficou internada em hospital durante os períodos de 2 a 17 de Julho de 2014 e de 30 de Outubro a 25 de Novembro de 2014. E na fundamentação probatória do mesmo acórdão, esse Tribunal afirmou (no último parágrafo da página 6 do respectivo texto decisório, a fl. 171v) que a livre convicção sobre os factos se formou com base em dados, prova documental, declarações do arguido e da ofendida e depoimentos de testemunhas.
5. Na petição cível inicialmente apresentada, pediu a demandante a reparação, em montante não inferior a MOP300.000,00, dos seus danos não patrimoniais, sem menção ainda da questão da sua incapacidade permanente parcial (cfr. os pontos 25 a 31 da petição cível inicial).
6. No requerimento de fls. 113 a 116 dos autos, de ampliação do pedido civil de indemnização, a demandante reclamou a reparação pecuniária, em montante não inferior a MOP200.000,00, da sua perda da capacidade de ganho por causa da sua incapacidade permanente parcial, citando para o efeito o Acórdão do Processo n.o 62/2012 do Tribunal de Última Instância (cfr. os pontos 9, 11, 13 e 14 desse requerimento).
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
É de observar, de antemão, que este TSI, como tribunal ad quem, só tem obrigação de decidir das questões material e concretamente colocadas pela parte recorrente nas conclusões da respectiva motivação, e já não de aquilatar da justeza ou não de todos os argumentos invocados pela parte recorrente na respectiva motivação para sustentar a procedência da sua pretensão (neste sentido, cfr., nomeadamente, os arestos deste TSI nos seguintes processos penais: de 4/3/2004 no processo n.° 44/2004, de 12/2/2004 no processo n.º 300/2003, de 20/11/2003 no processo n.º 225/2003, de 6/11/2003 no processo n.° 215/2003, de 30/10/2003 no processo n.° 226/2003, de 23/10/2003 no processo n.° 201/2003, de 25/9/2003 no processo n.º 186/2003, de 18/7/2002 no processo n.º 125/2002, de 20/6/2002 no processo n.º 242/2001, de 30/5/2002 no processo n.º 84/2002, de 17/5/2001 no processo n.º 63/2001, e de 7/12/2000 no processo n.º 130/2000).
Nota-se entretanto que o arguido não tem interesse em agir para responder ao recurso da demandante, por o montante total de indemnização reclamado por esta estar ainda contido dentro do valor segurado pela seguradora no respectivo contrato de seguro.
É de começar pela questão de erro notório na apreciação da prova quanto ao período de baixa hospitalar da demandante, a qual se insurgiu contra o entendimento do Tribunal recorrido na parte respeitante à sua alegada baixa hospitalar também no período de 18 de Julho a 29 de Outubro de 2014.
Sempre se diz que se verifica erro notório na apreciação da prova como vício aludido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP, quando se mostra patente a violação de quaisquer normas jurídicas sobre o valor legal das provas, ou de quaisquer regras da experiência da vida humana ou de quaisquer leges artis no julgamento de factos.
No caso sub judice, examinado também o teor dos três documentos médicos de fls. 24, 25 e 32 dos autos (na parte já acima referida na parte II do presente acórdão de recurso), mostra-se realmente patente que o Tribunal recorrido violou pelo menos legis artis ao não ter dado por provado que a demandante também se encontrava hospitalizada no período de 18 de Julho a 29 de Outubro de 2014.
Portanto, procede o recurso da demandante nesta parte, pois esses três documentos dão para provar também esse período de hospitalização inclusivamente alegado no pedido cível.
Daí que há que reenviar o processo para novo julgamento (nos termos ditados dos art.os 418.o, n.os 1 e 3, do CPP), a fim de indagar, por um novo Tribunal Colectivo, sobre esse período de hospitalização no Hospital de Kiang Wu inclusivamente alegado pela demandante, para se decidir depois novamente do pedido de indemnização das percas salariais correspondentes a todo o período de hospitalização de 2 de Julho a 25 de Novembro de 2014, inicialmente alegado no pedido cível.
Como o montante destinado à reparação dos danos não patrimoniais da demandante só poderia fixado com justeza à luz dos art.os 489.o, n.os 1 e 3 (primeira parte), do Código Civil, depois de decidido que viesse a ser, a nível da indagação da matéria de facto, qual o período total de hospitalização da demandante (pois um período mais longo da hospitalização causaria natural e compreensivelmente mais incómodos e transtornos à vida normal dela), caberá assim ao novo Tribunal Colectivo no TJB decidir também, de novo, do pedido da demandante recorrente de reparação de danos não patrimoniais em valor de MOP300.000,00.
Sobre a questão de indemnização da perda da capacidade de ganho por incapacidade permamente parcial de 35% sofrida pela recorrente na sequência do acidente de viação:
É de seguir mesmo a posição jurídica já assumida pelo Venerando Tribunal de Última Instância no seu douto Acórdão de 25 de Abril de 2007 do Processo n.o 20/2007, reafirmada no seu douto Acórdão de 7 de Novembro de 2012 do Processo n.o 62/2012.
No caso, como o Tribunal ora recorrido, ao fixar o montante de reparação de danos não patrimonais ou danos morais da demandante em MOP250.000,00, já considerou a incapacidade peramanente parcial de 35% sofrida por ela, sem ter especificado, porém, qual o montante fixado para a reparação, em autónomo, dessa incapacidade permantente parcial, e a demandante pretendeu que a sua perda da capacidade de ganho por causa dessa incapacidade permanente parcial fosse ressarcida, em autónomo, em MOP200.000,00, assim, caberá também ao novo Tribunal Colectivo no TJB decidir de novo dessa questão, em conformidade com a referida posição jurídica do Venerando Tribunal de Última Instância.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em reenviar o processo nos termos acima especificados.
Custas do recurso pela parte vencida a final, sem prejuízo do benefício de dispensa de custas já concedido à demandante pela Comissão do Apoio Judiciário.
Macau, 24 de Setembro de 2018.
_________________________
Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
_________________________
Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)



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