Processo nº 427/2018
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data: 04 de Outubro de 2018
ASSUNTO:
- Elemento subjectivo da posse
SUMÁRIO :
- “Comporta como dona do terreno” não significa que agiu na convicção de que fosse como dona do terreno, visto que “comporta como dona do terreno” diz respeito aos comportamentos/actos materiais revelados ao mundo exterior e não ao seu pensamento. Alguém comporta como dona de uma coisa não significa que o faça na convicção de que fosse como proprietária da mesma.
O Relator,
Ho Wai Neng
Processo nº 427/2018
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data: 04 de Outubro de 2018
Recorrente: A, Limitada (Autora)
Recorridos: B, C e D (Réus)
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I – Relatório
Por sentença de 11/01/2018, julgou-se improcedente a acção formulado pela Autora A, Limitada.
Dessa decisão vem recorrer a Autora, alegando, em sede de conclusão, o seguinte:
I. O facto que resultou provado em aplicação do princípio cominatório semi-pleno, por efeito de revelia operante dos RR., que devidamente citados em pessoa não apresentaram contestação, qual seja, "Certo é que desde o início de 1993, a sociedade A. se comporta como dona do prédio [art. 22.º P.I.]", não pode vir a ser dado por não provado na sentença - entendimento contrário faria indevida interpretação e aplicação do art. 405.°, n.º 2, do CPC.
II. A conclusão de facto extraída na sentença de que tal facto tem que se dar por não provado, porque pelo seguinte facto provado - "(I) constituiu a sociedade A. para construir no terreno proveniente da demolição dos prédios n.ºs 2, 4, 6, 8, 10, 12, 14 e n.ºs 5, 7, 9 e 11 do Pátio do Bonzo um novo prédio em regime de propriedade horizontal e vender as fracções assim construídas, arrecadando os ganhos [art. 15.º P.I.]" -, se verificar que a sociedade A. só estabeleceu uma relação de mandato com o promitente-comprador do prédio I ou I2, pois este só encarregou a A. de construir um novo edifício, no terreno que resultaria da anexação do prédios destes autos com outros prédios contíguos, sendo ele I quem iria vender as fracções e arrecadar os respectivos ganhos, parte de uma incorrecta interpretação do que aí está declarado, pois, o que daí consta é que é a sociedade A. quem vai construir o prédio, vender as fracções e arrecadar os ganhos - sendo pois, a sociedade A. o centro de imputação de todos os direitos e obrigações relativas aos mesmos prédios e não I -, pelo que, partindo de uma premissa errada, chega consequentemente a uma conclusão errada, aliás em contradição com os demais factos provados, como:
- Certo é que desde o início de 1993, a sociedade A. se comporta como dona do prédio [art. 22.º P.I.]
- Custeou a demolição do prédio n.º 12 do Pátio do Bonzo - que, contráriamente ao que consta da descrição do registo predial e da matriz predial, já não está aí implantado, estando hoje reduzido a terreno, como se pode verificar do teor do ofício n.º 3885/DURDEP/99 de 26.07.1999 da Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes de Macau, que ordena se proceda à limpeza do terreno sito no Pátio do Bonzo n.ºs 10, 12 e 14 e reparação do tapume em mau estado e do teor da planta n.º 796/1989 de 24.04.2015 emitida pela Direcção dos Serviços de Cartografia e Cadastro, que menciona que a parcela A, com a área de 249 m2, corresponde à totalidade das descrições n.ºs 6737, 6788, 6790, 6791, 6795 e 21563 e é proveniente da demolição dos antigos prédios n.ºs 2-14 do Pátio do Bonzo [art. 23.º P.I.]
- Limpou e vedou o terreno e usou o mesmo para depósito de materiais e equipamentos de construção [art. 24.º P.I.]
- Pagando os encargos inerentes [art. 25.º P.I.]
- E decidindo toda e qualquer questão a ele relativa [art. 26.º P.I.]
- Sendo por todos reconhecida como dona do prédio [art. 27.º P.I.]
- Sem qualquer contestação ou oposição [art. 28.º P.I.].
- A posse da A. é exercida com a convicção de não lesar o direito de outrém por haver adquirido os prédios do seu real proprietário, que a partir da venda, lhe transferiu os prédios, deixando de exercer qualquer acto sobre os mesmos [art. 29.º P.I.]
- E é exercida em nome próprio e sem interrupção há mais de vinte anos [art. 30.º P.I.]
III. Os factos alegados e provados mostram que a sociedade A. aquiriu a posse sobre o prédio pela tradição material da coisa, efectuada pelo anterior possuidor, em 1993, ainda que, assim não fosse, verifica-se que a sociedade A. também teria adquirido a posse de dona do prédio pela prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito, desde 1993, sendo, tanto uma como a outra, formas válidas da aquisição da posse- entendimento contrário faria indevida interpretação e aplicação dos arts. 1263.° do C.C. anterior e 1187.° do C.C. actual.
IV. Dos factos provados elencados na conclusão II, verifica-se que a sociedade A. tem posse do direito de propriedade sobre o prédio desde 1993, ou seja, há mais de vinte anos, que desde essa data até ao presente, a A. passou a exercer os poderes de facto sobre o prédio com intenção de agir corno sua proprietária e, efectivamente, assim agindo, de boa fé, porque convicta que os direitos e a posse sobre o prédio estava na titularidade da pessoa que lho transmitira que, consequentemente, se demitira de todo e qualquer direito ou posse, e a posse, desde o seu início, é pacífica, pública e foi exercida sem interrupção, por prazo superior a vinte anos, o que permite a aquisição do direito de propriedade por usucapião ou prescrição aquisitiva - entendimento contrário faria indevida interpretação e aplicação dos arts. 1287º e 1296º do anterior Código Civil.
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Foram colhidos os vistos legais.
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II – Factos
Vêm provados os seguintes factos pelo Tribunal a quo:
- A sociedade Autora é uma sociedade comercial por quotas de responsabilidade limitada, constituída por escritura de 21 de Setembro de 1991, lavrada a fls. 2v do Livro de Notas para Escrituras Diversas n.º 264B do Segundo Cartório Notarial de Macau e registada sob o n.º XXX na Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis de Macau, com o capital social de MOP$120.000,00 e que tem por objecto a indústria de construção civil, compra, venda e hipoteca de bens imóveis, prestação de serviços conexos com esta actividade e, ainda, o comércio geral de importação e exportação.
- O prédio n.º 12 do Pátio do Bonzo acha-se descrito sob o n.º 6791, a fls. 126v do Livro B-24 na Conservatória do Registo Predial de Macau.
- O direito de propriedade do referido prédio está registado a favor dos Réus B, viúva (1/3), C, casado com E no regime de separação de bens (1/3) e D, casada com F no regime de separação de bens (1/3), na proporção de um terço para cada um, por os haverem adquirido em partilha por sucessão hereditária (Inventário n.º 54/93 do 2.º Juízo, do Tribunal Judicial de Macau), conforme registado pela inscrição n.º 10224, a fls. 199 do Livro G-30K da referida Conservatória do Registo Predial de Macau.
- O referido prédio está registado sob o artigo n.º 20157 na Matriz Predial de Macau constando aí como comproprietários do imóvel os Réus.
- Por contrato promessa de 12 de Junho de 1992, o Réu C, representado por G, portador do Bilhete de Identidade de Cidadão Nacional da República Portuguesa n.º XXX, prometeu vender a I, também conhecido na língua chinesa por I2, o prédio n.º 12 do Pátio do Bonzo, que futuramente iria adquirir por sucessão hereditária, pelo preço total de HKD$270.000,00, a pagar pelo promitente-comprador na data da celebração da escritura definitiva ou na data em que lhe fosse outorgada procuração com amplos poderes gerais de administração e disposição, a vulgarmente designada na gíria de Macau por “tai sau kun”.
- O promitente-comprador I, comprometeu-se a assistir o promitente-vendedor a tratar de todos os procedimentos necessários ao inventário por morte de H e, assim, contratou o advogado K, que usa o nome profissional de K, para tratar de tudo o necessário para o referido efeito.
- O referido advogado preparou a minuta da procuração, em língua inglesa, por dever ser executada no Canadá, a outorgar pelos Réus, os únicos herdeiros de H, e também por seus cônjuges, para efeitos de garantir que qualquer imprecisão nos regimes de bens declarados pelos herdeiros casados pudesse vir a causar qualquer invalidade ao negócio de transmissão do prédio n.º 12 do Pátio do Bonzo.
- Os Réus B, viúva, C e sua mulher E, e D e seu marido F, outorgaram as referidas procurações no dia 20 de Outubro de 1992 perante o Notário Público da Província da Colúmbia Britânica, Canadá, J, conforme reconhecimento do Consulado de Portugal em Vancouver, de 20 de Novembro de 1992.
- Pelas mesmas procurações os Réus e seus cônjuges conferiram a G os seguintes poderes:
Actuar em sua representação, em seu nome ou em nome do procurador ou de qualquer outra forma, conforme for ocasionalmente necessário e em qualquer momento ou momentos durante a vigência deste documento, fazendo, cumprindo, transaccionando e efectuando todos ou quaisquer ou alguns dos seguintes actos, documentos, matérias e coisas, isto é:
1. Iniciar ou participar nos procedimentos de sucessão relativos à herança de H também conhecido por H, falecido, e aí exercer as funções de administrador ou aceitar o exercício de tais funções por outra pessoa, comparecer em quaisquer conferências dos herdeiros do dito H e nessas conferências aceitar a partilha da dita herança entre os herdeiros, a composição do quinhão de cada herdeiro, a adjudicação da herança ou qualquer sua parte a um determinado herdeiro ou herdeiros, o valor porque tal adjudicação deve ser feita e lidar como todas as matérias referidas no artigo 1352 do código de Processo Civil;
2. Requerer ou aceitar o adiamento de tais conferências dos herdeiros de H;
3. Seguir os termos dos procedimentos fiscais da herança que terão lugar após a conclusão dos ditos procedimentos de sucessão e requerer isenção ou dilação a eles relativa.
4. Aceitar citações e notificações e interpor quaisquer recursos contra quaisquer decisões judicias relativamente aos ditos procedimentos de sucessão e desistir ou fazer transacções judiciais ou extrajudiciais que lhe sejam relativas;
5. Requerer quaisquer licenças para construção, reconstrução, demolição e reparação de quaisquer prédios relativamente aos quais, ora ou no futuro, tenha qualquer interesse ou pretensão, indepentemente da sua natureza, e requerer às autoridades relevantes para atribuir número aos ditos prédios ou isentar os ditos prédios de quaisquer taxas, submeter quaisquer projectos e requerimentos ao Departamento de Obras Públicas, ao Leal Senado ou ao Departamento de Finanças de Macau;
6. Requerer qualquer registo provisório ou definitivo junto do Registo Predial, do Registo Comercial ou do Departamento de Finanças de Macau e quaisquer seus averbamentos ou cancelamentos;
7. Aceitar vender ou vender ou penhorar/ hipotecar quaisquer propriedades móveis ou imóveis em que, ora ou no futuro, tenha qualquer interesse ou pretensão, independentemente da sua natureza, designadamente a propriedade do prédio n.º 12 do Pátio do Bonzo, descrito sob o n.º 6791, a fls. 126 verso do Livro B-24 no Registo Predial, nos termos e condições que o Procurador tenha por convenientes;
8. Receber todos os dinheiros que, ora ou no futuro, tenha direito a receber e passar recibo e dar quitação e/ ou dispensar o depósito de tais dinheiros sempre que for requerido como forma de prova desses pagamentos.
E em geral, tanto quanto seja legal, por mim e em minha representação executar e efectuar tudo quanto necessário aos fins deste documento e exercer todos os poderes aqui conferidos de forma plena e efectiva para quaisquer fins e propósitos como eu, pessoalmente, o poderia fazer e desejo e ordeno que este documento seja percebido e interpretado da forma mais ampla e compreensiva.
E aqui autorizo o Procurador a designar substituto ou substitutos (aqui referidos como “Substitutos”) para, em sua posição e lugar, exercer todos e quaisquer dos supraditos poderes, que deverá ser advogado sempre que o exercício de tais poderes o requeira.
E declaro que este documento foi executado no interesse do Procurador e é assim irrevogável e que autorizo o Procurador a entrar em quaisquer actos e contratos consigo mesmo.
Em testemunho do que aqui apus a minha assinatura e selo no dia 20 de Outubro do ano acima exarado.
- O advogado K iniciou o processo de inventário por óbito do mencionado H, que correu seus termos como Inventário Facultativo n.º 54/93 no 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Macau e, findo o mesmo por decisão com trânsito em julgado, procedeu ao registo do direito de propriedade do prédio n.º 12 do Pátio do Bonzo a favor dos herdeiros (nos termos que se deixaram exarados no art. 3.º).
- No dia 15 de Janeiro de 1993 o procurado dos herdeiros e seus cônjuges, G, substabeleceu os poderes que lhe haviam sido conferidos pelos mesmos ao promitente-comprador I, por substabelecimento dessa data outorgado perante a Notária Privada L, em que declarou poder o procurador substabelecido fazer negócio “consigo mesmo”, estar o mesmo dispensado de prestar contas do mandato e de o substabelecimento ser também conferido no interesse do mandatário substabelecido, e entregou-lhe os originais das ditas procurações.
- Os originais das ditas procurações e substabelecimento encontram-se arquivados no Segundo Cartório Notarial de Macau, respectivamente, sob os n.ºs 151, a fls. 545v, 154, a fls. 581v, 153, a fls. 569v, 152, a fls. 557v, 150, a fls. 533v, todos do Maço de Instrumentos Avulsos e Documentos Arquivados a Pedido das Partes n.º 2/1992, e sob o n.º 12, a fls. 58, do Março de Instrumentos Avulsos e Documentos Arquivados a Pedido das Partes n.º 1/1993.
- Nesse mesmo dia 15 de Janeiro de 1993 G procedeu à entrega do prédio devoluto de pessoas e coisas ao promitente-comprador I e recebeu a totalidade do preço que era devido pela venda do imóvel, nos termos do contrato-promessa assinado pelas partes em 12 de Junho de 1992, HKD$270.000,00, através do cheque n.º A0708505 de 15 de Janeiro de 1993 do Banco Tai Fung, havendo assinado cópia do cheque, como prova do seu recebimento.
- I era um investidor e construtor civil conhecido em Macau, desenvolvendo essa sua actividade através de diversas sociedades.
- E constituiu a sociedade Autora para construir no terreno proveniente da demolição dos prédios nºs 2, 4, 6, 8, 10, 12, 14 e nºs 5, 7, 9 e 11 do Pátio do Bonzo um novo prédio em regime de propriedade horizontal e vender as fracções assim construídas, arrecadando os ganhos.
- Detendo na mesma sociedade uma quota de MOP$80.000,00, representativa de 66,6% do capital social.
- Com essa finalidade submeteu anteprojecto de arquitectura para aprovação à Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes de Macau em 27 de Setembro de 1993.
- Mas porque o administrador da Sociedade Autora, I, estava envolvido noutros projectos de construção de grande envergadura, designadamente, prédio de habitação social, no âmbito dos contratos de desenvolvimento para habitação, o desenvolvimento dos acima mencionados prédio ficou adiado.
- No dia 04 de Setembro de 1999 faleceu em Portugal o administrador da sociedade Autora, I, a quem tinham sido outorgadas as procurações pelo Réu.
- E dada a extensão e valor do seu património, a complexidade dos problemas a resolver em Portugal e Macau com o acompanhamento dos diversos projectos em que estava envolvido, o inventário para partilha do seu património levou diversos anos, sendo que só em meados de 2014 se conseguiu fazer registar as quotas na sociedade Autora a favor dos seus herdeiros.
- Não se logrou encontrar qualquer instrumento de substabelecimento das procurações que permitisse titular a aquisição pela sociedade dos referidos prédio, nem encontrar os Réus ou seu procurador G para proceder à outorga de nova procurações, substabelecimento ou para outorgar escritura de venda para a sociedade Autora.
- Custeou a demolição do prédio n.º 12 do Pátio do Bonzo.
- A Autora limpou e vedou o terreno e usou o mesmo para depósito de materiais e equipamentos de construção.
- Pagando os encargos inerentes.
- E decidindo toda e qualquer questão a ele relativa.
- Sendo por todos reconhecida como dona do prédio.
- Sem qualquer contestação ou oposição.
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III – Fundamentação
A sentença recorrida tem o seguinte teor:
“…
Cumpre analisar a matéria que vem alegada, os factos provados e aplicar o direito.
Pede a Autora que seja reconhecida como proprietária do prédio n.º 12 do Pátio do Bonzo em Macau, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 6791, a fls. 126v do Livro B-24, objecto da presente acção.
Para fundamentar a sua pretensão, alega a Autora que, em 12 de Junho de 1992, o 2º Réu prometeu vender o prédio, que iria adquirir por sucessão por morte, a I ou I2 pelo preço de HK$270.000,00; que o promitente-comprador comprometeu-se a assistir o promitente-vendedor a tratar dos procedimentos da sucessão hereditária; que depois de tratados os procedimentos da sucessão hereditária e os Réus adquirido o imóvel, através de substabelecimento de poderes constantes de cinco procurações outorgadas pelos Réus e dos cônjuges do 2º e 3ª Réus, foram conferidos a I ou I2 amplos poderes sobre o prédio incluindo poderes para celebrar negócio consigo mesmo e declarando que a procuração era conferida no interesse do mandatário; que, em 15 de Janeiro de 1993, o prédio foi entregue ao I ou I2 o qual era investidor e construtor civil e o preço foi integralmente pago aos Réus; que I ou I2 constituiu a Autora para construir um edifício novo em regime de propriedade horizontal no terreno dos prédios nºs 2, 4 a 12 e 14 do Pátio do Bonzo e vender as fracções assim construídas, arrecadando ganhos; que, para o feito, submeteu um anteprojecto à DSSOPT em 27 de Setembro de 1993; que o empreendimento ficou adiado devido a demais afazeres do I ou I2; que, em 4 de Setembro de 1999, faleceu I ou I2 cujos bens foram só partilhados em 2014; que, não se logrou encontrar qualquer instrumento de substabelecimento das procurações que permitisse titular a aquisição pela Autora dos referidos prédios, nem encontrar os Réus para proceder à outorga de novas procurações ou outorgar escritura de venda para a Autora; e que era certo que desde o início de 1993, a Autora se comportava como dona do prédio custeando a demolição do prédio, limpando e vedando o terreno, usando o mesmo para depósito de materiais e equipamentos de construção, pagando os encargos inerentes, decidindo toda e qualquer questão a eles relativa sendo por todos reconhecida como dona do prédio sem qualquer contestação ou oposição.
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“Posse é o poder que se manifesta quando alguém actual por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real.” – artigo 1175º do CC.
Conforme Álvaro Moreira e Carlos Fraga, in Direitos Reais, Livraria Almedina, Coimbra, pgs 181, 189 a 190, “Dos artºs 1251º e 1253º do CC (a que correspondem aos artigos 1175º e 1177º do CC de Macau), verifica-se que a posse exige o “corpus” e o “animus” identificando-se o corpus “... como os actos materiais praticados sobre a coisa, com o exercício de certos poderes sobre a coisa” e traduzindo o animus “... na intenção de se comportar como titular do direito real correspondente aos actos praticados.”.
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Dos factos provados, vê-se que, no que se refere aos actos praticados pela Autora sobre o imóvel, está demonstrado que a Autora custeou a demolição do prédio n.º 12 do Pátio do Bonzo, limpou e vedou o terreno e usou o mesmo para depósito de materiais e equipamentos de construção pagando os encargos inerentes do prédio, decidindo toda e qualquer questão a ele relativa, sendo por todos reconhecida com dona do prédio sem qualquer contestação ou oposição com a convicção de não lesar o direito de outrem.
Quanto ao motivo por que a Autora pratica esses actos, está provado que, depois de o ex-administrador da Autora, I ou I2, investidor e construtor civil conhecido de Macau, ter recebido o prédio que prometera comprar aos Réus, constituiu a Autora para construir um edifício novo num terreno formado por vários prédios um dos quais o prédio dos autos a fim de vender as respectivas fracções autónomas a construir arrecadando os ganhos.
Ora, estabelecendo ligação entre a razão de criação e o papel da Autora relativamente ao projecto de desenvolvimento pretendido pelo promitente-comprador do prédio e os actos praticados sobre o prédio pela Autora, não se pode ir além do seguinte: a Autora actuou sob uma relação de mandato ou de representação. Pois, nada permite concluir que a mesma actuou em nome próprio. É que, na falta de qualquer outro facto que demonstre pretensão do promitente-comprador ou dos seus herdeiros de transmitir o imóvel à Autora ou actos que demonstrem a inversão do título da posse por parte da Autora, não se vislumbra como alguém constituído para construir um prédio em certo imóvel passa, sem mais, a considerar-se dona do mesmo simplesmente porque trata do prédio e paga os respectivos encargos.
Nem se diga que ninguém suporta encargos relativamente a bens ou direitos alheios. É que, a Autora não é um total estranho ao promitente-comprador e não está totalmente desligado do prédio. Poi, o promitente-comprador detinha 66.6% do capital social da Autora que foi constituída para construir um edifício no prédio. Nesse contexto, não se estranhe que a Autora trate do prédio suportando os respectivos encargos.
O mesmo se diz em relação ao poder para decidir toda e qualquer questão relativa ao prédio. Pois, tendo em conta a sua génese, cabe à Autora tomar essas decisões em vista do edifício a construir.
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Também não é possível aqui fazer aplicação da norma prevista no artigo 1176º, nº 2, do CC segundo a qual “Em caso de dúvida, presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 1181.º.” Isto porque não consta dos factos alegados pela Autora algo que permita justificar o animus possidendi indispensável para qualificar os actos praticados pela Autora como possessórios.
Senão, vejamos os factos alegados na petição inicial relacionados com a Autora que possam aqui ter interesse.
Em primeiro lugar, invocou-se que, depois da promessa de compra e venda e da entrega do prédio ao promitente-comprador, I ou Ian I, este constituiu a Autora para nele construir um novo edifício e vender as respectivas fracções autónomas arrecadando os ganhos. Desse facto que veio a ser dado como provado vê-se que o centro de imputação dos proveitos era o citado promitente-comprador e não a Autora.
Em seguida, foi alegado que o mesmo promitente-comprador submeteu o respectivo anteprojecto às autoridades administrativas, facto este também provado. Portanto, por aí não se vislumbra qualquer abdicação dos seus direitos sobre o prédio por parte do promitente-comprador.
Depois, sustentou-se que não se lograra encontrar qualquer instrumento de substabelecimento das procurações que permitisse titular a aquisição pela Autora do prédio, nem encontrar os Réus ou o seu procurador para proceder à outorga de novas procurações, substabelecimento ou outorgar escritura de venda para a Autora. É nesse facto que se referiu, pela primeira vez, a aquisição do prédio pela Autora. No entanto, entre a fase em que era o promitente-comprador quem tratava dos assuntos relacionados com o prédio e a morte deste teve lugar e a fase em que se pretendeu que a Autora adquirisse o prédio, nada foi invocado para justificar por que motivo se havia de tentar fazer com que a Autora adquirisse o prédio. Ora, à míngua de factos que fundamentam essa pretensão, designadamente porque assim foi decidido ainda em vida do promitente-comprador ou mesmo depois da morte deste pelos seus herdeiros, essa pretensão não pode ser vista como algo a acontecer como necessário depois da morte do promitente-comprador, visto que este e os seus herdeiros dotavam de personalidade jurídica totalmente autónoma da Autora e nada impõe a devolução sucessória dos bens do promitente-comprador a favor da Autora.
Foi precisamente por força dessa constatação que o facto alegado imediatamente a seguir, ou seja, o artigo 22º da petição inicial, no sentido de a Autora se ter comportado como dona do prédio desde o início de 1993, não foi nem podia ser dado como provado.
Eis, os motivos para não poder considerar que, no presente caso, existam dúvidas acerca da natureza dos actos praticados pela Autora porque os factos alegados por esta nunca permitem concluir que tais actos têm natureza possessória.
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Assim, não estando demonstrado que a Autora exerce posse sobre o prédio desde o início de 1993 como alega, o seu pedido de usucapião do prédio pertencente aos Réus nunca pode proceder.
Nestes termos, é de julgar improcedente o pedido formulado pela Autora.
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IV – Decisão:
Em face de todo o que fica exposto e justificado, o Tribunal julga improcedente a acção e, em consequência, absolver os Réus, B, C e D, do pedido formulado pela Autora, A, Limitada.
Custas pela Autora.
Notifique e Registe...”.
Trata-se duma decisão que aponta para a boa solução do caso, com a qual concordamos a sua íntegra.
Assim, ao abrigo do nº 5 do artº 631º do CPCM, negamos provimento ao recurso, remetendo para os fundamentos invocados na decisão impugnada.
Na verdade, não foi alegado o elemento subjectivo da posse no caso em apreço, pois em lado algum da petição inicial foi alegado que a Autora agiu na convicção de que fosse como proprietária do terreno.
É certo que foi alegado que “A Autora comporta como dona do terreno desde 1993” no artº 22º da petição inicial.
Contudo e salvo o devido respeito, “comporta como dona do terreno” não significa que agiu na convicção de que fosse como dona do terreno, visto que “comporta como dona do terreno” diz respeito aos comportamentos/actos materiais revelados ao mundo exterior e não ao seu pensamento. Alguém comporta como dona de uma coisa não significa que o faça na convicção de que fosse como proprietária da mesma.
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IV – Decisão
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em negar provimento ao recurso interposto, confirmando a sentença recorrida.
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Custas do presente recurso pela Autora.
Notifique e registe.
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RAEM, aos 04 de Outubro de 2018.
Ho Wai Neng
José Cândido de Pinho
Tong Hio Fong
18
427/2018