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Processo n.º 352/2016 Data do acórdão: 2018-10-11
Assuntos:
– difamação
– erro notório na apreciação da prova
– art.º 400.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal
– elementos constantes dos autos
– livre apreciação da prova
– art.º 114.º do Código de Processo Penal
– prova livre
– prova bastante
– contraprova

S U M Á R I O
1. O princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.º 114.º do Código de Processo Penal não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que com incidência sobre o caso concreto em questão não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração. Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova.
2. No concernente à temática da prova livre, as provas são apreciadas livremente, sem nenhuma escala de hierarquização, de acordo com a convicção que geram realmente no espírito do julgador acerca da existência do facto.
3. Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto. Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
4. Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la.
5. O art.º 400.º, n.º 2, corpo, do Código de Processo Penal manda atender também aos elementos constantes dos autos para efeitos de verificação do vício de erro notório na apreciação da prova.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 352/2016
Recorrente (assistente): A
Recorridos (arguidos): B
C




ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformada com a sentença proferida a fls. 293 a 309 do Processo Comum Singular n.° CR1-15-0477-PCS do 1.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, absolutória dos arguidos B e C da acusada autoria material, por cada um deles, de um crime consumado de difamação, p. e p. pelos art.os 174.o, 176.o e 177.o, n.o 1, alínea a), do Código Penal, veio a assistente A, autora da acusação particular então deduzida contra aqueles dois, recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), para pedir o reenvio do processo para novo julgamento ou a condenação dos dois arguidos na acusada prática daquele crime, tendo alegado, para o efeito, essencialmente o seguinte (cfr. em detalhes, o teor da sua motivação apresentada a fls. 318 a 322v dos presentes autos correspondentes):
– houve erro notório, por parte do Tribunal recorrido, na apreciação da prova como vício aludido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal (CPP), dado que esse Tribunal, ao julgar como não provado que o artigo de jornal em causa nos autos tenha sido redigido e reportado por D (cfr. o 1.o facto não provado, respeitante à matéria penal acusada), feriu as regras da experiência da vida humana e a lógica comum;
– por outro lado, detectou-se contradição insanável da fundamentação como vício referido na alínea b) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP, concretamente, entre os 8.o, 11.o e 17.o factos (respeitantes à matéria penal acusada) descritos como provados e os 2.o, 6.o, 15.o e 18.o factos (respeitantes à matéria penal acusada) descritos como não provados, visto que, materialmente falando, o Tribunal recorrido, por um lado, deu por provado que a testemunha (trabalhadora do Jornal “X”) D chegou a entrevistar os dois arguidos, mas, por outro lado, deu por não provado que os dois arguidos tenham chegado a transmitir intencionalmente a essa testemunha rumores negativos respeitantes à própria assistente;
– no caso dos autos, os dois arguidos já transmitiram à testemunha D o que ouviram e souberam, tendo fornecido a esta informações e material suficientes, o que fez directamente com que não só a reportagem em causa tenha sido redigida e publicada, como também a acusação gravemente infundada e inverídica contra a assistente tenha sido reportada de modo amplo ao público, pelo que os factos provados já davam para preencher o tipo legal de difamação acusado aos dois arguidos.
Ao recurso, responderam os arguidos C (a fls. 326 a 329) e B (a fls. 330 a 333), igualmente no sentido de improcedência da argumentação da recorrente.
Respondeu também o Ministério Público (a fls. 338 a 339v), opinando pela manutenção do julgado.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta, em sede de vista, parecer (a fls. 355 a 356v), pugnando também pela improcedência do recurso.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cabe decidir do recurso.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte, com pertinência à decisão:
1. A sentença absolutória penal ora recorrida ficou proferida a fls. 293 a 309, cujo teor integral se dá por aqui integralmente reproduzido.
2. A acusação particular então deduzida pela assistente contra os dois arguidos consta de fls. 220 a 222v, cujo teor integral se dá por aqui integralmente reproduzido.
3. Na audiência de julgamento então realizada perante o Tribunal recorrido, prestou depoimento inclusivamente a testemunha D, arrolada nomeadamente na acusação particular (cfr. o teor da acta da audiência de julgamento na parte concretamente lavrada a fl. 291v).
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Nesse enquadramento, vê-se que a assistente ora recorrente imputou principalmente à decisão absolutória penal recorrida os vícios aludidos nas alíneas c) e b) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP.
Desde já, do vício de contradição insanável da fundamentação (alínea b) do n.o 2 desse artigo):
Após lida a fundamentação fáctica da sentença recorrida na sua globalidade, não se mostra, aos olhos do presente Tribunal de recurso, verificada a contradição apontada a essa fundamentação pela assistente na sua motivação do recurso. Ou seja, não há qualquer contradição irredutível entre os 8.o, 11.o e 17.o factos (respeitantes à matéria penal acusada) descritos como provados e os 2.o, 6.o, 15.o e 18.o factos (respeitantes à matéria penal acusada) descritos como não provados.
Isto porque: uma coisa é estar provado que a testemunha (trabalhadora do Joranl “X”) D chegou a entrevistar os dois arguidos, e outra coisa, logicamente diferente, é não estar provado que os dois arguidos tenham chegado a transmitir intencionalmente a essa testemunha rumores negativos respeitantes à própria assistente.
Improcede o recurso nesta parte.
Passa-se a conhecer do vício de erro notório na apreciação da prova, referido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP:
Sempre se diz que haverá erro notório na apreciação da prova quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis (neste sentido, e de entre muitos outros, cfr. o douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 22 de Novembro de 2000, do Processo n.º 17/2000).
Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.º 114.º do CPP não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que (com incidência sobre o caso concreto em questão) não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
E no concernente à temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– < […]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
O art.º 400.º, n.º 2, corpo, do CPP manda atender também aos “elementos constantes dos autos” para efeitos de verificação do vício de erro notório na apreciação da prova.
Portanto, todos os elementos probatórios examinados em sede própria pelo Ente Julgador ora recorrido também têm que ser examinados na presente sede recursória, para se poder aquilatar da ocorrência ou não desse vício de julgamento de factos.
No caso, o Tribunal a quo teceu a fundamentação probatória da sua decisão sobre a matéria de facto na parte sensivelmente final da página 28 do texto da sentença (a fl. 307), e também no penúltimo parágrafo da página 31 do mesmo texto (a fl. 308).
Da leitura dessa fundamentação probatória, resulta nítido o seguinte raciocínio nuclear do Tribunal a quo aquando da formação da sua convicção sobre os factos: como os dois arguidos negaram a prática dos factos acusados na audiência de julgamento, e a testemunha D depôs na audiência no sentido de não se lembrar muito dos factos em causa, não se pode considerar haver prova suficiente da prática dos factos acusados aos dois arguidos.
Pois bem, depois de vistos todos os elementos probatórios constantes dos autos e então examinados pelo Tribunal recorrido, entende o presente Tribunal de recurso que não é patentemente desrazoável o raciocínio acima referido desse Tribunal. Em suma, não logrou a assistente fazer prova bastante dos factos penais acusados aos dois arguidos.
Por fim, da factualidade já apurada em primeira instância, resulta legalmente justa e correcta a decisão absolutória penal dos dois arguidos.
Naufraga o recurso, sem mais indagação por ociosa ou prejudicada.
IV – DECISÃO
Em sintonia com o exposto, acordam em julgar não provido o recurso.
Custas do recurso pela assistente, com seis UC de taxa de justiça. E fixam em três mil patacas os honorários do Ex.mo Defensor Oficioso do arguido B, a entrar na regra das custas.
Macau, 11 de Outubro de 2018.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)



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