Processo n.º 840/2017
(Recurso em matéria cível)
Data: 13 de Setembro de 2018
ASSUNTOS:
- Erro de julgamento
- Erro na apreciação de provas
SUMÁRIO:
I – O erro de julgamento de facto ocorre quando o juiz decide mal ou contra os factos apurados. Por outras palavras, tal erro é aquele que respeita a qualquer elemento ou característica da situação “sub judice” que não revista natureza jurídica.
II - Há erro no julgamento de facto, quando o Tribunal a quo considera provado, por um lado, um conjunto de factos alegados pelas partes, nos quais se remetem para os documentos juntos aos autos, e, por outro, considera simplesmente não provados os quesitos com conteúdo indexado ao teor desses mesmos documentos, comportando estes informações necessárias à resolução das questões levantadas pelas partes.
III – Perante o erro na apreciação de provas e défice de instrução processual, é de anular a sentença recorrida e mandar repetir o julgamento com vista a corrigir os erros detectados e evitar contradições na decisão final.
O Relator,
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Fong Man Chong
Processo nº 840/2017
(Autos de matéria cível)
Data : 13 de Setembro de 2018
Recorrente :
- BB (BB) (Autor)
Recorridos :
- CC Promotor de Jogo Sociedade Unipessoal Limitada
(CC博彩中介人一人有限公司) (1ª Réu)
- Companhia de Promotor de Jogo DD Limitada
(DD博彩中介人有限公司) (2ª Réu)
- EE Macau, S.A. (EE澳門股份有限公司) (3ª Réu)
- FF (FF) (interveniente principal)
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Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:
I - RELATÓRIO
BB (BB), identificada nos autos, o Autor do processo cível CV1-13-0074-CAO, tendo proposto a respectiva acção no TJB, pedindo que os Réus sejam condenado a restituir-lhe a quantia de MOP$18,388,899.00, acrescida de juros de mora vencidos, à taxa anual legal de 9.75%, bem como os juros que se forem vencendo até ao efectivo e integral cumprimento.
Por sentença de 08/02/2017 a acção foi julgada improcedente, contra a mesma em 09/05/2017 veio o Recorrente/Autor interpor o competente recurso para este TSI, com os fundamentos constantes de fls. 811 a 842, em cujas alegações formularam as seguintes conclusões (fls. 837 a 842):
1. O douto Tribunal a quo julgou não provados os artigos 8.º, 11.º, 12.º, 15.º, 16.º, 18.º, 19.º, 21.º e 22.º da base instrutória;
2. No entanto, o Recorrente entende, salvo o respeito devido, que o douto Tribunal a quo não valorou adequadamente, quanto à matéria de facto vertida nos artigos da base instrutória acabados de elencar, (i) a posição que as várias Rés adoptaram em relação aos factos alegados pelo Autor e aos documentos juntos por este e (ii) a prova documental nos autos e a prova testemunhal produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, cuja reapreciação pelo douto Tribunal ad quem ora se requer;
3. Todos os factos vertidos nos aludidos artigos da base instrutória supra reportam-se ao depósito de fundos do Recorrente junto das 1.ª e 2.ª Rés, nas suas qualidades de promotoras de jogo contratadas pela 3.ª Ré, e vêm, desde logo, confessados pela 1.ª Ré na sua contestação;
4. A 3.ª Ré, no artigo 42.º da respectiva contestação, alega que desconhece sem obrigação de conhecer a matéria de facto ora em apreço, impugnando todos os factos da petição inicial referentes ao depósito sub judice;
5. No entanto, apesar de não ser parte no contrato de depósito que o Recorrente celebrou com a 1.ª Ré, a 3.ª Ré não pode alegar não ter obrigação de o conhecer. Com efeito, nos termos conjugados a Lei n.º 16/2001 e o Regulamento Administrativo n.º 6/2002, designadamente os artigos 30.º e 32.º deste último diploma, impende sobre a 3.ª Ré a obrigação legal de fiscalizar e supervisionar a actividade da 1.ª Ré, promotora de jogo que a 3.ª Ré contratou para exercer a sua actividade própria nos seus casinos (cfr. artigo 10.º da base instrutória, confessado pela 3.ª Ré);
6. Nos termos do n.º 3 do artigo 410.º do CPC: "Se o réu declarar que não sabe se determinado facto é real, a declaração equivale a confissão quando se trate de facto pessoal ou de que o réu deva ter conhecimento […].". A 3.ª Ré tem a obrigação legal de conhecer os factos em causa, designadamente que foi celebrado contrato de depósito entre o Recorrente e a 1.ª Ré e se esta recebeu e não devolveu as quantias indicadas pelo Recorrente, pelo que, a alegação de desconhecimento de tais factos equivale à respectiva confissão;
7. A matéria de facto em causa nos citados artigos da base instrutória está, ainda provada pelos documentos n.ºs 9 e 12 (certidão judicial do processo-crime n.º CR2-12-0196-PCC) juntos com a petição inicial, cuja genuinidade e veracidade não foram impugnadas pelas Rés;
8. O teor de tais documentos foi confirmado pela testemunha GG (GG), que, no excerto do seu depoimento transcrito supra nesta alegação, confirmou a existência da conta de depósito do Recorrente junto da 1.ª Ré e, confrontada com o Doc. 9 da petição inicial, confirmou ser um documento do tipo que viu a 1.ª Ré utilizar na sala de jogo DD;
9. Da conjugação dos aludidos documentos e depoimento, maxime na parte ora transcrita, resulta ainda, salvo o respeito devido, prova dos artigos 8.º, 15.º, 16.º e 18.º da base instrutória.
10. O supra referido depósito efectuado pelo Recorrente junto da 1.ª Ré, para efeitos de utilização na sala de jogo DD, rege-se pelo disposto nos artigos 1111.° e seguintes do Código Civil. O Recorrente depositou uma quantia certa em dinheiro, a qual é necessariamente fungível, na medida em que aquela Ré pode cumprir a sua obrigação de restituição mediante a entrega ao Recorrente de qualquer quantia equivalente à depositada. Pelo que, nos termos do artigo 1131.º do Código Civil, o aludido depósito é irregular, aplicando-se também, na medida do possível, o regime do contrato de mútuo que consta dos artigos 1070.º do Código Civil, por força do artigo 1132.º do mesmo diploma. O aludido depósito efectuado pelo Recorrente é, ainda, gratuito e sem prazo;
11. Da conjugação dos regimes legais dos contratos de depósito e de mútuo, aplicáveis ao depósito irregular, resulta para o depositário a obrigação de entregar o objecto do depósito, logo que notificada pelo depositante para o efeito, o que, in casu, a 1.ª Ré não fez;
12. Nos termos do artigo 29.º do Regulamento Administrativo n.º 6/2002, as Concessionárias, como é o caso da 3.ª Ré, são solidariamente responsáveis pelas actividades desenvolvidas nos casinos pelas promotoras de jogo, seus administradores e colaboradores. Desta norma decorre que a 3.ª Ré é responsável, solidariamente com a 1.ª Ré, pela restituição ao Recorrente do aludido depósito de HKD17.853.300,00 (na medida em que a 1.ª Ré é promotora de jogo contratada pela 3.ª Ré para promover jogos de fortuna ou azar nos seus casinos - cfr. artigo 10.° da base instrutória, provado por confissão da 3.ª Ré nos termos conjugados de fls. 676, 691 e 713);
13. A 1.ª Ré alega que os seus funcionários levantaram, ilicitamente, fundos dos depósitos dos clientes, incluindo o do ora Recorrente, facto que se não concede. No entanto, nos termos do artigo 31.º do mesmo Regulamento Administrativo n.º 6/2002, as sociedades promotoras de jogos de fortuna ou azar, como é o caso da 1.ª Ré, são solidariamente responsáveis com os seus empregados e colaboradores pela actividade por estes desenvolvida nos casinos, pelo que, ainda que a falta de fundos se devesse à actuação ilícita dos seus respectivos funcionários, o que não se concede, a 1.ª Ré sempre seria solidariamente responsável (com os seus funcionários) pela restituição integral do aludido depósito ao Recorrente;
14. E, por via do citado artigo 29.º do Regulamento Administrativo n.º 6/2002, a 3.ª Ré seria igualmente responsável, a título solidário, por essa restituição;
15. Ao contrário do que defende a 3.ª Ré, o Regulamento Administrativo n.º 6/2002 não deve ser entendido como limitado ou circunscrito pela Lei n.º 16/2001, sendo pois totalmente improcedente a tese daquela Ré no sentido que a sua responsabilidade solidária com os promotores de jogo só funcionaria perante o Governo da RAEM. Não tendo decidido nesse sentido, a douta Sentença em crise, de fls. 757 a 763, violou o artigo 29.º do Regulamento Administrativo n.º 6/2002, pelo que deve ser revogada e substituída por outra que condene as 1.ª e 3.ª Rés, solidariamente, a restituir o depósito do Recorrente;
16. Em qualquer caso, ainda que sejam julgados não provados os factos vertidos nos artigos 8.º, 11.º, 12.º, 15.º e 16.º da base instrutória por, como entendeu o douto Tribunal a quo na resposta à reclamação ao Acórdão sobre a matéria de facto de 28/11/2016, terem sido impugnados pela 3.ª Ré, tal argumento não é procedente nem pode aproveitar à 1.ª Ré, que os confessou. Daqui decorre que a douta Sentença em crise, de fls. 757 a 763, deveria, salvo o respeito devido, ter condenado a 1.ª Ré no pedido;
17. Não o fazendo, a douta Sentença recorrida acabou por incorrer na violação dos artigos 1111.º e 1118.º do Código Civil, nos termos dos quais a 1.ª Ré (confessada depositante) tem o dever de restituição da quantia confessadamente depositada, tal como exigido pelo Recorrente (cfr. factos assentes] e M) - sendo inoponíveis ao ora Recorrente, conforme exposto supra, quaisquer das justificações apontadas pela 1.ª Ré para não restituir tal quantia, pelo que deve a douta Sentença em crise ser revogada.
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Notificada, a 3.ª Ré veio a apresentar as suas respostas às alegações (fls. 870 a 884), tendo formulado as seguintes conclusões:
1. Vem o Autor, BB, recorrer do acórdão constante de fls. 757 e seguintes dos autos que julgou a acção por si movida improcedente por não provada e, consequentemente, absolveu as Rés do pedido.
2. Para esse efeito, o Autor, ora Recorrente, alega, sumariamente, que o douto Tribunal a quo não valorou adequadamente não só a posição que as várias Recorridas adoptaram em relação aos factos alegados pelo Recorrente e aos documentos juntos por este, mas também a prova documental nos autos e a prova testemunhal produzida em sede de audiência de discussão e julgamento.
3. Como seguidamente se demonstrará, ressalvado o devido respeito por opinião diversa, o acórdão recorrido não padece de qualquer vício, não merecendo qualquer reparo.
Sobre o cumprimento do ónus de impugnação
4. O Recorrente alega que a impugnação da matéria de facto, expressa nos Quesitos 8.º, 11.º, 12.º, 15.º e 16.º da Base Instrutória, relativa ao depósito de fundos pelo Recorrente junto das Recorridas CC PROMOTOR DE JOGO SOCIEDADE UNIPESSOAL LIMITADA e COMPANHIA DE PROMOTOR DE JOGO DD LIMITADA, por parte da Recorrida EE MACAU, S.A. com fundamento no desconhecimento de tal matéria, sem a obrigação legal de a conhecer, não satisfaz o ónus de impugnação estabelecido no artigo 410.º n.º 3 do Código de Processo Civil.
5. Para esse efeito, o Recorrente arguiu que encontrando-se a Recorrida EE obrigada à fiscalização da actividade dos promotores de jogo, nos termos do disposto no artigo 30.º alínea 5) do Regulamento Administrativo n.º 6/2002, esta terá a obrigação legal de conhecer tais factos.
6. O legislador pretende com a expressão “de que o réu deva ter conhecimento” cobrir os casos em que, pela natureza do facto e pelas circunstâncias concretas em que ele se produziu, o juiz deve entender, segundo o seu prudente arbítrio, usando em conformidade com as regras da experiência, que a parte dele teve conhecimento.
7. O Prof. LEBRE DE FREITAS, no seu comentário ao artigo 490.º do Código de Processo Civil português , expõem que a expressão “de que o réu deva ter conhecimento” não se traduz numa dicotomia de conceitos, onde por um lado teríamos um relativo factos pessoais do réu e por outro, um relativo factos de que o réu deva ter conhecimento, fundado num dever ético de conhecimento. Pelo contrário, a utilização pelo legislador da referida terminologia visa tão-somente visa reforçar o conceito de facto pessoal expresso no normativo.
8. Assim, o dever de conhecimento a que se refere o artigo 410.º n.º 3 do Código de Processo Civil, assenta fundamentalmente nas regras da experiência e não num qualquer plano ético ou jurídico. Desta forma, um réu deverá ter conhecimento de certo facto quando normalmente o não possa ignorar.
9. A doutrina e jurisprudência supra citadas são unânimes na caracterização da expressão "de que o réu deva ter conhecimento" como um elemento caracterizador do que constitui um facto pessoal.
10. Este entendimento é também perfilhado pelo Mmo. Juiz VIRIATO MANUEL PINHEIRO DE LIMA, ao indicar que "factos pessoais do réu ou de que deva ter conhecimento são acções ou percepções suas".
11. Dessa forma, não basta a argumentação avançada pelo Recorrente - que a Recorrida EE, por mera virtude da obrigação de fiscalização plasmada no artigo 30.º alínea 5) do Reg. Adm. n.º 6/2002, deviria ter conhecimento da relação contractual (e seu conteúdo) estabelecida entre a Recorrida CC e o Recorrente, no alegado contexto de um depósito irregular - para que se possa estabelecer a presunção de que tal relação contratual, na qual a Recorrida EE não participou e lhe é alheia, lhe é, afinal, pessoal.
12. Contraposta à argumentação do Recorrente, a doutrina e jurisprudência acima citada obrigam, ao invés, à seguinte consideração: de acordo com as regras da experiência, resultaria a verificada a probabilidade da Recorrida EE de conhecer os factos descritos nos quesitos 8.º, 11.º, 12.º, 15.º, 16.º, 18.º, 19.º, 21º e 22.º da Base Instrutória?
13. Primeiro, a Recorrida EE e a Recorrida CC são pessoas colectivas completamente distintas, sem qualquer relação ou ligação ao nível societário ou orgânico. Com efeito, conforme resulta da alínea E) dos Factos Assentes e do quesito 10.º da Base Instrutória dado como provado, a ligação entre as duas sociedades Recorridas resulta da relação contratual estabelecida com a outorga do contrato de promoção de jogos de fortuna ou azar em casino.
14. Segundo, ora, se é verdadeiro que, por virtude do contrato celebrado, ao abrigo do artigo 30.º al. 5) do Reg. Adm. n.º 6/2002, impende sobre a Recorrida EE, enquanto subconcessionária de jogos de fortuna e azar em casino, uma obrigação de fiscalizar a actividade dos promotores de jogo, é igualmente verdade que de tal obrigação não resulta um poder de fiscalização ilimitado da subconcessionária sobre o promotor, conforme parece adiantar o Recorrente na sua alegação.
15. Um contrato de promoção de jogos de fortuna ou azar em casino celebrado entre um promotor de jogo e uma sub/concessionária é subsumível numa relação de prestação de serviços. No contrato de prestação de serviço, o prestador obriga-se à prestação de um certo resultado do seu trabalho, que efectuará por si, com autonomia e da forma que considerar mais adequada, sendo, pois, a sua obrigação a do resultado, num quadro de ausência de subordinação jurídica.
16. Assim, não obstante encontrar-se tipificado na lei, o contrato de promoção de jogos de fortuna ou azar em casino - como o serão os contratos identificados na alínea E) dos Factos Assentes (v. fls. 425v dos autos) - insere-se na categoria jurídica dos contratos de prestação de serviços e, consequentemente, deve o seu clausulado e as relações entre as partes contratantes serem analisadas sobre essa luz.
17. A obrigação da Recorrida EE de fiscalizar as Recorridas CC e DD e a consequente obrigação destas de se sujeitarem à fiscalização daquela, não obstante a sua génese legal (artigo 30.º alínea 5) do Reg. Adm. n.º 6/2002), apenas poderá obrigar a Recorrida EE, enquanto entidade fiscalizadora, e as Recorridas CC e DD, enquanto entidades fiscalizadas, nos estritos limites das relações contractuais estabelecida entre si.
18. Desse modo, a fiscalização por parte da Recorrida EE, enquanto subconcessionária de jogo terá de ser, em primeira linha, limitada à actividade de promoção de jogo levada a cabo pelos promotores de jogo, as Recorridas CC e DD, nos casinos da subconcessionária onde tal actividade foi contractada.
19. O Regulamento Administrativo n.º 6/2002, no seu artigo 2.º, define a actividade de promoção de jogo de fortuna ou azar como “a actividade que visa promover jogos de fortuna ou azarou outros jogos em casino, junto de jogadores, através da atribuição de facilidades, nomeadamente de transporte, alojamento, alimentação e entretenimento, em contrapartida de uma comissão ou outra remuneração para por uma concessionária”.
20. Temos então que a fiscalização da Recorrida EE se encontra restringida aos serviços prestados pelas Recorridas CC e DD que sejam subsumíveis no conceito de actividade de promoção de jogo de fortuna ou azar previsto no citado artigo 2.º do Reg. Adm. n.º 6/2002, nos casinos da Recorrida EE onde tais serviços hajam sido contractados.
21. E mesmo dentro da limitação quadro descrita nos pontos anteriores, os poderes de fiscalização concedidos à Recorrida EE, por via da obrigação constante da al. 5) do artigo 30.º do Reg. Adm. n.º 6/2002, da actividade das Recorrida CC e DD não é absoluto.
22. Efectivamente, o artigo 32.º al. 6) consagra e protege da ingerência do sub/concessionário um quadro de autonomia à actividade do promotor de jogo.
23. Uma consequência necessária do conteúdo do normativo legal acima referido será a exclusão das matérias ligadas à autonomia dos promotores de jogo das acções de fiscalização das sub/concessionárias.
24. Identificados que estão os limites ao poder de fiscalização da Recorrida EE, decorrentes da obrigação prevista na alínea 5) do artigo 30.º do Reg. Adm. n.º 6/2002, cumpre agora analisar se o alegado contrato de depósito irregular celebrado entre o Recorrente e a Recorrida CC poderia ser objecto de fiscalização por parte da Recorrida EE.
25. A enumeração, constante do artigo 2.º do Reg. Adm. n.º 6/2002, dos serviços que poderão constituir as facilidades a ser atribuídas aos jogadores juntos dos quais são promovidos jogos de fortuna ou azar em casino, não obstante não ser taxativa, dá uma clara indicação da intenção do legislador sobre a natureza das facilidades que os promotores poderão conceder aos jogadores e que constitui a base da actividade de promoção de jogos de fortuna ou azar em casino.
26. Assim, ao enumerar facilidades como transporte, alojamento, alimentação e entretenimento, que assumem um caracter marcadamente turístico, o legislador entendeu conferir a actividade dos promotores de jogo um cariz marcadamente vocacionado para a promoção turística do jogo.
27. De acordo com tal entendimento, a aceitação por parte do promotor de jogo em casino de quantias pecuniárias em depósito, com ou sem direito a retribuição, ainda que por parte de jogadores, não será subsumível na actividade de promoção de jogos de fortuna ou azar em casino.
28. Dessa forma, a constituição de contratos de depósito irregular com jogadores por parte dos promotores estaria abrangida pela autonomia que é concedida aos promotores de jogo não só por virtude do artigo 32.º alínea. 6) do Reg. Adm. n.º 6/2002 mas também pela natureza de prestação de serviços intrínseca ao contracto de promoção de jogos de fortuna ou azar em casino.
29. Em suma; (a) a constituição de depósitos irregulares com jogadores por parte da Recorrida CC não é subsumível na actividade de promoção de jogo de fortuna ou azar em casino contractada com a Recorrida EE e descrita no artigo 2.º do Reg. Adm. n.º 6/2002; e (b) tais depósitos irregulares - a verificarem-se - foram constituídos ao abrigo da autonomia que é concedida aos promotores de jogo por virtude do artigo 32.º al. 6) do Reg. Adm. n.º 6/2002 e pela natureza de prestação de serviços intrínseca ao contracto de promoção de jogos de fortuna ou azar em casino.
30. Os pontos (a) e (b) supra revelam que o contrato de depósito irregular sub judice não seria objecto de fiscalização por parte da Recorrida EE nos termos da alínea 5) do artigo 30.º do Reg. Adm. n.º 6/2002 e que o mesmo seria celebrado no âmbito da actuação autónoma e livre da Recorrida CC.
31. Dessa forma, apenas será possível concluir no sentido que não será provável, de acordo com as regras da experiência, que Recorrida EE teria qualquer conhecimento da relação contratual existente entre o Recorrente e a Recorrida CC no âmbito do contrato de depósito irregular sub judice, descrita nos quesitos 8.º, 11.º, 12.º, 15.º, 16.º, 18.º, 19.º, 21º e 22.º da Base Instrutória, pelo que a impugnação constate do artigo 42.º da Contestação apresentada pela Recorrida EE cumpre o ónus de impugnação estabelecido no artigo 410.º do Código de Processo Civil.
Do pedido de reapreciação da prova
32. O Recorrente alega ainda que o teor dos Documentos n.ºs 9 e 12 juntos com petição inicial foi confirmado pela testemunha GG que confirmou a existência da conta de depósito do Recorrente junto da Recorrida CC, consequentemente, requerendo que, da conjugação dos referidos documentos e da prova testemunhal prestada, sejam dados como provados os quesitos 8.º, 15.º, 16.º e 18.º da Base Instrutória.
33. Em sede de decisão sobre a matéria de facto o douto Tribunal a quo decidiu julgar como não provados todos os factos levados à Base Instrutória, fundamentando essa sua decisão na falta de prova "uma vez que as duas testemunhas apresentadas nada mais sabem para além de que o Autor terá aberto uma conta na sala VIP DD, sendo certo que não tem conhecimento directo e objectivo da mesma desconhecendo completamente se houve movimentos a crédito ou a debito nessa conta, caso existisse".
34. Efectivamente, apreciado criticamente o depoimento das testemunhas, em particular da testemunha GG - salientada pelo Recorrente no presente recurso - outra decisão não seria admissível.
Ora vejamos:
35. Nas passagens transcritas pelo Recorrente correspondentes ao depoimento da aludida testemunha prestado entre os minutos 41:05 e 54:35 da gravação "recorded on 22-Nov-2016 at 15.10.08 (1ZLM6GL106611270)" esta afirma que "Eu cheguei a levar as fichas em numerário que ele ganhava e eu levava essas fichas até a tesouraria para trocar as fichas na conta dele".
36. Seguidamente, ao minuto 48:02 da referida gravação quando instada pelo Exm.º Sr. Juiz de Direito a esclarecer se procedia ao depósito de fichas vivas na conta do Recorrente, a testemunha respondeu "Não é, também não foi depositar, foi trocar. Eu também não sei o que é que aquilo significa".
37. O desconhecimento da testemunha relativamente ao funcionamento da conta e aos movimentos da mesma é referido ao minuto 49:00 ao depor o seguinte "Ele tem conta e trazia fichas dele, dizia o número da conta dele, depois tinha outras fichas, também percebo mas é assim", e no depoimento prestado entre os minutos 50:05 e 51:33 da aludida gravação ao responder à seguinte inquirição do Mandatário do Recorrente "Quando o Sr. B precisava de fichas para continuar a apostar, o Sr. B pedia fichas? Como? Pagava com dinheiro a quem estava na mesa? Ou pedia fichas da caixa central da sala de jogo?" da seguinte forma "Bem, esses pormenores eu não tenho conhecimento".
38. Relativamente ao Documento n.º 9 junto com a petição inicial, com a qual a testemunha foi confrontada, assume particular relevância o depoimento registado aos minutos 58:30 da aludida gravação:
Mandatário: A Sra. assinava este documento, cada vez que havia um registo?
Quem é que lançava? Quem é que escrevia os números [ ... ] Quem é que escrevia estes números? Quem é que assinava os movimentos que eram feitos?
Testemunha: Eu não sei. Só fui lá para acompanhar o meu amigo para apostar.
39. Do depoimento da testemunha GG, registado entre os minutos 41:05 e 59:30 gravação "recorded on 22-Nov-2016 at 15.10.08 (1ZLM6GL106611270)" é patente a incapacidade da testemunha de clarificar ou apresentar com um mínimo de clareza um saber sobre o funcionamento da aludida conta.
40. A falta de conhecimento da testemunha é transmitida na incapacidade desta de explicar ou compreender o alcance das suas acções, ao ser incapaz de descrever o motivo ou a razão da troca de fichas.
41. Sendo sempre certo que uma troca de fichas não equivale a qualquer depósito - algo que a testemunha não afirma ser.
42. O próprio documento n.º 9, com o qual a testemunha foi confrontada não é fácil apreensão, sendo o teor críptico e de difícil apreensão, e cuja compreensão não foi positivamente influenciada pelo depoimento da testemunha.
Da responsabilidade da Recorrida EE decorrente do artigo 29.º do Regulamento Administrativo n.º 6/2002
43. O Recorrente alega que a Recorrida EE é solidariamente responsável, enquanto subconcessionária de jogos de fortuna ou azar em casino, pelo alegado incumprimento contractual das Recorridas CC e DD, promotoras de jogo de fortuna ou azar em casino por si contratadas.
44. O Recorrente sustenta que essa alegada responsabilidade solidária decorre da disposição constante do artigo 29º do Regulamento Administrativo n.º 6/2002, de 01 de Abril (com a redacção dada pelo Regulamento Administrativo n.º 27/2009, de 10 de Agosto).
45. No entanto, e não obstante a letra dessa disposição normativa, a verdade é que a ora Recorrida EE jamais poderá aceitar os efeitos jurídicos que o Recorrente pretende daquela assacar,
46. Porquanto, o Regulamento Administrativo n.º 6/2002 pretende regulamentar ou concretizar as disposições legais constantes da Lei n.º 16/2001 (Regime Jurídico da Exploração de Jogos de Fortuna ou Azar em Casino na Região Administrativa Especial de Macau).
47. Tal conclusão pode retirar-se da letra do próprio artigo 52º n.º 1 da Lei 16/2001, que ora se passa a transcrever: "o Chefe do Executivo e o Governo aprovarão os diplomas complementares da presente lei", bem como pela sua conjugação com as disposições introdutórias do Regulamento Administrativo n.º 6/2002, de 01 de Abril (com a redacção dada pelo Regulamento Administrativo n.º 27/2009, de 10 de Agosto), as quais dispõem o seguinte: "O Chefe do Executivo, depois de ouvido o Conselho Executivo, decreta, nos termos da alínea 5) do artigo 50º da Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau e do artigo 52º da Lei 16/2001, para valer como regulamento administrativo, o seguinte ... ".
48. Questão prévia que se deve colocar é a de saber-se qual a efectiva natureza jurídica do Regulamento Administrativo n.º 6/2002.
49. Tendo em conta a conjugação das disposições normativas supra mencionadas, fácil se afigura a configuração do Regulamento Administrativo n.º 6/2002, como sendo um regulamento administrativo complementar, nos termos e para os efeitos do artigo 4º n.º 4 da Lei n.º 13/2009. Assim sendo, e de acordo com a definição legal constante desta disposição legal, verificamos que ao regulamento administrativo complementar compete estabelecer as concretizações necessárias à execução de leis.
50. Por definição, algo que complementa ou concretiza tem de estar, obviamente, circunscrito, limitado e intimamente ligado a um objecto, in casu a Lei n.º 16/2001.
51. Dessa forma, é seguro afirma-se que um regulamento administrativo complementar jamais poderá extravasar o âmbito da lei que pretende complementar ou concretizar, pelo que o Regulamento Administrativo n.º 6/2002 jamais poderá extravasar o âmbito e o objecto de aplicação das disposições constantes da Lei n.º 16/2001, assim como o mesmo Regulamento deve ser lido e interpretado na óptica de concretização e complementarização do que havia sido previamente estabelecido na Lei n.º 16/2001.
52. Questão prévia resolvida, veja-se então o caso em concreto:
53. De facto, o artigo 23º da Lei n.º 16/2001 estabelece as cominações legais atinentes aos promotores de jogo. No âmbito dessa mesma disposição legal, mais concretamente no seu n.º 3, dispõe-se que: "perante o Governo, é sempre uma concessionária a responsável pela actividade desenvolvida nos casinos pelos promotores de jogo, seus administradores e colaboradores e pelo cumprimento por parte deles das normas legais e regulamentares, devendo para o efeito proceder à supervisão da sua actividade".
54. Da mera leitura do artigo 23º n.º 3 da Lei n.º 16/2001 supra citado, resulta que: (i) Existe uma cláusula de responsabilidade atribuída às concessionárias pela actividade desenvolvida nos casinos pelos promotores de jogo, seus administradores e colaboradores e pelo cumprimento por parte deles das normas legais e regulamentares; e (ii) Tal responsabilidade das concessionárias existe, apenas e tão-só, para com o Governo.
55. Porém, o Regulamento Administrativo n.º 6/2002, no seu artigo 29º, dispõe o seguinte: "As concessionárias são responsáveis solidariamente com os promotores de jogo pela actividade desenvolvida nos casinos pelos promotores de jogo e administradores e colaboradores destes, bem como pelo cumprimento, por parte dos mesmos, das normas legais e regulamentos aplicáveis".
56. Lançando mão de tal Regulamento, o Recorrente vem alegar que, mesmo nas relações com particulares, as concessionárias são responsáveis pela actividade desenvolvida nos casinos pelos promotores de jogo, seus administradores e colaboradores e pelo cumprimento por parte deles das normas legais e regulamentares.
57. Alega o Recorrente que as concessionárias seriam inclusivamente responsáveis (como se configura no caso em apreço) por dívidas dos promotores de jogo aos jogadores que recorriam aos seus serviços.
58. Porém, tal entendimento jamais poderá vingar, salvo melhor e fundamentada opinião.
59. Na verdade, o Regulamento Administrativo n.º 6/2002 é um mero regulamento administrativo complementar, nos termos supra expostos.
60. Dessa forma, a disposição constante do artigo 29º do Regulamento Administrativo n.º 6/2002 apenas pretende (e pode!) concretizar a cláusula de responsabilidade prevista no artigo 23º n.º 3 da Lei n.º 16/2001, estabelecida, única. e exclusivamente, a favor do Governo da Região Administrativa da Região Administrativa Especial de Macau.
61. Não se retira da Lei n.º 16/2001 que essa mesma cláusula de responsabilidade das concessionárias pela actividade desenvolvida nos casinos pelos promotores de jogo, seus administradores e colaboradores e pelo cumprimento por parte deles das normas legais e regulamentares, fosse estabelecida a favor de toda e qualquer pessoa.
62. Bem pelo contrário, a intenção do legislador foi expressa, sem lugar para dúvida ou mácula, quando estatui que tal responsabilidade apenas tem lugar, nos termos do artigo 23º n.º 3 da Lei n.º 16/2001: "perante o Governo".
63. Apenas este entendimento confere e assegura a coerência do sistema jurídico da Região Administrativa Especial de Macau, o respeito pelo seu regime jurídico de enquadramento das fontes normativas internas e o cumprimento das disposições da própria Lei Básica!
64. Assim sendo, resta-nos concluir que a pretensão do artigo 29º do Regulamento Administrativo n.º 6/2002 foi apenas o de concretizar ou complementar qual o tipo de responsabilidade a que se refere o artigo 23º n.º 3 da Lei n.º 16/2001.
65. E é exactamente por força da conjugação destas duas disposições normativas que se pode extrair a conclusão de que perante o Governo, as concessionárias (e as subconcessionárias, como é o caso da 3ª Recorrida EE, ex vi o artigo 30º-A aditado pelo Regulamento Administrativo n.º 27/2009) são solidariamente responsáveis pela actividade desenvolvida nos casinos pelos promotores de jogo, seus administradores e colaboradores e pelo cumprimento por parte deles das normas legais e regulamentares.
66. Fora estes casos, a responsabilidade contratual ou extra-contratual que poderia haver das concessionárias teria obrigatoriamente de ser integrada conforme os requisitos legais gerais, sobejamente conhecidos de todos, e que ao caso não são aplicáveis, pelo menos não quanto à ora Recorrida EE.
67. A acrescer a toda a argumentação apresentada, resta apenas dizer que a ora Recorrida EE não é sujeito das alegadas relações jurídico-materiais estabelecidas entre o Recorrente e as Recorridas CC e DD.
68. Assim sendo, todas as considerações tecidas pelo RECORRENTE quanto às disposições normativas suposta e alegadamente aplicáveis ao caso em apreço não poderão ser oponíveis à Recorrida EE.
Concluindo, a 3ª Ré pede que seja confirmada a sentença recorrida na sua íntegra.
* * *
Colhidos os vistos legais, cumpre analisar e decidir.
* * *
II - PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
Este Tribunal é o competente em razão da nacionalidade, matéria e hierarquia.
O processo é o próprio e não há nulidades.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e são dotadas de legitimidade “ad causam”.
Não há excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
* * *
III – FACTOS ASSENTES:
A sentença recorrida deu por assente a seguinte factualidade:
a) O Autor reside na República Popular da China e, pelo menos, durante o ano de 2012 visitou Macau, diversas vezes, para frequentar os casinos que operam no Território;
b) As 1ª e 2ª Rés são sociedades comerciais constituídas e registadas em Macau, cujo objecto social é a promoção de jogos de fortuna ou azar ou outros jogos em casino, estando, para o efeito, devidamente licenciadas pela Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos, em conformidade com o teor dos documentos juntos a fls. 18 a 38 e 153 e aqui se dão por integralmente reproduzidos;
c) A 3ª Ré é uma sociedade comercial constituída e registada em Macau, cujo objecto social é, entre outros, instalar, operar e gerir jogos de fortuna ou azar e outros jogos em casino, sendo subconcessionária da exploração de jogos de fortuna ou azar em casinos em Macau, em conformidade com o teor dos documentos juntos a fls. 39 a 52 e aqui se dão por integralmente reproduzidos;
d) No âmbito da sua actividade comercial a 3ª R. opera o Casino HH instalado no Hotel ...... sito em Macau, na Estrada da ......, S/N, Taipa;
e) As 1ª e 2ª Rés celebraram contratos de promoção de jogo com a 3ª Ré e, ao abrigo dos mesmos, exerceram a respectiva actividade nas instalações de casinos operados e explorados por esta, em conformidade com o teor dos documentos juntos a fls, 53 a 79 e aqui se dão por integralmente reproduzidos;
f) Ao abrigo dos referidos contratos de promoção de jogo, a 1ª R. exerceu a sua actividade, pelo menos, durante o período compreendido entre 14 de Fevereiro a 16 de Março de 2012 nos pits nºs 831 e 833, correspondentes às salas “Singapura” e “Bangkok”, respectivamente, ambas sitas no nível 1 do Casino HH;
g) Ao passo que a 2ª R. exerceu a sua actividade, pelo menos, durante o período compreendido entre 14 de Fevereiro a 16 de Março de 2012 nos pits nºs 837 e 839, correspondentes às salas “Kunming” e “Harbin”, respectivamente, ambas sitas no nível 1 do Casino HH;
h) O Autor frequentou o Casino HH, pelo menos, nos dias compreendidos entre 25 de Fevereiro e 2 de Março de 2012;
i) No casino The EE Macao, o Autor era cliente da sala de jogo VIP DD sita no HH Club;
j) A 2ª Ré recebeu uma missiva do Autor, datada de 29.11.2012, tendo em vista o reembolso da quantia de HKD17.853.300,00, em conformidade com o teor dos documentos juntos a fls. 86 a 93 e aqui se dão por integralmente reproduzidos;
k) A 3ª Ré recebeu em 25 de Março de 2012, uma missiva do A. solicitando o reembolso do montante de HKD17.853.300,00 ao abrigo do disposto no artigo 29° (sic) do Regulamento Administrativo nº 6/2002 em conformidade com o teor dos documentos juntos a fls. 94 a 96 e aqui se dão por integralmente reproduzidos;
l) A 1ª Ré recebeu uma missiva do Autor, datada de 13.06.2013, tendo em vista o reembolso da quantia de HKD17.853.300,00, em conformidade com o teor dos documentos juntos a fls. 154 a 161 e aqui se dão por integralmente reproduzidos;
m) Posteriormente, a 3ª Ré recebeu nova missiva do A. solicitando o reembolso do montante de HKD17.853.300,00 em conformidade com o teor dos documentos juntos a fls. 162 a 165 e aqui se dão por integralmente reproduzidos;
n) Foi instaurado no Tribunal Judicial de Base um processo crime que correu termos sob o nº CR2-12-0196-PCC, em que foi entidade acusadora o Ministério Público, em que foram Arguidos II e JJ, e no qual a 1ª e 2ª RR. se constituíram Assistentes e onde figura como ofendido o A., em conformidade com o teor dos documentos juntos a fls. 112 a 153 e aqui se dão por integralmente reproduzidos;
o) A 3ª Ré tinha contratado as 1ª e 2ª Rés para promover jogos de fortuna ou azar nos seus casinos.
*
IV - FUNDAMENTAÇÃO
Como o presente recurso tem objecto a sentença recorrida, importa ver o que o Tribunal a quo decidiu. Este afirmou na sua douta decisão:
“BB, casado, titular do Bilhete de Identidade de Residente da República Popular da China nº 15020319*********X, de nacionalidade chinesa e residente na República Popular da China, em Nei Meng Gu Bao Tou Shi ...... (中國內蒙古包頭市......)
Vem instaurar a presente acção declarativa sob a forma de processo ordinário contra,
CC Promotor de Jogo Sociedade Unipessoal Limitada, sociedade comercial por quotas unipessoal, com sede em Macau, na Avenida de ......, nºs ...-..., Centro Comercial ......, ...º andar “...”, registada na Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis sob o nº 35.***(SO);
Companhia de Promotor de Jogo DD Limitada, sociedade comercial por quotas, com sede em Macau, na Avenida de ......, nºs ...-..., Centro Comercial ......, ...º andar “...”, registada na Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis sob o nº 39.***(SO);
e
EE Macau S.A. sociedade comercial anónima, com sede em Macau, na Estrada da ......, The EE ...... Hotel, ...... – ..., Taipa, registada na Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis sob o nº 15.***(SO).
Para tanto alega o Autor que as 1ª e 2ª Rés celebraram contratos de promoção de jogos de fortuna e azar em casino com a 3ª Ré, exercendo a sua actividade nas instalações desta onde possuíam uma sala VIP. Pretendendo o Autor deslocar-se várias vezes a Macau para jogar as 1ª e 2ª Rés propuseram-lhe que fizesse o depósito de uma quantia na sua sala com vista a usar os respectivos fundos em apostas de jogo. Pelo que o Autor depositou a quantia de HKD3.350.000,00 na sala de jogo que indica, onde veio por várias vezes para jogar vindo a ter ai o depósito da quantia de HKD30.600.000,00, valor que em Março de 2012 correspondia a HKD17.853.300,00. Nesta data o Autor contactou os Administradores das 1ª e 2ª Rés no sentido de levantar o dinheiro que tinha na sala tendo sido informado por estes que funcionários da sala VIP levantaram HKD14.000.000,00 sem autorização do Autor e que o remanescente não tinham dinheiro para lho devolver, vindo a sala de jogo a encerrar no decorrer desse ano.
Concluindo pede que sejam as Rés condenadas, solidariamente, a restituir ao Autor a quantia de HKD17.853.300,00 (dezassete milhões, oitocentos e cinquenta e três mil e trezentos dólares de Hong Kong), equivalente a MOP18.388.899,00 (dezoito milhões, trezentas e oitenta e oito mil, oitocentas e noventa e nove patacas), acrescida de juros de mora vencidos, à taxa anual legal de 9,75%, no valor de MOP1.370.476,78 (um milhão, trezentas e setenta mil, quatrocentas e setenta e seis Patacas e setenta e oito avos), bem como os juros que se forem vencendo até ao efetivo e integral cumprimento, à mesma taxa anual.
Citadas as Rés para querendo contestarem vieram estas fazê-lo.
As 1ª e 2ª Rés vieram defender-se alegando que são pessoa jurídicas distintas, independentes e autónomas financeiramente, pelo que a 2ª Ré nunca celebrou qualquer contrato com o Autor, o qual foi apenas celebrado entre este e a 1ª Ré onde o Autor fez um depósito na conta da sala de jogo, sendo que este (o Autor) veio a estabelecer uma relação de confiança com a trabalhadora da 1ª Ré e gerente da sala de jogo permitindo que esta fizesse movimentos e levantamentos da sua conta assinando os respectivos documentos. Em 16.03.2012 o Autor deu instruções à dita funcionária da 1ª Ré para levantar a quantia de HKD14.000.000,00, o que a 1ª Ré autorizou, tendo aquela levado a respectiva quantia para fora da sala de jogo, desconhecendo as Rés o que passou a partir dai. Quanto ao remanescente apenas foi pedido à 1ª Ré muito tempo após e já depois da sala de jogo ter encerrado, pelo que, a serem devidos juros de mora na entrega dessa quantia os mesmos só são devidos após a recepção da respectiva carta. Mais requerem a intervenção principal de funcionária da 1ª Ré FF, concluindo pela improcedência total da acção.
A 3ª Ré veio defender-se por excepção invocando a sua ilegitimidade e por impugnação, concluindo no sentido da excepção dilatória deduzida pela Ré ser julgada procedente e, em consequência, ser esta ser absolvida da instância, de acordo com as disposições constantes dos artºs 407º nº 1 e nº 2 al. b), 408º, 412º nº 1 e nº 2 e 413º al. e), todos do CPC, ou caso assim não se entenda, ser a acção proposta pelo Autor julgada improcedente, por não provada, com as inerentes consequências legais.
O Autor replicou respondendo à matéria das excepções invocadas pelas Rés no sentido de serem julgadas improcedentes e indeferido o pedido de intervenção principal provocada.
Por despacho de fls. 368 foi deferida a intervenção principal provocada de FF, a qual foi citada editalmente tendo silenciado, na sequência do que foi citado o Ministério Público o qual igualmente silenciou.
Foi proferido despacho saneador sendo julgada improcedente a excepção da ilegitimidade invocada pela 3ª Ré, tendo sido seleccionada a matéria de facto assente e a base instrutória.
Procedeu-se a julgamento com observância do formalismo legal, mantendo-se a validade da instância.
A questão a decidir nestes autos consiste em apurar se o Autor celebrou o invocado contrato com as duas primeiras Rés e em caso afirmativo da natureza jurídica do mesmo e se foi cumprido, sendo, em caso de incumprimento, de apurar da responsabilidade das três Rés quanto ao mesmo e em que medida.
Da instrução e discussão da causa apurou-se que:
a) O Autor reside na República Popular da China e, pelo menos, durante o ano de 2012 visitou Macau, diversas vezes, para frequentar os casinos que operam no Território;
b) As 1ª e 2ª Rés são sociedades comerciais constituídas e registadas em Macau, cujo objecto social é a promoção de jogos de fortuna ou azar ou outros jogos em casino, estando, para o efeito, devidamente licenciadas pela Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos, em conformidade com o teor dos documentos juntos a fls. 18 a 38 e 153 e aqui se dão por integralmente reproduzidos;
c) A 3ª Ré é uma sociedade comercial constituída e registada em Macau, cujo objecto social é, entre outros, instalar, operar e gerir jogos de fortuna ou azar e outros jogos em casino, sendo subconcessionária da exploração de jogos de fortuna ou azar em casinos em Macau, em conformidade com o teor dos documentos juntos a fls. 39 a 52 e aqui se dão por integralmente reproduzidos;
d) No âmbito da sua actividade comercial a 3ª R. opera o Casino HH instalado no Hotel ...... sito em Macau, na Estrada da ......, S/N, Taipa;
e) As 1ª e 2ª Rés celebraram contratos de promoção de jogo com a 3ª Ré e, ao abrigo dos mesmos, exerceram a respectiva actividade nas instalações de casinos operados e explorados por esta, em conformidade com o teor dos documentos juntos a fls, 53 a 79 e aqui se dão por integralmente reproduzidos;
f) Ao abrigo dos referidos contratos de promoção de jogo, a 1ª R. exerceu a sua actividade, pelo menos, durante o período compreendido entre 14 de Fevereiro a 16 de Março de 2012 nos pits nºs 831 e 833, correspondentes às salas “Singapura” e “Bangkok”, respectivamente, ambas sitas no nível 1 do Casino HH;
g) Ao passo que a 2ª R. exerceu a sua actividade, pelo menos, durante o período compreendido entre 14 de Fevereiro a 16 de Março de 2012 nos pits nºs 837 e 839, correspondentes às salas “Kunming” e “Harbin”, respectivamente, ambas sitas no nível 1 do Casino HH;
h) O Autor frequentou o Casino HH, pelo menos, nos dias compreendidos entre 25 de Fevereiro e 2 de Março de 2012;
i) No casino The EE Macao, o Autor era cliente da sala de jogo VIP DD sita no HH Club;
j) A 2ª Ré recebeu uma missiva do Autor, datada de 29.11.2012, tendo em vista o reembolso da quantia de HKD17.853.300,00, em conformidade com o teor dos documentos juntos a fls. 86 a 93 e aqui se dão por integralmente reproduzidos;
k) A 3ª Ré recebeu em 25 de Março de 2012, uma missiva do A. solicitando o reembolso do montante de HKD17.853.300,00 ao abrigo do disposto no artigo 29° (sic) do Regulamento Administrativo nº 6/2002 em conformidade com o teor dos documentos juntos a fls. 94 a 96 e aqui se dão por integralmente reproduzidos;
l) A 1ª Ré recebeu uma missiva do Autor, datada de 13.06.2013, tendo em vista o reembolso da quantia de HKD17.853.300,00, em conformidade com o teor dos documentos juntos a fls. 154 a 161 e aqui se dão por integralmente reproduzidos;
m) Posteriormente, a 3ª Ré recebeu nova missiva do A. solicitando o reembolso do montante de HKD17.853.300,00 em conformidade com o teor dos documentos juntos a fls. 162 a 165 e aqui se dão por integralmente reproduzidos;
n) Foi instaurado no Tribunal Judicial de Base um processo crime que correu termos sob o nº CR2-12-0196-PCC, em que foi entidade acusadora o Ministério Público, em que foram Arguidos II e JJ, e no qual a 1ª e 2ª RR. se constituíram Assistentes e onde figura como ofendido o A., em conformidade com o teor dos documentos juntos a fls. 112 a 153 e aqui se dão por integralmente reproduzidos;
o) A 3ª Ré tinha contratado as 1ª e 2ª Rés para promover jogos de fortuna ou azar nos seus casinos.
Cumpre assim apreciar e decidir.
Em síntese invoca o Autor ter celebrado com as duas primeiras Rés um contrato de acordo com o qual teria depositado determinadas quantias em conta aberta para o efeito, nas salas VIP operadas por estas em Casino da terceira Ré, sendo que, reclamando o pagamento do saldo da conta a seu favor, as Rés não o fizeram pelo que, sustentando a responsabilidade solidária entre as mesmas, vem pedir a condenação destas a pagarem-lhe o montante que considera devido.
Porém, da prova produzida não resultou demonstrado que o Autor haja celebrado com as Rés contrato algum, nem que haja depositado nas salas VIP operadas por estas quantia alguma e muito menos que a respectiva conta tivesse saldo positivo a seu favor (do Autor) e qual o valor do mesmo.
Destarte, à mingua de prova dos factos que integram a causa de pedir do Autor fica prejudicada a apreciação jurídica das questões a decidir, havendo apenas que julgar a causa improcedente.
Nestes termos e pelos fundamentos expostos julga-se a acção improcedente porque não provada e em consequência absolvem-se as Rés do pedido.
Custas a cargo do Autor.
Registe e Notifique.
Macau, 8 de Fevereiro de 2017.
Quid Juris?
São, desde logo, dois aspectos, no domínio de matéria fáctica, que chamam a nossa especial atenção, ao comerçarmos analisar o presente recurso:
1) – 1º aspecto: Factos assentes que o Tribunal a quo assim considera, face aos elementos juntos aos autos:
c) A 3ª Ré é uma sociedade comercial constituída e registada em Macau, cujo objecto social é, entre outros, instalar, operar e gerir jogos de fortuna ou azar e outros jogos em casino, sendo subconcessionária da exploração de jogos de fortuna ou azar em casinos em Macau, em conformidade com o teor dos documentos juntos a fls. 39 a 52 e aqui se dão por integralmente reproduzidos; (destaque nosso)
(…)
j) A 2ª Ré recebeu uma missiva do Autor, datada de 29.11.2012, tendo em vista o reembolso da quantia de HKD17.853.300,00, em conformidade com o teor dos documentos juntos a fls. 86 a 93 e aqui se dão por integralmente reproduzidos; (destaque nosso)
k) A 3ª Ré recebeu em 25 de Março de 2012, uma missiva do A. solicitando o reembolso do montante de HKD17.853.300,00 ao abrigo do disposto no artigo 29° (sic) do Regulamento Administrativo nº 6/2002 em conformidade com o teor dos documentos juntos a fls. 94 a 96 e aqui se dão por integralmente reproduzidos; (destaque nosso)
l) A 1ª Ré recebeu uma missiva do Autor, datada de 13.06.2013, tendo em vista o reembolso da quantia de HKD17.853.300,00, em conformidade com o teor dos documentos juntos a fls. 154 a 161 e aqui se dão por integralmente reproduzidos; (destaque nosso)
m) Posteriormente, a 3ª Ré recebeu nova missiva do A. solicitando o reembolso do montante de HKD17.853.300,00 em conformidade com o teor dos documentos juntos a fls. 162 a 165 e aqui se dão por integralmente reproduzidos; (destaque nosso)
n) Foi instaurado no Tribunal Judicial de Base um processo crime que correu termos sob o nº CR2-12-0196-PCC, em que foi entidade acusadora o Ministério Público, em que foram Arguidos II e JJ, e no qual a 1ª e 2ª RR. se constituíram Assistentes e onde figura como ofendido o A., em conformidade com o teor dos documentos juntos a fls. 112 a 153 e aqui se dão por integralmente reproduzidos; (destaque nosso)
(…)
Ora, os factos assentes acima alinhados remetem sistematicamente para o teor dos documentos aí referidos, mas, repare-se, tais documentos não são cartas de interpelação do cumprimento de obrigações, mas sim “documentos comprovativos (papéis) de depósitos e levantamentos de fichas” da sala do casino VIP (em chinês, popularmente designam-se por “存 碼 紙” “Chun Ma Zhi”).
Para quem sabe mais ou menos como funcionam as salas de casino VIP, sabe perfeitamente que é este método utilizado na maioria das salas do casino VIP (senão todas) para os “jogadores grandes” (e frequentes). É o que resulta da análise dos documentos juntos aos autos (fls. 66 a 70), mormente dos contratos firmados entre a concessionária e os exploradores das salas do casino VIP e de tais “papeis” (comprovativos de depósito e levantamento de fichas).
Adiantemos desde já a nossa primeira conclusão:
No caso em apreciação, todos estes “papeis” são elaborados em chinês, quando o Tribunal a quo para eles remete, sem que os analisasse com atenção, incorreu na apreciação errada de provas, e consequentemente deu origem a contradições.
Como?
Ora, antes de mais, citemos de propósito aqui 2 preceitos legais do CPC que disciplinam a matéria em causa. O artigo 558º (Princípio da livre apreciação das provas) do CPC manda:
1. O tribunal aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto.
2. Mas quando a lei exija, para a existência ou prova do facto jurídico, qualquer formalidade especial, não pode esta ser dispensada.
Depois, o artigo 436º (Princípio da aquisição processual) do mesmo Código prescreve:
O tribunal deve tomar em consideração todas as provas realizadas no processo, mesmo que não tenham sido apresentadas, requeridas ou produzidas pela parte onerada com a prova, sem prejuízo das disposições que declarem irrelevante a alegação de um facto, quando não seja feita por certo interessado.
Vejamos a matéria discutida nos autos e citemos um exemplo:
O facto provado constante da alínea j) tem o seguinte teor:
j) A 2ª Ré recebeu uma missiva do Autor, datada de 29.11.2012, tendo em vista o reembolso da quantia de HKD17.853.300,00, em conformidade com o teor dos documentos juntos a fls. 86 a 93 e aqui se dão por integralmente reproduzidos; (destaque nosso)
A redacção deste facto é um pouco ambígua, pois, pergunta-se:
a) – O facto em causa quer significar que o conteúdo de fls. 86 a 93 está de todo em todo considerado provado? Ou
b) – Quer simplesmente dizer que o valor final (montante total, líquido, ora reclamado pelo Autor/Recorrente) que é considerado provado? Porque nestes documentos encontram-se registados vários levantamentos e depósitos de fichas da conta aberta em nome do Recorrente/Autor.
Salvo o melhor respeito, parece-se que tal redacção engloba as 2 ideias referidas. Assim, é seguro afirmar-se que, quando o Tribunal remete para o teor dos documentos aí indicados, significa que (está certo este raciocínio) está provado o montante reclamado pelo Recorrente/Autor, uma vez que a 1ª e a 2ª Ré não chegaram a impugnar com sucesso estes factos, nem negaram a veracidade dos documentos em causa, pelo que, há lugar à aplicação do artigo 370º/2 (Força probatória) do CCM, que dispõe:
1. O documento particular cuja autoria seja reconhecida nos termos dos artigos antecedentes faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento.
2. Os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante; mas a declaração é indivisível, nos termos prescritos para a prova por confissão.
3. Se o documento contiver notas marginais, palavras entrelinhadas, rasuras, emendas ou outros vícios externos, sem a devida ressalva, cabe ao julgador fixar livremente a medida em que esses vícios excluem ou reduzem a força probatória do documento.
Reparem, tais documentos, de escrituração mercantil, são elaborados em papéis timbrados da 2ª Ré, com carimbo da mesma e assinatura de empregados seus.
Aceitando-se a veracidade desses documentos, como estes demonstram que o Recorrente chegou efectivamente a depositar e levantar fichas junto das 1.ª e 2ª Rés nos períodos a que se referem esses mesmos documentos, então não se percebe a razão da decisão final, que julgou improcedente o pedido do Recorrente no seu todo!
Eis uma contradição entre a decisão e as provas e os factos considerados assentes pelo próprio Tribunal a quo.
*
Passemos agora a ver o 2º Aspecto: factos inseridos na base instrutória e a respectiva resposta.
Feita a audiência de julgamento, o Tribunal a quo deu uma resposta “economista”: “TUDO NÃO PROVADO”.
Pergunta-se : será mesmo que todos os factos quesitados ficaram não provados? Se assim for, não existirá contradição entre a decisão e as provas juntas aos autos e a resposta dada?
Repare-se, o Tribunal não deve valorar somente o depoimento das testemunhas, tem de conjugá-lo com os elementos igualmente juntos aos autos.
Citemos aqui um outro exemplo:
O quesito 8º tem o seguinte teor:
“Em 14 de Fevereiro de 2012, o Autor começou por depositar naquela sala de jogo a quantia de HKD$3,350,000.00 (três milhões, trezentos e cinquenta mil dólares de Hong Kong)?”
Este facto (não provado) foi também objecto de reclamação por parte do Autor/Recorrente, quando o Tribunal a quo leu as respostas aos quesitos. Na perspectiva deste, este facto deveria ficar provado.
Ora, o Tribunal deu resposta negativa porque genericamente invoca que as testemunhas ouvidas não chegaram a precisar os pontos perguntados. Mas, repare-se, se se a testemunha conseguisse afirmar que, no dia X o Recorrente chegou a depositar a quantia X (em número exacto) na conta do Recorrente aberta na sala de jogo VIP (2ª Ré), não devíamos duvidar do seu depoimento? Porque é que conseguiu pormenorizar as coisas? Nesta circunstância, fazendo apelo aos padrões normais da experiência de vida, em situações normais, todas as entradas e saídas de fichas devem ser registadas em livros adequados ou computadorizados, aliás nem o próprio interessado é que consegue precisar os números! Se o próprio interessado/Recorrente não consegui fazê-lo, como é que pode exigir-se o mesmo às testemunhas?
Pelo que, o Tribunal devia conjugar o depoimento da testemunha com os elementos documentais juntos aos autos, e não só atende ao depoimento das testemunhas e assim deu uma resposta, a qual é incompatível com os elementos já encontrados nos autos, nomeadamente o teor de fls. 113, que não foram contrariados ou impugnados pelas partes contrárias.
Assim, O Tribunal a quo devia valorar todas as provas já juntas aos autos nos termos fixados pelo artigo 370º/2 do CCM!
*
Um terceiro exemplo:
Os quesitos 25º a 27º têm o seguinte teor:
25º
Em Fevereiro de 2012 o Autor propôs à 1ª Ré fazer um depósito de fundos na Sala de jogos DD para usar em apostas?
26º
O que foi aceite por esta?
27º
O depósito foi efectuado na conta nº Z488 daquela sala de jogo?
O teor de fls. 113 a 114 dos autos demonstra efectivamente que o Recorrente/Autor tinha a conta sob o no. Z488, e efectuou vários depósitos e levantamentos de fichas durante o período de Fevereiro de 2012!
Reparem, mais um vez, tais documentos (extraídos do processo-crime mediante certidão passada pelo funcionário competente) são escrituração comercial, cujo conteúdo não foi contrariado nem impugnado pelas partes.
Eis mais um exemplo que demonstra o erro cometido na apreciação das provas.
O mesmo se diga em relação ao quesito 18º, objecto de reclamação na primeira instância. O Tribunal a quo devia analisar prudentemente o teor de fls. 117 dos autos.
*
Perante este quadro desenhado, mesmo depois de analisadas as provas úteis do processo, não ficamos tranquilos nem convencidos porque certos factos inseridos na base de instrução deviam ser esclarecidos devidamente, ainda que oficiosamente, nomeadamente os factos sob os nºs 38º, 39º e 42º, que têm o seguinte teor:
38º
No dia 16 de Março de 2012, justificando que tinha necessidade de dinheiro na China Continental, o Autor telefonou a FF pedindo-lhe para levantar da sua conta de depósito a quantia de HKD14,000,000.00?
39º
E entregar-lhe a mesma no exterior do Casino EE?
(…)
42º
Alguns dias depois de 16.03.2012, FF retirou HKD3.853.300,00 da tesouraria da sala de jogo DD, a pedido do Autor e fez-lhe entrega dessa quantia fora do casino?
São factos que condicionarão o direito que o Recorrente/Autor reclama neste processo, pois é essencial saber se ele chegou ou não receber tais quantias (em fichas? Ou em cash?) nas condições indicados nos factos acima transcritos! São factos alegados pelas Rés em defesa, desfavoráveis ao Recorrente/Autor, portanto, justifica-se lançar mão do disposto no artigo 477º do CPC, uma vez que são factos alegados pelas partes, mas têm bastante relevância para a decisão da causa. É o que este Tribunal de recurso ordena em nome e princípio da descoberta da verdade material.
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Por último, também uma questão de raciocínio, que importa destacar nesta sede!
Se, conforme o quadro fáctico e jurídico pintado pelo Tribunal a quo, a tese do Autor ficou provada, pelo menos no que toca aos depósitos e saldos na conta do Recorrente, e não ficou provada toda a matéria constante de base instrutória (cingido rigorosamente a este quadro pintado pelo Tribunal a quo), da qual se inclui a matéria de defesa à luz da qual as Rés invocaram que foi o Autor que autorizou que a Ré FF pudesse movimentar os saldos da conta do Recorrente/Autor, levantando fichas e depositando fichas (esta versão também não ficou provada), nestes termos, o que resta é a versão contada pelo Recorrente/Autor, ou seja, os saldos deviam estar ainda na conta das 1ª e 2ª Rés, e consequentemente, em situação normal, estas não deviam restituí-los ao Recorrente/Autor??
Mas não foi nesse sentido que a sentença proferida seguiu, eis uma contradição insanável!
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Nestes termos, em cumprimento do disposto no artigo 629º/4 (Modificabilidade da decisão de facto) do CPC, que manda nos seguintes termos:
1. A decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pelo Tribunal de Segunda Instância:
(…)
4. Se não constarem do processo todos os elementos probatórios que, nos termos da alínea a) do n.º 1, permitam a reapreciação da matéria de facto, pode o Tribunal de Segunda Instância anular, mesmo oficiosamente, a decisão proferida na primeira instância, quando repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto ou quando considere indispensável a ampliação desta; a repetição do julgamento não abrange a parte da decisão que não esteja viciada, podendo, no entanto, o tribunal ampliar o julgamento de modo a apreciar outros pontos da matéria de facto, com o fim exclusivo de evitar contradições na decisão.
(…)
Impõe-se anular a sentença recorrida por padecer de vício de contradição nos termos vistos, e, mandar repetir o julgamento para esclarecer os aspectos acima consignados.
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Síntese conclusiva:
I – O erro de julgamento de facto ocorre quando o juiz decide mal ou contra os factos apurados. Por outras palavras, tal erro é aquele que respeita a qualquer elemento ou característica da situação “sub judice” que não revista natureza jurídica.
II - Há erro no julgamento de facto, quando o Tribunal a quo considera provado, por um lado, um conjunto de factos alegados pelas partes, nos quais se remetem para os documentos juntos aos autos, e, por outro, considera simplesmente não provados os quesitos com conteúdo indexado ao teor desses mesmos documentos, comportando estes informações necessárias à resolução das questões levantadas pelas partes.
III – Perante o erro na apreciação de provas e défice de instrução processual, é de anular a sentença recorrida e mandar repetir o julgamento com vista a corrigir os erros detectados e evitar contradições na decisão final.
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Tudo visto, resta decidir.
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V) - DECISÃO
Em face de todo o que fica exposto e justificado, os juízes do Tribunal de 2ª Instância acordam em anular a sentença de 1ª instância e mandando repetir o julgamento nos termos acima consignados.
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Custas pelas Recorridas.
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Registe e Notifique.
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RAEM, 13 de Setembro de 2018.
(Relator)
Fong Man Chong
(Primeiro Juiz-Adjunto)
Ho Wai Neng
(Segundo Juiz-Adjunto)
José Cândido de Pinho
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