Processo nº 65/2017
(Autos de recurso cível)
Data: 4/Outubro/2018
Assuntos: Ampliação da matéria de facto
SUMÁRIO
Verificando-se insuficiência de factos provados para a decisão, nomeadamente quando o tribunal de primeira instância não investigou ou não levou à base instrutória os factos essenciais, deve haver lugar a ampliação da matéria de facto, ao abrigo do n.º 4 do artigo 629.º do CPC.
O Relator,
________________
Tong Hio Fong
Processo nº 65/2017
(Autos de recurso cível)
Data: 4/Outubro/2018
Recorrentes:
- A e outros (Autores)
- Empresa de Fomento Imobiliário B, Limitada (Ré)
Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:
I) RELATÓRIO
A e outros, Autores nos autos acima cotados, instauram acção declarativa de condenação na forma de processo ordinária contra a Empresa de Fomento Imobiliário B Limitada, pedindo ao Tribunal que seja declarada a aquisição, por usucapião a favor dos Autores, de uma parcela de terreno com a área de 191,97 m2, ou, subsidiariamente, caso venha a julgar improcedente o pedido principal, seja declarada a aquisição da mesma parcela de terreno pelos Autores, por acessão industrial imobiliária.
Por sentença proferida pelo Tribunal de Primeira Instância, foi julgado improcedente o pedido principal dos Autores, mas procedente o pedido subsidiário e, em consequência, foi declarada a aquisição pelos Autores por acessão industrial imobiliária da parcela de terreno com a área de 124 m2 pertencente à Ré e devidamente identificada nos autos, na condição de os Autores pagarem a esta a quantia de MOP$10.270.850,00 em 30 dias a contar da data do trânsito em julgado da sentença.
Inconformada com a sentença que julgou procedente o pedido subsidiário, interpôs a Ré recurso ordinário para este TSI, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
“1. O presente recurso jurisdicional vem interposto da douta sentença proferida no Tribunal a quo a fls. 1685-1695 dos presentes autos.
2. Na douta sentença recorrida, o Meritíssimo Juiz-Presidente do Colectivo procedeu ao aditamento de novos factos à discussão designadamente os aa) e bb), com base na planta emitida pela DSCC.
3. O relator da sentença terá extravasado as suas competências quando decidiu aditar tais factos à causa.
4. Nos termos do preceituado no art. 549º, n.º 1 e no art. 556º, n.ºs 1, 2 e 3, ambos do CPC, deve o tribunal colectivo intervir na discussão e julgamento fácticos da causa.
5. Qualquer reapreciação da matéria de facto deverá determinar a reabertura da fase de discussão, devendo o Tribunal facultar uma oportunidade às partes para se pronunciarem sobre os factos aditados.
6. Por terem sido violadas as normas processuais que obrigam a que a discussão da causa e fixação da matéria de facto sejam feitas com intervenção do Tribunal Colectivo, devem-se ter por não escritos tais factos.
7. O juiz que preside à audiência deveria ter providenciado, nos termos do art. 553º, n.º 2, al. f) do CPC, até ao encerramento da discussão da causa, pela ampliação da base instrutória.
8. Por maioria de razão, estar-lhe-á vedado o aditamento de factos assentes à causa após o julgamento da matéria de facto.
9. Entende a recorrente ter havido violação das normas de competência relativamente à discussão e julgamento da causa, estando vedado ao juiz relator aditar novos factos aquando da prolação da sentença, devendo estes ter-se por não escritos.
10. Na medida em que o juiz conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento, a sentença encontra-se ferida de nulidade, nos termos do art. 571º, n.º 1, al. d) do CPC.
11. Do documento em que se socorreu o Tribunal para aditar tais factos não se podem extrair as conclusões fácticas exaradas nas alíneas aditadas, mas apenas as seguintes: a) A parcela A, com a superfície de 417m2, delimitada a tracejado, corresponde ao antigo projecto de construção na XXXX(no local XXXX); b) A parcela A não corresponde à soma das descrições n.ºs XXXX e XXXX; c) As áreas registadas nas descrições XXXX e XXXX correspondem a 351.5m2; d) A união da parcela A e da parcela B corresponde à ocupação da construção do prédio n.ºs XXXX a XXXX nos terrenos descritos sob os n.ºs XXXX, XXXX e XXXX.
12. Se nos cingirmos ao documento teremos obrigatoriamente de concluir, tendo como boas as premissas nele reveladas, que a área ocupada pelo prédio dos autores no terreno designado sob o n.º XXXX será de 189.5m2 (a diferença de 541m2 para 351.5m2).
13. Uma conclusão diversa retirada deste documento extravasa os elementos nele ínsitos ou resulta duma interpretação errónea dos mesmos.
14. O facto vertido na alínea aa) é expressamente contraditado pelo documento emitido pela DSCC.
15. Da informação veiculada no documento emitido pela DSCC não se pode concluir como fez o Tribunal a quo na alínea bb) dos factos aditados como assentes.
16. Como resulta literalmente da sentença de que se recorre, decorre do aditamento dos factos aa) e bb) contradição insanável entre os factos apurados e os tidos por assentes.
17. Não se pode concluir simultânea e logicamente que “C construiu parte do prédio actualmente com os n.ºs XXXX a XXXX da Rua XXXXXX sobre o terreno descrito na CRP de Macau sob o n.º XXXX, ocupando-o numa área de 191.97m2” (alínea j) dos factos provados) e que “[a] parcela ocupada com a construção do prédio dos Autores e que pertencia ao prédio XXXX (desanexado do XXXX) tem a área de 124m2” (alínea bb) dos factos provados).
18. O facto dado como provado na alínea j) foi confessado pelos autores e aceite pela ré, devendo as partes e o Tribunal permanecer vinculados pela sua verificação, em respeito do princípio do dispositivo vertido no art. 5º do Código de Processo Civil.
19. O facto dado como provado na alínea bb), como supra se expôs, foi ilegal e intempestivamente aditado, padecendo ademais de um vício de erro notório na apreciação da prova.
20. Deve ser resolvida a contradição insanável procedendo-se à eliminação do facto aditado intempestivamente e com base em pressupostos errados.
21. O douto colectivo do Tribunal a quo, no acórdão que fixou a matéria de facto, em resposta ao quesito 34º concluiu da seguinte forma: “Provado que em 1985 o terreno em causa valia MOP$3.700,00 por metro quadrado”.
22. A sentença recorrida assentou sobre um pressuposto erróneo, visto que o valor oferecido pelo perito arrolado pela ré para o terreno em causa, no ano de 1985, foi não de MOP$3.700,00 por metro quadrado, mas antes de MOP$3.700.000,00 pela parcela de terreno ilicitamente ocupada.
23. Tendo em conta que o perito arrolado pela ré considerou que o tamanho do terreno ilegalmente ocupado era de 189.5m2, tal valor corresponde a um preço por metro quadrado de MOP$19.525,00.
24. A sentença recorrida padece, pois, de erro notório na apreciação da prova, pois ao aceitar – como ficou consignado – o valor do perito arrolado pela ré, muito diferente conclusão se imporia.
25. Deve nesses termos ser corrigida a decisão fáctica, devendo ficar consignado na resposta ao quesito 34º que ficou “Provado que em 1985 o terreno em causa valia MOP$19.525,00 por metro quadrado”.
26. O douto Tribunal a quo, efectivamente, acolheu as razões que determinaram a conclusão sustentada pelo perito da ré, ora recorrente, devendo por isso também acatar também o resultado a que ele chegou.
27. Quanto aos demais peritos que integraram a perícia colegial, em revelia dos elementos facultados pelo Tribunal, estes entenderam, em contradição com o que na altura se encontrava já assente, que a parcela ilegalmente ocupada tinha uma área de apenas 124m2.
28. Ademais, avaliaram a parcela ilegalmente ocupada como se de um terreno autónomo se tratasse e não como se pudesse integrar a construção de muito maior envergadura que a ré desenvolveu nos terrenos contíguos.
29. É manifesto que um pedaço de terreno situado no meio de outros prédios, sem acesso a qualquer via pública, terá um valor muito reduzido se avaliado autonomamente.
30. Era essencial ter em conta que o valor do terreno deveria ser avaliado tendo presente a possibilidade de ser integrado no prédio construído pela ré de Classe MA (muito alto).
31. Os demais peritos recusaram-se a revelar ao perito arrolado pela ré os dados em que se sustentaram para atingir as suas conclusões, o que é totalmente incompreensível, dado que se trata de uma perícia colegial.
32. A impossibilidade de análise e dissecação dos elementos em que se consubstanciaram as conclusões atingidas pelos peritos torna impossível apurar da bondade dos resultados a que chegaram, não podendo esta ser presumida.
33. O Tribunal a quo determinou a acessão imobiliária, nos termos do art. 1343º do pretérito Código Civil, dando por verificada – à revelia de qualquer facto que a sustentasse – a boa fé por parte dos autores e do seu antecessor.
34. O ónus da prova do elemento de boa fé recai sobre os autores, respeitando os princípios básicos de produção da prova, não recaindo sobre a recorrente o ónus de comprovar que os autores agiram de má fé.
35. O douto Tribunal a quo partiu da inexistência de factos que indiciassem a má fé, pecando este raciocínio na medida em que inverte o ónus da prova, violando o estatuído no art. 335º do Código Civil.
36. O elemento de boa fé – neste caso, o desconhecimento de que o terreno sobre o qual o edifício foi construído era alheio – tem de se consubstanciar em factos dados como provados.
37. Os autores poderiam e deveriam ter comprovado através de quaisquer meios de prova admissíveis a boa fé do construtor do edifício, tendo manifestamente falhado nesse propósito.
38. O silogismo adoptado pelo Tribunal a quo para concluir que os autores agiram de boa fé é insustentável, porquanto a conclusão de que os autores terão agido de boa fé devido às várias anexações e desanexações nos terrenos em causa (e contíguos) se trata de um autêntico non sequitur.
39. Tais factos objectivos em nada revelam o elemento cognitivo do autor da construção em terreno alheio, são factos que não têm manifestamente qualquer conexão valorativa.
40. Existe manifesta insuficiência na matéria de facto para sustentar as conclusões atingidas pelo douto Tribunal a quo na sentença recorrida.
41. De resto, e revertendo de novo ao documento providenciado pela DSCC, há um elemento que peremptoriamente aponta para a má fé do construtor de edifício.
42. Tal documento revela que o construtor extravasou manifestamente o projecto inicial de construção, que tinha a área de 417m2 (a parcela A nele identificada).
43. A construção desrespeitou manifestamente o limite gráfico do projecto aprovado, pelo que é insustentável e ilógico falar-se a partir desse momento de qualquer boa fé por parte dos autores.
44. Não se demonstrando o necessário elemento de boa fé, terá obrigatoriamente de sucumbir a pretensão dos autores, não podendo nessa medida ser decretada a acessão imobiliária.
45. A sentença recorrida violou o preceituado no art. 549º, n.º 1 e no art. 556º, n.ºs 1, 2 e 3, ambos do CPC.
46. A sentença recorrida está ferida de nulidade, por excesso de pronúncia, nos termos do art. 571º, n.º 1, al. d) do CPC.
47. A sentença recorrida padece de erros notórios na apreciação da prova que devem ser corrigidos.
48. A sentença recorrida padece de uma contradição insanável na matéria de facto, que deve ser corrigida.
49. A sentença recorrida violou o disposto no art. 1343º do CC de 1966, ou no art. 1263º do CC actual, visto não estar comprovado o elemento de boa fé necessário para o decretamento de boa fé.
50. A sentença recorrida violou o preceituado no art. 335º do CC.
51. Não existem quaisquer factos que demonstrem a boa fé dos autores ou do seu antecessor.
Termos em que, contando com o douto suprimento de Vossas Excelências, deve a sentença recorrida ser revogada, visto não se reunirem as condições necessárias para o decretamento da acessão imobiliária, e de todo o modo devem ser removidos os factos aditados intempestivamente na sentença, assim como alterado o facto proveniente da resposta ao quesito 34º.”
*
Devidamente notificados, responderam os Autores ao recurso, pugnando pela negação de provimento ao recurso.
Por sua vez, também os Autores recorreram jurisdicionalmente da sentença, formulando as seguintes conclusões alegatórias:
“A. A sentença recorrida julgou procedente o pedido subsidiário formulado pelas Recorrentes, de aquisição industrial imobiliária sobre uma parcela de terreno de 124m2.
B. A título de indemnização fixou a sentença recorrida a quantia de MOP$10.270.856,79.
C. O critério de cálculo do valor a indemnizar, constante da fundamentação da sentença recorrida, assenta na multiplicação da área de terreno (124m2) pelo valor unitário de MOP$3.700,00 e actualizado o resultado por aplicação de uma taxa anual de 2.5%, apurada com base nos últimos 18 anos.
D. O produto da fórmula empregue na douta sentença recorrida é MOP$715.571,76 ou MOP$986.423,72, consoante se aplique a taxa de actualização anual de 2.5% durante 18 anos ou durante 31 anos, não MOP$10.270.856,79.
E. A haver outro qualquer critério de cálculo a ter em conta, a sentença é em relação a ele totalmente omissa, o que gera a nulidade, conforme estatui a alínea b) do n.º 1 do artigo 571º do Código de Processo Civil.
F. A decisão está em contradição com os seus fundamentos, o que gera a nulidade da sentença, conforme estatui a alínea c) do n.º 1 do artigo 571º do Código de Processo Civil.
Termos em que, com o douto suprimento de V. Exas., deve o presente recurso ser julgado procedente, anulando-se a decisão recorrida e reenviando-se o processo para o Tribunal a quo para nova decisão, a ser proferida em conformidade com os fundamentos.”
A este recurso respondeu a Ré oferecendo o merecimento dos autos.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
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II) FUNDAMENTAÇÃO
A sentença recorrida deu por assente a seguinte factualidade:
A 1ª A. é viúva de C, com quem foi casada, sendo os restantes AA. filhos de C;
Todos os AA. são, assim, herdeiros de C;
Por escritura de 20 de Dezembro de 1977, lavrada a fls. 82 e segs, do livro de notas para escrituras diversas nº 82A do 1º Cartório Notarial de Macau, A ou A1, a 1ª A. adquiriu a D aliás D1 o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau (CRP) sob o nº XXXX, a fls. 72v do livro B-37, sito na Rua de XXXXXX, nº 3C;
Por escritura de 26 de Março de 1987, lavrada a fls. 48 e segs. do livro de notas para escrituras diversas nº 14F do Cartório Notarial das Ilhas, C adquiriu a A, sua mulher, por doação, o terreno outrora ocupado pelo referido prédio;
Por escritura de 9 de Outubro de 1965, lavrada a fls. 31 e segs. do livro de notas para escrituras diversas n.º 7C do Notário Dr. Alberto Pacheco Jorge, C havia já adquirido a E o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau (CRP) sob o nº XXXX, a fls. 73 do livro B-37, sito na Rua de XXXXXX, nº 3D;
De acordo com as descrições da Conservatória do Registo Predial, os prédios adquiridos por C tinham as áreas de 171,5m2 e 180m2, o que totalizava 351,5m2;
Originariamente, o prédio nº XXXX tinha a área de 1.577,82m2, situando-se entre as Rua XXXXXX e XXXXXX;
Mais tarde, em 1 de Novembro de 1940, os anteproprietários do prédio, E e F anexaram ao seu terreno um outro descrito sob o nº XXXX, a fls. 188 do livro B-29, donde resultou um terreno com a área de 2.135,32 m2;
Em 1984, a requerimento de C, por si e na qualidade de procurador da sua mulher ora 1ª A. A ou A1, foi emitida a licença de obras, destinada à construção de um prédio composto por rés-do-chão e cinco andares superiores no terreno proveniente da demolição dos prédios nºs 3C e 3D da Rua de XXXXXX;
C construiu parte do prédio actualmente com os nºs XXX a XXX da Rua XXXXXX sobre o terreno descrito na CRP de Macau sob o nº XXXX, ocupando-o numa área de 191,97m2;
Na sequência da emissão da licença de obras nº 913/84, C iniciou as obras de construção do edifício a que a mesma se reporta, o qual é constituído por rés-do-chão e 5 pisos, distribuindo-se por 52 fracções autónomas, sendo 11 lojas e 41 apartamentos habitacionais;
C mandou elaborar projectos de arquitectura e de especialidades para um edifício a implantar no terreno resultante da demolição daqueles dois prédios;
Projectos que abrangiam também a parcela de terreno contíguo, com a área de 191,97m2;
Em 9 de Dezembro de 1985 foi concluída a obra de construção;
Ao novo edifício assim implantado no local foi, pelo Leal Senado de Macau, atribuída a seguinte numeração policial: Rua de XXXXXX, nºs XXX a XXX;
Por escritura pública de compra e venda outorgada em 23 de Agosto de 1991 e lavrada de fls. 17 verso e segs. do livro de notas para escrituras diversas nº 69-C do Cartório Notarial das Ilhas, a R. adquiriu a XXX ou XXX, XXX ou XXX, XXX ou XXX, XXX ou XXX, XXX, XXX ou XXX ou XXX e XXX ou XXX o prédio nº XXXX;
O prédio ficou inscrito em nome da ora R. na Conservatória do Registo Predial de Macau sob a inscrição nº XXXX, a fls. 128 verso do livro G-123;
Entretanto, em 21 de Abril de 1994, a R. requereu a desanexação ao prédio descrito sob o nº XXXX de uma parcela de terreno com a área de 302,52m2, à qual veio a ser atribuída a descrição nº XXXX, a fls. 7 do livro B-33L e que se encontra inscrita em nome da R. sob o nº XXXX do livro G-123;
A parcela de terreno com a área de 191,97 m2, sobre a qual C e a 1ª Autora prolongaram o edifício que construíram nos terrenos ocupados pelos antigos prédios nºs 3C e 3D da Rua XXXXXX, faz hoje parte integrante daquela descrição nº XXXX;
Na inscrição de 01.11.1940 do prédio nº XXXX, numa área de 1.712,75m2, foram constituídos nove prédios, entre os quais os nºs 3-C e 3-D da Rua de XXXXXX;
Na inscrição de 01.11.1940 do prédio XXXX consta que na área de 1.712,75m2 havia um pátio de 366,57m2 com dois poços para logradouro comum dos moradores;
Na inscrição de 01.11.1940 do prédio XXXX os 9 prédios foram, assim, em 1940, desanexados da descrição nº XXXX, passando a constar de descrições autónomas, numeradas de XXXX a XXXX, e foram de seguida vendidos, tendo C e sua mulher adquirido dois deles;
Na altura em que foram descritos os prédios a que se reportam os autos no registo predial ainda não se fazia um prévio levantamento cartográfico;
A Ré exigiu judicialmente dos ora Autores a desocupação do terreno em causa;
Em 1985 o terreno em causa valia MOP$3.700,00 por metro quadrado.
Nos últimos 18 anos a variação de preços corresponde a uma taxa média positiva de 2,5%.
A soma das áreas dos prédios XXXX e XXXX (isto é os prédios dos Autores) no terreno corresponde a 417m2 e não aos 351,5m2 constantes do registo;
A parcela ocupada com a construção do prédio dos Autores e que pertencia ao prédio XXXX (desanexado do XXXX) tem a área de 124m2.
*
Contra a sentença foram interpostos dois recursos.
Comecemos pelo recurso da Ré.
Entende a Ré que o juiz não podia aditar factos assentes aquando da prolação da sentença, sendo que a mesma está ferida de nulidade prevista na alínea d) do n.º 1 do artigo 571.º do CPC.
Como observa Viriato de Lima1, “De facto, a selecção dos factos assentes e a base instrutória são meros instrumentos de trabalho, destinados a facilitar a instrução, discussão e julgamento da causa, que não criam nem tiram direitos, pelo que se deve entender que, quanto às mesmas não se coloca, nem a questão do esgotamento do poder jurisdicional do juiz, nem o caso julgado formal.”
Segundo este entendimento, o juiz não está impedido de aditar novos factos assentes ou novos quesitos, apenas deve observar o contraditório.
Assim, no que toca ao aditamento de novos quesitos, o artigo 553.º, n.º 2, alínea f) permite expressamente que o juiz providencie até ao encerramento da discussão pela ampliação da base instrutória da causa.
Já em relação ao aditamento de factos assentes, somos a entender que, se respeitarem a factos provados por acordo, por confissão ou por documento, nada impede que o juiz os tome em consideração, na medida em que a selecção destes factos, segundo entende aquele autor, não implica o esgotamento do poder jurisdicional do juiz nem o caso julgado formal.
E é talvez por esta razão que o artigo 562.º, n.º 2 do CPC manda que o juiz, na elaboração da sentença, tome em consideração os factos admitidos por acordo ou não impugnados, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito e os que o tribunal deu como provados, fazendo o exame crítico das provas de que lhe cumpre conhecer.
Uma vez que as partes foram devidamente notificadas da junção do respectivo documento autêntico, o juiz não está inibido de considerar factos resultantes de prova consubstanciada naquele documento de cuja falsidade não foi invocada por qualquer das partes, daí que improcede a nulidade invocada pela Ré.
*
Ainda em relação ao aditamento de novos factos, entende a Ré que houve erro notório na apreciação da prova, defendendo que não pode extrair do documento autêntico em causa as conclusões fácticas exaradas nas alíneas aditadas aa) e bb).
Sem embargo de melhor opinião, julgamos ter razão a Ré. Vejamos.
Consta do documento facultado pela Direcção dos Serviços de Cartografia e Cadastro junto de fls. 567 e 568 o seguinte:
“Anexo à planta Nº 2815/1989 Data:12/04/2010
Requerente: TRIBUNAL JUDICIAL DE BASE
Localização: Rua de XXXXXX nºs 3C-3D (no local nºs XXX-XXX)
Área da D.S.C.C.:
Parcela A = 417m2 Parcela B = 124m2
Confrontações actuais:
Parcelas A+B:
NE – Rua de XXXXXX nºs 3E-3H(nº XXXX), nºs 5-5A(nºXXXX) e Rua de XXXXXX nºs 75-82(nº XXXX);
SE – Rua de XXXXXX nºs 73-73A (nº XXXX) e 75-85 (nº XXXX);
SW – Rua de XXXXXX nºs 5-5A (nº XXXX) e Estrada de Adolfo Loureiro nºs 20-20AB (nº XXXX);
NW – Rua de XXXXXX nºs 5-5A (nº XXXX), Rua de XXXXXX nºs 7-7A e Estrada de Adolfo Loureiro nºs 22-22D (nºs XXXX e XXXX) e rua de XXXXXX.
OBS:
- A parcela “A” corresponde ao limite gráfico do antigo projecto de construção, com a área de 417m2. A soma das áreas registadas nas descrições nºs XXXX e XXXX corresponde a 351,5m2. Havendo uma diferença na área de +19%.
- As parcelas “A+B” correspondem às descrições nºs XXXX e XXXX, também incluído na descrição nº XXXX. Constituem ocupação com construção do prédio nºs XXX a XX da Rua de XXXXXX.”
De acordo com o teor do tal documento autêntico, bem como dos demais documentos autênticos emitidos pelos serviços públicos e juntos aos autos, verifica-se o seguinte:
- os prédios descritos na Conservatória do Registo Predial sob os n.ºs XXXX e XXXX, com a área total de 351,5 m2, estão registados a favor dos Autores;
- o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º XXXX, com a área de 302,52 m2, resultante da desanexação do prédio XXXX, pertence à Ré;
- C, antecessor dos Autores, construiu um edifício nas parcelas “A” e “B” identificadas na planta emitida pela Direcção dos Serviços de Cartografia e Cadastro;
- As parcelas “A” e “B” correspondem à soma das descrições XXXX, XXXX e XXXX.
- A parcela “A” tem a área de 417 m2, enquanto a parcela “B” a área de 124 m2;
- A parcela “A” corresponde ao limite gráfico do antigo projecto de construção.
Uma das questões colocadas nos presentes autos é saber qual a área ocupada pelo edifício dos Autores no terreno da Ré.
Entende a Ré que o edifício dos Autores ocupa o seu prédio XXXX (desanexado do prédio XXXX), mas não só com a área de 124 m2, assinalado na referida planta cadastral com a letra “B”, e também outra parte do terreno com a área de 65,5 m2, tudo num total de 189,5 m2, pertencente à Ré.
Por seu turno, os Autores defendem que o edifício construído pelo seu antecessor apenas abrange o terreno assinalado com a letra “B”, com a área de 124 m2.
Face ao referido na planta emitida pela Direcção dos Serviços de Cartografia e Cadastro, salvo o devido e muito respeito, somos a entender que não podemos chegar à conclusão de que a parcela ocupada com a construção do edifício dos Autores é apenas o prédio XXXX, com a área de 124 m2 e que a soma das áreas dos prédios XXXX e XXXX corresponde a 417 m2, conforme dito nas alíneas aditadas aa) e bb).
Em bom rigor, se nos cingirmos ao relatório emitido pela Direcção dos Serviços de Cartografia e Cadastro (fls. 567 e 568 dos autos), apenas se verifica que as parcelas “A” e “B”, actualmente ocupadas pelo edifício dos Autores, correspondem às descrições n.ºs XXXX, XXXX e XXXX, mas do mesmo não se retira a conclusão de que a soma das áreas dos prédios registados sob as descrições n.º XXXX e XXXX (propriedade dos Autores) correspondem a 417 m2, antes pelo contrário, vem assinalar que a soma das áreas registadas naquelas duas descrições corresponde somente à área de 351,5 m2, registando-se uma diferença na área de +19%.
Mas dizem os Autores na resposta ao recurso que os factos aditados foram dados como provados não somente com base no documento de fls. 567 e 568.
Ora bem, é bom de ver que conforme dito pelo Juiz-Presidente na sentença recorrida, as alíneas aditadas aa) e bb) foram dadas como provadas “com base na planta emitida pela DSCC junta a folhas 567/568” (leia-se na página 13 da sentença recorrida). Se o tribunal tivesse considerado outros documentos autênticos para dar como assentes determinados factos, deveria tê-los mencionado expressamente, mas não foi isso que aconteceu. Contudo, mesmo que se recorra a outros documentos autênticos constantes dos autos, também não permitem chegar à conclusão de que a parcela ocupada com a construção do edifício dos Autores é apenas o prédio XXXX, com a área de 124 m2 e que a soma das áreas dos prédios XXXX e XXXX corresponde a 417 m2.
Nestes termos, por que o documento (planta cadastral) em si não permite dar como assente o teor das alíneas aditadas aa) e bb), as mesmas têm que ser eliminadas e, em consequência, face à matéria de facto provada, bem assim os elementos carreados naquele documento, pode-se concluir que a área ocupada pelo edifício dos Autores é de 189,50 m2.
Procede, assim, o recurso da Ré quanto a esta parte.
*
A Ré impugna ainda a resposta dada ao quesito 34º, com fundamento em erro notório na apreciação da prova, alegando que a sentença recorrida assentou manifestamente sobre um pressuposto erróneo, visto que o valor do terreno em causa, em 1985, foi fixado pelo perito da Ré não em MOP$3.700,00 por metro quadrado conforme referido na sentença, mas sim em MOP$3.700.000,00 em relação à parcela de terreno ilicitamente ocupada e que, feitas as contas, corresponde a um preço de MOP$19.525,00 por metro quadrado, pedindo que seja consignado na resposta ao quesito este valor.
Ora, foi quesitado no artigo 34º da base instrutória se “Em 1985, o terreno em causa valia MOP$10.000,00 por pé quadrado?”, tendo o tribunal recorrido respondido da seguinte forma: “Provado que em 1985 o terreno em causa valia MOP$3.700,00 por metro quadrado.”
Efectivamente, a sentença recorrida laborou num lapso, ao referir-se que o valor indicado pelo perito da Ré é quase igual ao valor indicado pelos restantes peritos e que sendo diminuta a diferença entre o valor que resulta daqueles mesmos peritos, optou-se pela sua expressão mais baixa.
Na verdade, ao contrário do que refere a sentença recorrida, o valor indicado pelo perito da Ré é muito superior ao indicado pelos restantes peritos. Mais precisamente, o perito da Ré atribuiu o valor de MOP$3.700.000,00 (e não MOP$3.700,00 por metro quadrado) à parcela de terreno ilicitamente ocupada pelos Autores, correspondente a um preço de MOP$19.525,00 por metro quadrado (reportado ao ano de 1985), ao passo que os peritos indicados pelos Autores e pelo tribunal avaliaram o terreno ocupado pelo edifício dos Autores, com a área de 124 m2, em MOP$250.000,00 e MOP$230.000,00, respectivamente.
Não há dúvidas que a força probatória da perícia é apreciada livremente pelo tribunal, nos termos consentidos pelo artigo 383.º do Código Civil, mas a verdade é que os relatórios periciais com base nos quais se formou a convicção do tribunal recorrido não reflectem a realidade, mormente os relatórios apresentados pelo grupo dos 4 peritos, uma vez que os senhores peritos limitaram-se a proceder ao estudo, análise e avaliação da parcela de terreno com a área de 124 m2, entretanto a prova vai no sentido de que a parcela de terreno ilegalmente ocupada pelo edifício dos Autores tem uma área de 189,5 m2, e não apenas de 124 m2.
Estatui o n.º 4 do artigo 629.º do CPC que “se não constarem do processo todos os elementos probatórios que, nos termos da alínea a) do n.º 1, permitam a reapreciação da matéria de facto, pode o Tribunal de Segunda Instância anular, mesmo oficiosamente, a decisão proferida na primeira instância, quando repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto ou quando considere indispensável a ampliação desta; a repetição do julgamento não abrange a parte da decisão que não esteja viciada, podendo, no entanto, o tribunal ampliar o julgamento de modo a apreciar outros pontos da matéria de facto, com o fim exclusivo de evitar contradições na decisão”.
No caso vertente, visto que não foi feita a avaliação do valor da parcela de terreno ocupada pelo edifício dos Autores, com a área de 189,5 metros quadrados, a resposta dada ao quesito 34º da base instrutória padece de deficiência, devendo, assim, ser anulada a resposta ao referido quesito, e ser apreciada novamente a matéria pelo tribunal a quo, após realizadas novas perícias ou outras diligências que melhor entender.
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Finalmente, alega a Ré que a procedência do pedido de aquisição da propriedade por acessão imobiliária depende da prova da boa fé dos Autores e do seu antecessor, mas faltando a prova de qualquer facto que a sustentasse, o pedido dos Autores não pode ser atendido.
Dispõe o n.º 1 do artigo 1343.º do antigo Código Civil que “quando na construção de um edifício em terreno próprio se ocupe, de boa fé, uma parcela de terreno alheio, o construtor pode adquirir a propriedade do terreno ocupado, se tiverem decorrido três meses a contar do início da ocupação, sem oposição do proprietário, pagando o valor do terreno e reparando o prejuízo causado, designadamente o resultante da depreciação eventual do terreno restante”.
Decidiu o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal, de 2-2-1973 (BMJ, 224.º-162), citado a título de direito comparado, o seguinte: “Para efeitos do n.º 1 do artigo 1343.º do CC, o conceito de boa fé é o mesmo do artigo 1340.º desse Código. A boa fé do construtor na ocupação do terreno alheio deve existir enquanto a construção se realiza e cessa com a citação do mesmo construtor para a acção de reivindicação desse terreno.”
Por seu turno, segundo o n.º 4 do artigo 1340.º do mesmo Código, entende-se que houve boa fé “se o autor da obra desconhecia que o terreno era alheio” – sublinhado nosso.
No caso em apreço, foi alegado pelos Autores que C e sua mulher sempre desconheciam a existência do pátio interior como prédio com identidade registral própria e com distinto proprietário, e nunca pensaram estar a prolongar o seu prédio por terreno alheio ou estar a prejudicar quem quer que fosse (cfr. artigo 31º da petição inicial).
Embora os Autores não tenham logrado a prova da primeira parte daquele facto (vide resposta negativa ao quesito 12º), falta saber se o construtor do edifício em terreno próprio desconhecia que a sua obra se prolongou em terreno alheio ao realizar a construção.
Nestes termos, deve o tribunal a quo proceder ao aditamento de novos factos que respeitem aquela matéria, nos termos consignados pelo acima citado artigo 629.º, n.º 4 do CPC.
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Quanto ao recurso dos Autores, estes vêm impugnar contra o valor atribuído pelo Tribunal recorrido, entendendo que, qualquer que seja a fórmula de cálculo empregue, não conseguem alcançar o valor fixado na sentença recorrida, arguindo, em consequência, a nulidade da sentença quanto a esta parte.
Como vimos acima, uma vez que foi anulada a resposta ao quesito 34º, o valor do terreno reportado em 1985 terá que ser novamente apreciado e decidido pelo Tribunal a quo, deste modo ficando prejudicado o conhecimento da questão suscitada pelos Autores.
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III) DECISÃO
Face ao exposto, acordam em conceder parcial provimento ao recurso interposto pela Ré e, consequentemente, decidem:
- Eliminar as alíneas aditadas aa) e bb) dos factos assentes;
- Anular a resposta dada ao quesito 34º, devendo ser novamente apreciada a matéria após realizadas novas perícias ou outras diligências que melhor entender;
- Aditar matéria de facto com vista a apurar se o(s) construtor(es) do edifício em terreno próprio desconhecia(m) que a sua obra se prolongou em terreno alheio ao realizar a construção.
E quanto ao recurso dos Autores, fica o mesmo prejudicado.
Custas pelas partes na proporção do vencido.
Registe e notifique.
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RAEM, 4 de Outubro de 2018
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong
Fong Man Chong
1 Manual de Direito Processual Civil, 2.ª edição, CFJJ, 2008, pág. 447
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Recurso Cível 65/2017 Página 26