Processo n.º 86/2018. Recurso jurisdicional em matéria cível.
Recorrente: A.
Recorrida: B.
Assunto: Revisão e confirmação da sentença do exterior. Interesse processual. Conexão entre a decisão a rever e a Ordem Jurídica de Macau. Bens situados em Macau. Letters of administration.
Data do Acórdão: 28 de Novembro de 2018.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Song Man Lei e Sam Hou Fai.
SUMÁRIO:
I – Na acção de revisão e confirmação da sentença do exterior o requerente tem de alegar e provar ter um interesse concreto na revisão e confirmação de sentença do exterior, visto ser um pressuposto processual o interesse em agir ou interesse processual, o que, as mais das vezes, significará ter de haver uma qualquer conexão entre a decisão a rever e a Ordem Jurídica de Macau.
II - Tendo o requerente de acção de revisão e confirmação da sentença do exterior alegado e provado que o falecido dispunha de bens em Macau que necessitam de ser administrados;
- Tendo o High Court de Hong Kong emitido a favor do requerente o documento necessário para administrar o património do falecido (Letters of administration);
- Tem o requerente interesse em obter a eficácia de tal decisão na Ordem Jurídica de Macau, mesmo que no anexo ao pedido das Letters of administration não constassem os bens existentes em Macau.
O Relator,
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:
I – Relatório
A requereu contra B, incapaz, a revisão e confirmação da decisão proferida pelo High Court de Hong Kong, em 24 de Outubro de 2016, que lhe concedeu cartas de administração de todos os bens imóveis de C, falecido, limitado e para uso e benefício de B, cônjuge do falecido, durante a sua incapacidade.
O Tribunal de Segunda Instância (TSI), por Acórdão de 24 de Maio de 2018, julgou improcedente a acção com o fundamento de que não existe qualquer conexão entre a acção e Macau, já que os bens do falecido situados em Macau não constam do anexo ao pedido de Letters of administration submetido ao High Court de Hong Kong.
Recorre o requerente A, para este Tribunal de Última Instância (TUI), pedindo a revogação do acórdão recorrido, suscitando as seguintes questões:
- Não é requisito da revisão e confirmação de sentença do exterior a conexão com Macau;
- Na decisão a rever não há qualquer restrição aos bens situados em Hong Kong;
- Não constam da lista de activos e passivos apresentada ao tribunal de Hong Kong os bens situados em Macau, porque a lista, de acordo com a lei de Hong Kong, só tem de constar os bens de Hong Kong, mas aqueles bens são abrangidos pela decisão.
II - Os factos
Os factos provados são os constantes do acórdão recorrido, proferido no Processo n.º 586/2017, para os quais se remete, os termos do n.º 6 do artigo 631, aplicável por força do disposto no artigo 652.º, todos do Código de Processo Civil.
III – O Direito
1. As questões a resolver
As questões a resolver são as suscitadas pelo requerente, ora recorrente.
2. Necessidade de conexão da decisão com Macau
Trata-se de saber se é requisito da revisão e confirmação de sentença do exterior a conexão com Macau.
Ensina FERRER CORREIA1 que reconhecer uma sentença estrangeira é atribuir-lhe no Estado do foro (Estado ad quem) os efeitos que lhe competem segundo a lei do Estado onde foi proferida (Estado de origem ou Estado a quo). Esses efeitos são os próprios da sentença considerada como tal – os que derivam da sua natureza de acto de jurisdição – a autoridade de caso julgado e o efeito executivo.
Quer isto dizer que se visa com esta acção a produção de eficácia na Ordem Jurídica da Região Administrativa Especial de Macau, como se retira do n.º 1 do artigo 1199.º do Código de Processo Civil.
Logo, afigura-se que o requerente tem de alegar ter um interesse concreto na revisão e confirmação de sentença do exterior, visto ser um pressuposto processual o interesse em agir ou interesse processual, nos termos do artigo 72.º do Código de Processo Civil, segundo o qual há interesse processual sempre que a situação de carência do autor justifica o recurso às vias judiciais, sendo que a falta de tal interesse conduz à absolvição da instância, de acordo com o disposto na alínea h) do artigo 413.º e do n.º 2 do artigo 412.º do Código de Processo Civil. Ou, no mínimo, tem de resultar da decisão a rever ou dos documentos anexos tal interesse.
Em bom rigor não se trata, portanto, de um requisito de procedência da acção, mas de pressuposto processual, cuja falta redunda em excepção dilatória, que é de conhecimento oficioso, mesmo em recurso jurisdicional.
3. O interesse do requerente na revisão e confirmação da decisão. Letters of administration
Vejamos, então, se o requerente demonstrou interesse em agir, consistente em ter necessidade da produção de eficácia da decisão do High Court de Hong Kong na Ordem Jurídica de Macau ou, pelo menos, se resulta da decisão a rever ou dos documentos anexos tal interesse.
Antes de mais, há que dizer que nos autos não existe litígio, dado que a requerida, devidamente representada, não contestou nem interveio de qualquer forma no processo.
Nos Direitos da common law, como Hong Kong e o Reino Unido da Grã Bretanha e da Irlanda do Norte, Letters of administration é um documento emitido por um tribunal ou probate registry a uma pessoa que irá administrar o património de alguém que faleceu sem testamento, e portanto, sem haver executor nomeado para tal fim.
No caso dos autos, ao requerente, foi emitido o mencionado documento (Letters of administration), que o habilita a administrar o património do falecido.
O acórdão recorrido recusou rever a decisão que emitiu tal documento com o argumento de que na lista de activos e passivos em anexo ao pedido de Letters of administration não constam os bens situados em Macau.
Embora o requerente tenha alegado e provado logo no requerimento inicial que existem bens situados em Macau e que o levou a pedir a revisão e confirmação, para que tal documento tenha eficácia em Macau.
Ouvido pelo TSI sobre esta questão, antes da prolação do acórdão recorrido, veio dizer o requerente que não elencou os bens situados em Macau, aquando da submissão das Letters of administration ao High Court de Hong Kong, porque, de acordo com a lei de Hong Kong (Probate and Administration Office), “Assets ” means assets in the form of real property or personal property situated in Hong Kong [24.A.1 (a)]. Isto é, activos significam activos na forma de propriedade ou propriedade pessoal situados em Hong Kong.
Sobre esta alegação, que, pelo menos, cita correctamente a lei de Hong Kong, nada opôs o acórdão recorrido.
Assim, é pelo menos, um pouco precipitado o conselho do acórdão recorrido de que o requerente deverá pedir novas Letters of administration ao High Court de Hong Kong, fazendo incluir os bens de Macau, para então pedir nova revisão e confirmação ao TSI, sem conhecer em profundidade o Direito de Hong Kong, com institutos inteiramente diversos dos da Ordem Jurídica de Macau, e sem saber se é possível formular novamente tal pedido.
Concluindo:
- O requerente alegou e provou que o falecido dispunha de bens em Macau que necessitam de ser administrados;
- O High Court de Hong Kong emitiu a favor do requerente o documento necessário para administrar o património do falecido;
- Logo, tem o requerente interesse em obter a eficácia de tal decisão na Ordem Jurídica de Macau, mesmo que no anexo ao pedido das Letters of administration não constassem os bens existentes em Macau.
4. Requisitos da revisão e confirmação de sentença do exterior
Não se suscitam dúvidas, nem ninguém as suscitou, sobre a existência dos requisitos previstos no artigo 1200.º do Código de Processo Civil para que a decisão possa ser revista e confirmada.
Logo, procede a acção.
III – Decisão
Face ao expendido, concede-se provimento ao recurso e revê-se e confirma-se a decisão proferida pelo High Court de Hong Kong, em 24 de Outubro de 2016, que concedeu a A, Letters of administration (cartas de administração) de todos os bens imóveis de C.
Sem custas o recurso jurisdicional.
Custas da acção pelo requerente.
Macau, 28 de Novembro de 2018.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Song Man Lei – Sam Hou Fai
1 FERRER CORREIA, Lições de Direito Internacional Privado, I, Coimbra, Almedina, 2000, p. 454 e Lições de Direito Internacional Privado, Aditamentos, Coimbra, lições policopiadas, 1973, p. 4.
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