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Processo n.º 404/2018 Data do acórdão: 2018-10-25
(Recurso penal)
  Assuntos:
– art.o 119.o, n.o 2, do Código de Processo Penal
– usura para jogo
– art.o 13.o da Lei n.o 8/96/M
– abuso de confiança
– depósito
– art.o 1111.o do Código Civil
– tese jurídica da defesa
– omissão de pronúncia
– nulidade da decisão condenatória penal
– art.o 571.o, n.o 1, alínea d), do Código de Processo Civil

S U M Á R I O

1. O art.o 119.o, n.o 2, do Código de Processo Penal (CPP) reza que “A testemunha não é obrigada a responder a perguntas quando alegar que das respostas resulta a sua responsabilidade penal”.
2. Assim, só seria aplicável esta regra processual quando alguma testemunha em causa alegasse que das respostas resultaria a sua responsabilidade penal, de maneira que se a testemunha não alega isto, ela continua a ficar obrigada a responder com verdade às perguntas que lhe forem dirigidas.
3. O acto de emprestar dinheiro a outrem para jogar não integra por si só o crime de usura para jogo previsto no art.o 13.o da Lei n.o 8/96/M, posto que este preceito não incrimina acto de emprestar dinheiro para jogar, mas sim já incrimina acto de emprestar dinheiro (ou qualquer outro meio) para jogar, praticado com intenção de alcançar um benefício patrimonial para o próprio mutuante ou para terceiro (que não seja o mutuário).
4. Na contestação então apresentada, o recorrente expôs que em causa apenas estava em questão a figura contratual de depósito do art.o 1111.o do Código Civil e que a conduta dele próprio só constituia cumprimento tardio da sua obrigação contratual. No acórdão ora recorrido, condenatório dele por crime de abuso de confiança, não há qualquer referência decisória, por parte do tribunal sentenciador, sobre essa tese jurídica da defesa. Há, assim, omissão de pronúncia como vício gerador da nulidade da própria decisão condenatória penal, nos termos subsidiariamente aplicáveis do art.o 571.o, n.o 1, alínea d), do Código de Processo Civil, ex vi do art.o 4.o do CPP.
5. É, pois, de caber ao mesmo tribunal colectivo sentenciador proferir nova decisão jurídica sobre o caso, com apreciação concreta daquela questão jurídica levantada pelo arguido na contestação escrita.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 404/2018
(Recurso em processo penal)
Recorrente (arguido): A







ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA
REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por acórdão proferido a fls. 206 a 213v do subjacente Processo Comum Colectivo n.o CR4-17-0133-PCC do 4.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, ficou condenado o arguido A, aí já melhor identificado, como autor material, na forma consumada, de um crime de abuso de confiança em valor consideravelmente elevado, p. e p. pelos art.os 199.o, n.o 4, alínea b), 196.o, alínea b), e 201.o do Código Penal (CP), na pena de dois anos e três meses de prisão, suspensa na execução por três anos.
Inconformado, veio o arguido recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), tendo alegado (no seu essencial) e peticionado o seguinte na sua motivação de fls. 226 a 232 dos presentes autos correspondentes:
– na contestação então apresentada, ele o recorrente expôs que os factos descritos no despacho de pronúncia deviam ser subsumíveis à figura contratual de depósito do art.o 1111.o do Código Civil (CC) e que a conduta dele próprio só constituia cumprimento tardio da sua obrigação; sucede que no texto do acórdão ora recorrido o Tribunal sentenciador não conheceu dessa questão jurídica, pelo que houve aí omissão de pronúncia como vício gerador de nulidade do acórdão nos termos subsidiariamente aplicáveis do art.o 571.o, n.o 1, alínea d), do Código de Processo Civil (CPC);
– discorda ele do facto provado n.o 8, pois este facto não devia ter sido dado como por provado, tendo o Tribunal sentenciador incorrido em erro notório na apreciação da prova como vício previsto na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP, o que implicaria a absolvição do crime, sendo certo que esse Tribunal violou também o art.o 119.o, n.o 2, do CPP;
– e fosse como fosse, não deixaria de ser pesada a pena aplicada no acórdão recorrido, com violação do disposto nos art.os 40.o, 65.o e 201.o do CP, pelo que deveria o próprio recorrente passar a ser condenado em um ano e oito meses de prisão, suspensa na execução por dois anos.
Ao recurso, respondeu o Digno Procurador-Adjunto junto do Tribunal recorrido a fls. 237 a 244 no sentido de procedência do recurso apenas na parte respeitante à medida da pena.
Subidos os autos, opinou a Digna Procuradora-Adjunta a fls. 253 a 254v, materialmente no sentido de redução da pena.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte:
1. O acórdão ora recorrido encontrou-se proferido a fls. 206 a 213v dos autos, cujo teor integral se dá por aqui integralmente reproduzido.
2. O arguido chegou a apresentar contestação escrita a fl. 193 dos autos, defendendo que em causa apenas estaria em questão a figura contratual de depósito do art.o 1111.o do CC, pelo que a sua conduta só integraria o cumprimento tardio da sua obrigação contratual.
3. Na fundamentação jurídica do referido acórdão, não se abordou essa questão jurídica levantada pelo arguido na contestação.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cabe notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver apenas as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
É nesses parâmetros que vai ser decidida a presente lide recursória.
Ao invocar a existência do vício de erro notório na apreciação da prova, o recorrente assacou ao Tribunal recorrido a violação do art.o 119.o, n.o 2, do CPP.
Desde já, é de observar que contrariamente ao entendido pelo recorrente, não pode o Tribunal recorrido ter violado de maneira alguma o art.o 119.o, n.o 2, do CPP.
É que reza esta norma processual penal que “A testemunha não é obrigada a responder a perguntas quando alegar que das respostas resulta a sua responsabilidade penal”.
Assim, só seria aplicável esta regra processual quando alguma testemunha em causa alegasse que das respostas resultaria a sua responsabilidade penal, de maneira que se a testemunha não alega isto, ela continua a ficar obrigada a responder com verdade às perguntas que lhe forem dirigidas.
Outrossim, diversamente do interpretado pelo recorrente, o acto de emprestar dinheiro a outrem para jogar não integra por si só o crime de usura para jogo previsto no art.o 13.o da Lei n.o 8/96/M, posto que este preceito não incrimina acto de emprestar dinheiro para jogar, mas sim já incrimina acto de emprestar dinheiro (ou qualquer outro meio) para jogar, praticado com intenção de alcançar um benefício patrimonial para o próprio mutuante ou para terceiro (que não seja o mutuário).
E agora do fundo da questão de alegada verificação do vício previsto na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP, mormente no respeitante ao facto provado n.o 8, na parte em que se deu por provado que o recorrente, ao recusar a entrega do numerário depositado pelo ofendido, se apropriou do numerário depositado em casua.
Para o presente Tribunal de recurso, vistos todos os elementos probatórios referidos na fundamentação probatória da mesma decisão recorrida, não se vislumbra que o Tribunal recorrido, aquando da formação da sua convicção sobre os factos, tenha violado quaisquer regras da experiência da vida humana em normalidade de situações, quaisquer normas jurídicas sobre o valor legal da prova, ou quaisquer leges artis vigentes no julgamento de factos. Aliás, o Tribunal recorrido já explicou, congruentemente, nas páginas 7 a 8 do texto desse aresto, ora concretamente a fl. 209 a 209v, o processo de formação da sua livre convicção sobre os factos.
Daí que o facto provado n.o 8 (na parte referente à apropriação pelo arguido do numerário depositado pelo ofendido) não pode ser considerado como desrazoavelmente julgado.
Sendo de respeitar assim o resultado do julgamento da matéria de facto já empreendido pelo Tribunal recorrido, cabe ver se houve omissão de pronúncia por parte desse Tribunal sobre a questão jurídica levantada na contestação escrita do arguido ora recorrente.
Na contestação então apresentada, o recorrente expôs que em causa apenas estava em questão a figura contratual de depósito do art.o 1111.o do CC e que a conduta dele próprio só constituia cumprimento tardio da sua obrigação contratual.
No texto do acórdão ora recorrido, não há qualquer referência decisória, por parte do Tribunal sentenciador, sobre essa tese jurídica da Defesa.
Há, assim, de facto, omissão de pronúncia como vício gerador da nulidade da decisão condenatória penal ora recorrida, nos termos subsidiariamente aplicáveis do art.o 571.o, n.o 1, alínea d), do CPC, ex vi do art.o 4.o do CPP.
É, pois, de caber ao mesmo Tribunal Colectivo sentenciador proferir nova decisão jurídica sobre o caso, com apreciação concreta daquela questão jurídica levantada pelo arguido na contestação escrita.
Não é mister, por estar prejudicado, proceder ao conhecimento, na presente lide recursória, da questão da medida da pena.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar pracialmente provido o recurso, declarando nula a decisão condenatória penal recorrida, cabendo ao mesmo Tribunal Colectivo ora recorrido decidir novamente da presente causa penal, com apreciação concreta da questão jurídica então levantada na contestação escrita do arguido.
Pela parte que decaiu no seu recurso, pagará o arguido as custas respectivas, com quatro UC de taxa de justiça correspondente.
Macau, 25 de Outubro de 2018.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Chou Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)



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