Processo nº 866/2017
(Autos de recurso cível)
Data: 22/Novembro/2018
Assuntos: Mandado sem representação
SUMÁRIO
No contrato de mandato sem representação, o mandatário actua em nome próprio, mas por conta do mandante, adquirindo para si os direitos e assumindo as obrigações por si contraídas, apenas fica obrigado a transferir posteriormente ao mandante os direitos adquiridos em execução do mandato.
E se o mandatário se recusar a transmitir os bens adquiridos por causa do mandato, o mandante tem que intentar uma acção pessoal e não uma acção real.
Tendo os Autores comprado determinada fracção autónoma para investimento, e acordado com o Réu e sua falecida mulher que a compra fosse feita em nome desta para permitir que o casal pudesse adquirir o direito à residência em Macau, ficando ainda acordado que o Réu e sua mulher falecida iriam posteriormente promover ou praticar actos para colocar o imóvel em nome dos Autores, tal acordo consubstancia-se num contrato de mandato sem representação.
Uma vez verificado o incumprimento do mandato, os mandantes ora Autores apenas podem requerer a condenação dos mandatários ora Réus no cumprimento do dever omitido de transferir para os Autores o direito de propriedade do imóvel, adquirido em execução do mandato, e não, tal como pretendido pelos mesmos, lhes seja reconhecida a qualidade de proprietários e, consequentemente, cancelado o respectivo registo registral.
E também nada impede que o mandatário responda, nos termos gerais, pelos prejuízos causados aos mandantes com a falta de cumprimento da obrigação.
O Relator,
________________
Tong Hio Fong
Processo nº 866/2017
(Autos de recurso cível)
Data: 22/Novembro/2018
Recorrentes:
- A e B (Autores)
- C (Réu)
Recorridos:
- Herança aberta por óbito de D, C, E e herdeiros incertos de D (Réus)
- A e B (Autores)
Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:
I) RELATÓRIO
Inconformados com a sentença que julgou parcialmente procedente a acção interposta pelos Autores A e B, com sinais nos autos, os mesmos interpuseram recurso jurisdicional para este TSI, em cujas alegações formularam as seguintes conclusões:
“A. A matéria de facto provada, com os pressupostos fácticos bem expostos em sede de fundamentação do respectivo acórdão, impõe inequivocamente a conclusão de que foram os Recorrentes quem comprou o imóvel dos autos, tendo pago integralmente o preço e todos os encargos e despesas, ficando na posse do mesmo desde então.
B. Os Recorrentes são os donos do imóvel, apenas não figurando como seus titulares no registo predial.
C. Os factos provados são idóneos para ilidir a presunção do art.º 7º do Código do Registo Predial, presunção esta que é ilidível.
D. Portanto, cabia aos Recorrentes pedir – como fizeram, - que fossem reconhecidos e declarados como verdadeiros proprietários e, por conseguinte, que fosse cancelada a inscrição que incorporava a referida presunção registral (ilidida). Pedido cuja improcedência configura, salvo o devido respeito, erro de julgamento. Pois,
E. O tribunal a quo qualificou, e bem, a relação estabelecida entre as partes, Autores e Réus, como um contrato de mandato sem representação, em correspondência com a qualificação que os Recorrentes expuseram na petição inicial.
F. Conforme o ensinamento de Fernando Pessoa Jorge (O Mandato Sem Representação, Almedina, Colecção Teses Reimp., 2001), o mandatário nomine próprio não assume a propriedade das coisas de cuja alienação foi encarregado ou das que adquiriu em cumprimento do mandato.
G. O comitente e o mandante em geral, têm a faculdade de reivindicar as coisas que o mandatário detém em resultado do mandato, e essa faculdade é inerente à propriedade.
H. À face da nossa lei, o acto de aquisição ou alienação, praticado pelo mandatário nomine próprio, tem eficácia directa na esfera jurídica do mandante, pelo menos no que respeita a efeitos reais. (Op. cit., págs. 356-357)
I. Também no âmbito do direito civil, o exemplo da norma (art.º 745º, n.º 1, al. c) do Código Civil de Macau) que «concedendo ao mandatário o direito de retenção sobre as coisas objecto do mandato, inculca considerar que ele não tem a propriedade dessas mesmas coisas.» (Ibidem, pág. 339)
J. Os Recorrentes não podiam apoiar-se na eficácia da promessa da falecida, titular registada do imóvel, e do Réu viúvo, de “porem o imóvel em nome dos seus donos”, uma vez que não tendo sido celebrado contrato escrito, e sendo por isso nula a promessa por falta de forma, estava-lhes vedado o recurso à execução específica.
K. Portanto, não seria viável pedir que o tribunal se substituísse ao(s) mandatário(s) para a emissão da declaração de vontade de transmissão do bem para o nome dos mandantes, Recorrentes, uma vez que não sendo aquele(s) o(s) proprietário(s), o seu acto de vontade estaria destituído de causa, para além de que a aludida promessa seria nula por falta de forma, sempre que, como no caso dos autos, fosse meramente verbal (insusceptível, como já dito, de execução específica).
L. E para quem defenda que, pese embora a eficácia directa do mandato sem representação, em casos como o dos autos sempre seria necessária a celebração de uma escritura pública para o mandante e proprietário poder efectuar o registo a seu favor, pode acrescentar-se que, a par da escritura notarial, a sentença judicial – acto público autêntico, emanado de órgão soberano, idóneo para extinguir, modificar, constituir ou declarar direitos, - que declare o mandante como proprietário do bem é inegavelmente adequada para a efectivação do mencionado registo, com total cabimento para o caso, como o presente, em que o(s) mandatário(s) recusou(aram) efectuar a escritura pública.
M. O tribunal julgou, igualmente, improcedente o pedido subsidiário na parte que respeitava à devolução da quantia de USD$48.000,00, por considerar que a fonte do mesmo era um contrato nulo. Porém,
N. «Está provado que os Autores facultaram a quantia de USD$48.000,00 ao Réu C e à D para que estes fizessem o depósito caução para a aquisição de residência em Macau.»
O. Também nesta parte, com o devido respeito, julga-se ter havido erro de julgamento por insuficiência da decisão recorrida na parte em que não acompanhou o alcance do regime legal, e imperativo, da nulidade.
P. A oficiosidade – a nulidade pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal, nos termos do art.º 279º Código Civil – abarca todo o regime da nulidade e não apenas o acto da sua declaração.
Q. Tanto este como os actos consequentes são oficiosamente decretáveis, e, dir-se-á, imperativos, afigurando-se que não pode o tribunal aplicar só parcialmente o seu regime.
R. Para o efeito, é indiferente que os Autores não tenham invocado a nulidade do aludido contrato e pedido a restituição com base na citada norma, uma vez que a aplicação da mesma não depende da iniciativa da parte nem do princípio do dipositivo: é de aplicação oficiosa.
S. Nenhum sentido faria que o tribunal se ficasse pela declaração de nulidade, ficando a restituição condicionada ao pedido expresso do interessado.
T. Em termos idênticos ao assento fixado pelo Supremo Tribunal de Justiça, em Portugal, é de entender que quando o Tribunal conhecer oficiosamente da nulidade de negócio jurídico invocado no pressuposto da sua validade, e se na acção tiverem sido fixados os necessários factos materiais, deve a parte ser condenada na restituição do recebido, com fundamento no n.º 1 do artigo 282º do Código Civil.
U. O tribunal a quo errou na interpretação e aplicação do disposto nos art.ºs 279º e 282º, n.º 1 do Código Civil.
Termos em que, e nos melhores de Direito, deve proceder o presente recurso e, consequentemente, ser revogada a douta sentença recorrida, devendo ser substituída por outra que julgue procedente o pedido principal formulado na petição inicial, e, bem assim, condenar os Recorridos na devolução aos recorrentes da quantia de USD$48.000,00, fazendo V. Exas. a costumada JUSTIÇA!”
Respondeu o Réu C ao recurso, formulando as seguintes conclusões alegatórias:
“1. Andou bem a douta Sentença do Tribunal a quo ao decidir pela improcedência do pedido principal, alicerçando-se na doutrina e jurisprudência de Pires de Lima e Antunes Varela para sustentar que o mandante não goza de direito de sequela.
2. Tal como claramente estabelece a decisão recorrida, os Autores, aqui Recorrentes, articularam, como pedido principal, o reconhecimento da propriedade destes sobre a fracção dos autos.
3. Por outro lado, o registo predial em nome de D traduz a presunção de propriedade a favor desta, nos termos do artigo 7º do CRP, cfr. alínea B) da matéria de facto assente.
4. Ainda, foi dado como provado que, em 2005, a compra da fracção dos autos foi feita em nome de D, cfr. resposta aos quesitos 1º e 2º da base instrutória.
5. Por fim, a douta Sentença a quo enquadrou o acordo entre os Recorrentes, por um lado, e C e D, por outro, na figura do mandato sem representação, entendimento que é, aliás, retomado pelos Recorrentes no recurso apresentado, uma vez que a falecida D procedeu à aquisição da fracção dos autos em nome próprio, e não em nome dos Recorrentes.
6. Como é bom de ver, e sem prejuízo do exposto em sede de recurso do 2º Réu, nos termos do artigo 1106º do Código Civil de Macau (“CC”), quando o mandatário age em nome próprio, adquire os direitos e assume as obrigações decorrentes dos actos que celebra, embora o mandato seja conhecido dos terceiros que participem nos actos ou sejam destinatários destes.
7. Do mesmo modo, o artigo 1107º, n.º 1 do CC é claro quanto ao efeito do mandato sem representação no que toca os direitos adquiridos em execução do mesmo, estipulando que “O mandatário é obrigado a transferir para o mandante os direitos adquiridos em execução do mandato”.
8. Retomando o entendimento de Pires de Lima e Antunes Varela, já expendido na douta Sentença recorrida, quanto à natureza da obrigação indicada supra, “O princípio geral é, pois, o de que o mandatário fica obrigado a transferir para o mandante os direitos que tenha adquirido. A acção do mandante sobre o mandatário tem, assim, no nosso direito, carácter pessoal e não, como no direito italiano, tratando-se de coisas móveis (art. 1706º), carácter real. A acção não é de revindicação, porque antes da transferência, o mandante não tem nenhum direito sobre os bens adquiridos (…); a acção destina-se apenas a obter o cumprimento de uma obrigação – a de transferir os bens. Daqui, uma consequência, o mandante não goza do direito de sequela (…)”.
9. Destarte, o pedido formulado pelos Autores, aqui Recorrentes de reconhecimento da propriedade destes sobre a fracção dos autos não poderia proceder.
10. A doutrina e jurisprudência são, aliás, unânimes quanto ao carácter obrigacional e não real sobre os bens adquiridos na pendência do mandato sem representação, razão pela qual o douto Tribunal a quo decidiu (e bem) pela improcedência, razão pela qual o douto Tribunal a quo decidiu (e bem) pela improcedência do pedido principal formulado pelos Autores, aqui Recorrentes.
11. Assim, e conforme supra já devidamente explanado, os Autores, ora Recorrentes, nunca poderiam pretender que lhes fosse reconhecida a propriedade da fracção autónoma em crise nos presentes autos, uma vez que tal propriedade não lhes pertence, o que de resto se encontra devidamente comprovado inclusive pelo competente registo predial da mesma.
12. Na senda da douta Sentença a quo, resulta claro que, perante um contrato de mandato sem representação, o mandatário nomine próprio adquire o direito, pelo que entra na sua esfera jurídica o bem que adquire, tornando-se assim proprietário do mesmo, tendo subsequentemente, de o alienar ao mandante, através de um novo negócio jurídico.
13. Ora tal negócio jurídico, a existir, não consubstancia uma venda, mas é, em todo o caso, um acto de alienação – uma modalidade de alienação específica, cuja causa justificativa está no cumprimento de uma obrigação advinda do contrato de mandato para o mandatário, nas suas relações internas com o mandante.
14. Tendo os Autores, aqui Recorrentes, intentado uma acção para reconhecimento da sua pretensa propriedade sobre a fracção dos autos, improcede integralmente o pedido por estes efectuado.
15. Quando à possibilidade de o mandante recorrer ao instituto da execução específica no caso de o mandatário não cumprir a obrigação decorrente de um contrato de mandato sem representação, e sem prejuízo do expendido em sede de recurso do 2º Réu, sempre se dirá que a jurisprudência maioritária inclina-se no sentido de restringir tal regime aos casos em que a obrigação de emitir a declaração negocial resulta de um contrato-promessa.
16. Assim, no caso de um mandatário não cumprir a obrigação de transferir para o mandante os direitos adquiridos em execução do mandato, nos termos do artigo 1107º, n.º 1 do CC, este último apenas poderá exigir uma indemnização por perdas e danos decorrente de tal incumprimento.
17. Destarte, sem prejuízo do expendido em sede de recurso do 2º Réu, e ao contrário do alegado pelos Recorrentes, a douta Sentença recorrida procedeu a uma correcta apreciação dos factos e das normas legais aplicáveis no que toca à improcedência do pedido principal aos Autores, aqui Recorrentes.
18. Pelo exposto, requer-se desde já, como a final, a Vossas Excelências se dignem julgar totalmente improcedente o recurso apresentado, mantendo-se integralmente a decisão recorrida no que toca à improcedência do pedido principal, sem prejuízo do recurso do 2º Réu.
19. A douta Sentença do Tribunal a quo decidiu ainda pela improcedência do pedido subsidiário de devolução de US$48.000,00 (quarenta e oito mil dólares) aos Autores, aqui Recorrentes, por nulidade parcial do acordo entre estes e o 2º Réu e D.
20. Acrescenta ainda a douta decisão recorrida que nem pelo efeito retroactivo da nulidade pode a pretensão dos Recorrentes proceder, porquanto nada indica o motivo pelo qual os mesmos procederam à transferência da quantia que peticionam.
21. Vêm os Recorrentes arguir que o regime da nulidade impunha o seu conhecimento oficioso por parte do douto Tribunal a quo, bem como a condenação da contraparte na restituição do recebido, cfr. assento n.º 4/95 do STJ, de 28 de Março de 2003, no processo 85 202/94 – 1ª secção..
22. Sem prejuízo do exposto em sede de recurso pelo 2º Réu, a análise do douto Tribunal a quo quanto às consequências da nulidade parcial do contrato de mandato nos termos ora exposto não merece reparo no que toca à não devolução dos US$48.000,00 peticionados.
23. De facto, o referido assento do STJ refere que “Quando o Tribunal conhecer oficiosamente da nulidade de negócio jurídico invocado no pressuposto da sua validade, e se na acção tiverem sido fixados os necessários factos materiais, deve a parte ser condenada na restituição do recebido (…)”
24. Ora, tal como referido pela douta Sentença recorrida, “(…) nada indica o motivo por que os Autores fizeram a transferência daquela quantia o que impede que se afirme que a quantia foi apenas facultada em vista dessa parte do acordo. (…)”, pelo que inexistem os factos materiais necessários ao decretamento das consequências da nulidade parcial do contrato de mandato.
25. De facto, conquanto o douto Tribunal a quo tenha entendido que o propósito ou fim da transferência de US$48.000,00 tenha sido o cumprimento do depósito-caução para a aquisição de residência do 2º Réu e de D em Macau, inexiste qualquer fundamento quanto ao motivo para tal transferência, cabendo tal ónus aos Autores, aqui Recorrentes, nos termos do artigo 335º do CC.
26. Não estando demonstrada a motivação para a transferência de US$48.000,00 por parte dos Autores, aqui Recorrentes, não poderia o douto Tribunal a quo decidir senão no sentido da improcedência de tal pedido subsidiário.
27. Nestes termos, requer-se, como a final, a Vossas Excelências se dignem julgar improcedente o presente recurso, mantendo-se na íntegra a douta decisão recorrida, sem prejuízo do expendido em sede de recurso do 2º Réu.
Nestes termos, e nos melhores de Direito que Vossas Excelências doutamente suprirão, deverá o Recurso ser julgado improcedente, confirmando-se o douto Acórdão proferido pelo Tribunal a quo, sem prejuízo do expendido em sede de recurso do 2º Réu, assim se fazendo a costumeira Justiça.”
*
O Réu C, também inconformado com a sentença, interpôs recurso jurisdicional para este TSI, em cujas alegações formulou o seguinte:
“1. O douto Acórdão do Tribunal a quo deu como provado que o preço da compra da fracção descrita na alínea B) dos factos assentes foi integralmente pago pelos Autores designadamente através de transferência de fundos para a conta bancária da falecida D, cfr. resposta ao quesito 3º da base instrutória a fls. 200.
2. Salvo o devido respeito, a prova carreada em sede de audiência contraria esse entendimento, pois que a mesma não demonstra a existência de quaisquer pagamentos para além de HKD$623.200,00 e de HKD$328.675,00, transferidos em 24 e 28 de Maio de 2005, respectivamente.
3. Também não ficou provado, por um lado, que a soma dos montantes supra referidos perfaziam a totalidade do preço do imóvel e por outro, que foi sequer paga a totalidade do preço da compra da fracção supra indicada.
4. Uma vez que cabia aos Autores, no respeito do princípio do ónus da prova ínsito no artigo 335º do Código Civil de Macau (“CC”), fazer prova dos factos constitutivos do direito alegado, não poderia o douto Tribunal a quo decidir, face à prova testemunhal realizada em sede de audiência, senão no sentido da não prova do quesito 3º da base instrutória.
5. Quando muito, o douto Tribunal a quo apenas poderia decidir no sentido da prova parcial do mesmo quesito, isto quanto aos pagamentos efectivamente confirmados – a saber, o pagamento dos montantes de HKD$623.200,00 e de HKD$328.675,00, indicados na 2ª parte do quesito 3º da base instrutória.
6. Aliás, o Réu C, em sede de depoimento de parte, apenas admitiu a existência de duas transferências em 24 e 28 de Maio de 2005, de HKD$623.200,00 e de HKD$328.675,00, respectivamente, negando contudo que as mesmas tenham sido feitas pelos Autores.
7. No mesmo sentido, a testemunha F confirmou apenas a existência das transferências identificadas na 2ª parte do quesito 3º da base instrutória, alegando que tais transferências apenas correspondiam a parte do preço da fracção.
8. A mesma testemunha acrescentou desconhecer a quem pertencia o remanescente do dinheiro para a compra da fracção sub judice.
9. Quanto às restantes testemunhas, confessaram desconhecer quaisquer pagamentos, ou não ter qualquer conhecimento directo dos mesmos.
10. Tal como consta do documento n.º 5 junto com a petição inicial, o preço da aquisição da fracção objecto dos presentes autos totalizou MOP$1.624.613,00 (um milhão seiscentas e vinte e quatro mil seiscentas e treze patacas).
11. Uma vez que as transferências identificadas no quesito 3º da base instrutória perfazem HKD$951.785,00, ou seja, MOP$980.431,25, e atendendo aos testemunhos vertidos em sede de audiência, é indesmentível que não se encontra provado o pagamento integral da compra da fracção sub judice.
12. Não tendo sido feita prova do que corresponderia ao pagamento do valor integral da fracção por parte dos Autores, é mister concluir pela não prova do quesito 3º da base instrutória, com excepção das duas transferências efectuadas em 24 e 28 de Maio de 2005, de HKD$623.200,00 e HKD$328.675,00, respectivamente,
13. Pelo que se requer desde já, como a final, a Vossas Excelências que se dignem julgar procedente o recurso apresentado, considerando-se como não provado o quesito 3º da base instrutória, com excepção do pagamento dos montantes de HKD$623.200,00 e HKD$328.675,00 aí indicados.
Por outro lado,
14. A douta Sentença do Tribunal a quo decidiu no sentido da nulidade das cláusulas respeitantes à aquisição da residência dos Réus em Macau, entendimento que sufragamos, concluindo igualmente pelo indeferimento dos pedidos daí decorrentes (como seja a condenação no pagamento do depósito caução).
15. Quanto ao pedido de reconhecimento dos Autores enquanto proprietários da fracção sub judice considerou (e bem) o douto Tribunal a quo que os pedidos formulados pelos Autores não podem proceder, cfr. fundamentação a fls. 202v e 203 para a qual se remete, e se segue.
16. Já no que toca aos pedidos subsidiários, sem prejuízo de o douto Tribunal a quo indeferir os pedidos respeitantes às quantias despendidas com a aquisição do imóvel, veio depois articular os referidos pedidos concluindo que “o que os Autores pretendem é a condenação dos Réus no pagamento do valor do imóvel, valor este não apenas correspondente ao da aquisição em 2005, aquando da execução do mandato, mas também ao valor acrescido que o imóvel poder ter quando os Autores são pagos” (cfr. Sentença a fls. 230v e 204).
17. Salvo o devido respeito, julga-se que o arrazoamento do douto Tribunal a quo não pode proceder nestes moldes, sob pena de constituir uma condenação extra petitio, causa de nulidade da Sentença nos termos do artigo 571º, n.º 1, alínea e), 2ª parte do CPC.
18. Efectivamente, os Autores pediram subsidiariamente que fossem os Réus condenados a devolver todas as quantias pagas por aqueles, acrescidas da valorização da fracção objecto dos presentes autos, desde a data da celebração do contrato-promessa de compra e venda até efectivo e integral pagamento.
19. No entanto, e sem prejuízo do expendido quanto às quantias efectivamente pagas pelos Autores e melhor descritas em sede de recurso de matéria de facto, a causa de pedir para os pedidos subsidiários deduzidos pelos Autores é o enriquecimento sem causa dos Réus, e os factos que a sustentariam respeitam às quantias efectivamente pagas pelos primeiros.
20. A este respeito, o princípio do dispositivo, plasmado nos artigos 5º e 564º do CPC, determina que são as partes que deverão alegar os factos que integram a causa de pedir aqueles em que se baseiam as excepções, estando o juiz limitado na sua decisão aos factos alegados pelas partes, sem prejuízo das excepções legalmente previstas.
21. Uma vez que apenas se encontra provado o pagamento dos valores descritos na 2ª parte do quesito 3º da base instrutória, e não da totalidade do preço do imóvel, como já foi exposto em sede de recurso de facto, é apenas esse o valor que poderia eventualmente servir de base à condenação nos presentes autos.
22. A não se considerar assim, verificar-se-ia a existência de enriquecimento sem causa, sim, mas por parte dos Autores, que lograriam obter um imóvel pelo qual, claramente, não pagaram a totalidade do preço.
23. Acresce ainda que, tal como foi por demais referido em sede de audiência, os Réus somente ocuparam o imóvel nos primeiros meses após a compra, sendo que, posteriormente, as rendas resultantes do arrendamento do mesmo a terceiros foram entregues aos Autores.
24. Assim, os réus nunca tiraram verdadeiro proveito de um imóvel que se encontra registado em nome dos mesmos, tendo os benefícios do mesmo sido entregues aos Autores.
25. Imagine-se, a contrario sensu, que a fracção objecto dos presentes autos não se tinha valorizado, mas pelo contrário, o seu valor era hoje inferior ao valor da compra em 2005. Ter-se-ia por boa a decisão que reduzisse o valor peticionado pelos Autores face à desvalorização da fracção?
26. Estando o pedido dos Autores ancorado no instituto do enriquecimento sem causa, e tendo apenas sido demonstrada a existência de duas transferências em 24 e 28 de Maio de 2005, de HKD$623.200,00 e HKD$328.675,00, respectivamente, não tendo sido provado o pagamento da totalidade do preço da fracção, é de todo intolerável que o Tribunal a quo condene os ora Réus extra petitio, pelo exposto supra.
27. Destarte, inexistindo factos que provem o pagamento do valor total do imóvel – mas tão-somente os pagamentos descritos na 2ª parte do quesito 3º da base instrutória – nunca poderia a douta Sentença do Tribunal a quo condenar os Réus por factos que não se encontram provados, sob pena de excesso de pronúncia.
28. Devendo consequentemente ter sido limitada a sentença ora recorrida aos valores efectivamente pagos pelos Autores, a saber, os montantes resultantes das transferências em 24 e 28 de Maio de 2005, de HKD$623.200,00 e de HKD$328.675,00, respectivamente, e melhor descritos na 2ª parte do quesito 3º da base instrutória.
29. Em conclusão, a decisão recorrida enferma de nulidade, por violação do artigo 571º, n.º 1, alínea e) do CPC, o que importa a revogação da parte da Sentença que condenou os Réus, aqui Recorrentes ao pagamento do valor que a fracção autónoma objecto dos presentes autos tiver aquando do pagamento voluntário ou da execução da Sentença, o que, expressamente, se requer.
Nestes termos e nos melhores de direito aplicáveis, que V. Exas. doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado totalmente procedente, revogando-se a decisão recorrida em conformidade, fazendo V. Exas., mais uma vez, a costumada Justiça.”
Ao recurso não responderam os Autores.
*
Corridos os vistos, cumpre decidir.
***
II) FUNDAMENTAÇÃO
A sentença deu por assente a seguinte factualidade:
D, faleceu em 2013, em Shanghai, no estado de casada com o Réu, C (alínea A) dos factos assentes).
Sob o número 112913G, encontra-se inscrita no registo predial a favor de D a aquisição da fracção autónoma “T18”, correspondente ao 18º andar “T” do prédio urbano sito em Macau, na Rua do XX, n.º XX, Bloco XX, denominado Edifício XX, descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o n.º 2XXX9, a fls. XX5V do Livro BXX (alínea B) dos factos assentes).
No ano de 2005, os AA., para investimento imobiliário, compraram a fracção autónoma referida em B), tendo feito a compra em nome de D (resposta ao quesito 1º da base instrutória).
Por opção dos autores, do réu e de D, a compra foi feita em nome de D para que esta e o réu marido pudessem adquirir a residência de Macau, como pretendiam e conseguiram por via de tal compra (resposta ao quesito 2º da base instrutória).
O preço da aludida compra foi integralmente pago pelos Autores, designadamente através de transferência de fundos para a conta bancária da falecida D, conta n.º 24-11-10-0XXXX6, do Banco XX, sucursal de Macau, em 24 de Maio de 2005, no montante de HK623.200,00, e em 28 de Maio de 2005, no montante de HK328.675,00 (resposta ao quesito 3º da base instrutória).
Os autores pagaram o respectivo imposto de selo, no montante de MOP$51.176,00 (resposta ao quesito 4º da base instrutória).
Igualmente, o depósito-caução para o efeito da aquisição da residência por parte do Réu e da sua falecida esposa D foi facultado pelos AA., através de transferência bancária internacional no montante de USD$48.000,00 (resposta ao quesito 5º da base instrutória).
Após o falecimento de D, perante insistentes interpelações dos Autores, o Réu C recusa-se a promover ou a praticar quaisquer actos para colocar o imóvel em nome daqueles, ao invés do que se havia comprometido juntamente com a falecida (resposta ao quesito 7º da base instrutória).
*
Comecemos pelo recurso dos Autores
A sentença recorrida julgou improcedente o pedido principal formulado pelos Autores que consistiu no reconhecimento e declaração dos mesmos como proprietários do imóvel identificado nos autos e, consequentemente, cancelamento da inscrição predial que titulou a aquisição da mencionada fracção em nome da falecida D.
De acordo com a matéria dada como provada, os Autores compraram a fracção identificada nos autos para investimento, e acordaram com o Réu C e sua falecida mulher D que a compra fosse feita em nome da falecida D para permitir que o casal pudesse adquirir o direito à residência em Macau. Mais ficou acordado que o Réu C e sua mulher falecida iriam promover ou praticar actos para colocar o imóvel em nome dos Autores, entretanto, depois da morte de D, o Réu C recusou-se a restituir o imóvel aos mesmos.
Conforme decidido pelo Tribunal recorrido, e bem, tratando-se a relação estabelecida entre os Autores, o Réu C e sua falecida mulher D de um contrato de mandato sem representação, o acto de compra foi praticado em nome próprio da D e não em nome dos Autores, nos termos previstos no artigo 1106.º do Código Civil.
De acordo com o n.º 1 do artigo 1107.º do Código, “o mandatário é obrigado a transferir para o mandante os direitos adquiridos em execução do mandato.”
Decidiu-se no Acórdão do STJ1, citado a título de direito comparado: “No mandato sem representação, o mandatário é titular dos direitos adquiridos na sequência dos actos que pratica no exercício do mandato. O mandatário sem representação é obrigado a transferir para o mandante os direitos adquiridos através do mandato, transferência essa a operar mediante um acto de alienação específica(…)”
No mesmo sentido, decidiu o Acórdão da Relação de Lisboa2: “O mandatário em nome próprio a quem foi vendido um prédio, tem, subsequentemente, de o alienar ao mandante através de um novo negócio jurídico, que consubstancia uma modalidade alienatória específica, cuja causa justificativa está no cumprimento de uma obrigação advinda para o mandatário, nas suas relações internas com o mandante. O mandante pode recorrer à execução específica da obrigação de contratar, nos termos do artigo 830.º do Cód. Civil, no caso de o mandatário não cumprir aquela obrigação.”
De facto, no contrato de mandato sem representação, o mandatário actua em nome próprio, mas por conta do mandante, adquirindo para si os direitos e assumindo as obrigações por si contraídas, apenas fica obrigado a transferir posteriormente ao mandante os direitos adquiridos em execução do mandato.
E se o mandatário se recusar a transmitir os bens adquiridos por causa do mandato, o mandante tem que intentar uma acção pessoal e não uma acção real.
Como observa José Alberto González3, não se cumprindo a obrigação de transferir para o mandante aqueles direitos, “este pode accionar directamente o mandatário para obter a transferência, tendo aquela acção carácter pessoal, pelo que, sendo os bens alienados a favor de outrem, o mandatário responde contratualmente pelos prejuízos causados ao mandante (nos termos gerais dos artigos 798.º a 808.º), permanecendo eficazes os actos celebrados a favor de terceiro”.
Antes da transferência, o mandante não tem nenhum direito sobre os bens adquiridos em execução do mandato, por isso não pode reivindicá-los do mandatário, e havendo lugar a acção judicial contra o mandatário, esta destina-se apenas a obter o cumprimento de uma obrigação que consiste na transferência daqueles bens.
Aqui chegados, uma vez verificado o incumprimento do mandato, os mandantes ora Autores apenas podem requerer a condenação dos mandatários ora Réus no cumprimento do dever omitido de transferir para os Autores o direito de propriedade do imóvel, adquirido em execução do mandato, e não, tal como pretendido pelos mesmos, lhes seja reconhecida a qualidade de proprietários e, consequentemente, cancelado o registo a favor da falecida D.
E não obstante que os Autores não podiam obter a execução específica, por não ter sido celebrado o contrato por escrito, nada impede que o mandatário responda, nos termos gerais, pelos prejuízos causados aos mandantes com a falta de cumprimento da obrigação.
Destarte, improcede o recurso quanto a esta parte.
*
Pedem ainda os Autores ora recorrentes a condenação dos Réus no pagamento da quantia de USD48.000,00, referente à caução para a aquisição de residência em Macau.
Ora bem, salvo o devido respeito, julgamos assistir razão aos Autores nesta parte.
Os factos indicam que os Autores, o Réu C e sua falecida mulher D fizeram inserir no mandato cláusulas segundo as quais o Réu C e D aproveitariam a aparência de ser esta a adquirente do respectivo bem imóvel para pedirem a fixação de residência em Macau, comprometendo-se a fazer com que o imóvel voltasse a ficar em nome dos Autores no futuro.
Conforme decidido pelo Tribunal recorrido, e bem, trata-se de um acordo manifestamente contrária à lei, em especial, ao regime de fixação de residência na RAEM previsto no Regulamento Administrativo n.º 3/2005, na medida em que o Réu C e sua falecida mulher D não eram os verdadeiros adquirentes do bem imóvel em causa, daí que as cláusulas relativas à fixação de residência na RAEM não podem deixar de ser nulas nos termos previstos no n.º 1 do artigo 273.º do Código Civil.
Nos termos do n.º 1 do artigo 282.º do Código Civil: “Tanto a declaração de nulidade como a anulação do negócio têm efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente.”
Ora, sendo nula a parte do acordo relativa à fixação de residência, o depósito-caução entregue pelos Autores ao Réu C e sua falecida D, para efeito da aquisição da residência na RAEM, no montante de USD48.000,00, deve ser restituído aos Autores, por força do disposto no n.º 1 do artigo 282.º do Código Civil.
A nosso ver, embora se desconheça o motivo por que os Autores fizeram a transferência daquela quantia a favor do Réu C e sua falecida D, mas nada impede que o Tribunal ordene a restituição daquela quantia aos Autores, por ser uma consequência decorrente da lei, e se havendo alguma causa justificativa de não restituição, por exemplo a quantia em causa consubstancia a contrapartida de um contrato de mandato sem representação ou uma liberalidade a favor do Réu C e sua falecida D, compete aos Réus alegar e demonstrar tal factualidade, por serem matéria de excepção.
Assim sendo, procede o recurso nesta parte, sendo os Réus condenados a restituir aos Autores a quantia de USD48.000,00, convertível em patacas de acordo com a respectiva taxa de câmbio, acrescida de juros legais a contar de citação.
*
Quanto ao recurso do Réu C, o mesmo começa por impugnar a resposta dada pelo Tribunal recorrido ao quesito 3º da base instrutória, alegando ter havido erro na apreciação da prova, na medida em que, segundo o Réu ora recorrente, demonstrado não está o pagamento integral do preço da compra pelos Autores.
Vejamos.
Foi dado como provado o quesito 3º da seguinte forma: “O preço da aludida compra foi integralmente pago pelos Autores, designadamente através de transferência de fundos para a conta bancária da falecida D, conta n.º 24-11-10-0XXXX6, do Banco XX, sucursal de Macau, em 24 de Maio de 2005, no montante de HKD623.200,00, e em 28 de Maio de 2005, no montante de HKD328.675,00.”
Dispõe o artigo 629º, nº 1, alínea a) do CPC que a decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pelo Tribunal de Segunda Instância se, entre outros casos, do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada a decisão com base neles proferida.
Estatui-se nos termos do artigo 558º do CPC que:
“1. O tribunal aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto.
2. Mas quando a lei exija, para a existência ou prova do facto jurídico, qualquer formalidade especial, não pode esta ser dispensada.”
Como se referiu no Acórdão deste TSI, de 20.9.2012, no Processo n.º 551/2012: “…se o colectivo da 1ª instância, fez a análise de todos os dados e se, perante eventual dúvida, de que aliás se fez eco na explanação dos fundamentos da convicção, atingiu um determinado resultado, só perante uma evidência é que o tribunal superior poderia fazer inflectir o sentido da prova. E mesmo assim, em presença dos requisitos de ordem adjectiva plasmados no art. 599º, nºs 1 e 2 do CPC.”
Também se decidiu no Acórdão deste TSI, de 28.5.2015, no Processo n.º 332/2015 que:“A primeira instância formou a sua convicção com base num conjunto de elementos, entre os quais a prova testemunhal produzida, e o tribunal “ad quem”, salvo erro grosseiro e visível que logo detecte na análise da prova, não deve interferir, sob pena de se transformar a instância de recurso, numa nova instância de prova. É por isso, de resto, que a decisão de facto só pode ser modificada nos casos previstos no art. 629º do CPC. E é por tudo isto que também dizemos que o tribunal de recurso não pode censurar a relevância e a credibilidade que, no quadro da imediação e da livre apreciação das provas, o tribunal recorrido atribuiu ao depoimento de testemunhas a cuja inquirição procedeu.”
Na mesma senda, salienta-se ainda no Acórdão deste TSI, de 16.2.2017, no Processo n.º 670/2016 que: “Quando a primeira instância forma a sua convicção com base num conjunto de elementos, entre os quais a prova testemunhal produzida, o tribunal “ad quem”, salvo erro grosseiro e visível que logo detecte na análise da prova, não deve interferir nela, sob pena de se transformar a instância de recurso, numa nova instância de prova. É por isso que a decisão de facto só pode ser modificada nos casos previstos no art. 629º do CPC” e que o tribunal de recurso não pode censurar a relevância e a credibilidade que, no quadro da imediação e da livre apreciação das provas, o tribunal recorrido atribuiu ao depoimento de testemunhas a cuja inquirição procedeu.”
O Tribunal a quo fundamentou a decisão da matéria de facto, em relação à resposta dada ao quesito 3º da base instrutória, nos seguintes termos:
“Não obstante não constar dos autos documentos capazes de demonstrar que todo o preço e toda a caução foram pagos pelos Autores, as declarações da 1ª testemunha em articulação com os documentos juntos, permitem concluir que foram os Autores quem os pagou face à total passividade da D e do Réu C relativamente à fracção autónoma depois da sua saída.
A eventual insuficiência de prova acerca desse último aspecto é colmatada pelas declarações da 2ª testemunha.
Essa testemunha declarou que a 1ª testemunha, seu marido, deu a fracção autónoma de arrendamento munido de uma procuração passada pela D e tratou de todos os assuntos relativos à fracção autónoma enquanto que a testemunha fazia o registo das rendas e das despesas da fracção autónoma com base nos documentos e recibos apresentados pela 1ª testemunha desde há mais de 10 anos, registos estes que apresentava aos Autores, não tendo D como o Réu C pago nada nem reivindicado nada ao longo desses anos. Mais disse que a fracção autónoma fora integralmente paga pelos Autores mas que ficara em nome da D para permitir a esta e ao Réu C fixar residência em Macau. Apesar de a testemunha não ter participado nessa parte e de ter sido o seu marido quem lhe dera conta dos factos indicados no período anterior, o certo é que a testemunha tentara persuadir o Réu C para restituir o imóvel aos Autores depois de saber que este tinha recusado fazê-lo tendo o Réu C dito que essa era a última oportunidade para poder enriquecer.”
Em boa verdade, com excepção daqueles meios de prova que possuem força probatória plena, os restantes têm idêntico valor, cometendo-se ao julgador a liberdade da sua valoração e decidir segundo a sua prudente convicção acerca dos factos controvertidos, em função das regras da lógica e da experiência comum.
Não raras vezes, pode acontecer que determinada versão factual seja sustentada pelo depoimento de algumas testemunhas, mas contrariada pelo depoimento de outras.
A convicção do Tribunal alicerça-se no conjunto de provas produzidas em audiência, incluindo-se prova documental, competindo-lhe atribuir o valor probatório que melhor entender, nada impedindo que se confira, salvo raras excepções, maior relevância ou valor a determinadas provas em detrimento de outras.
No caso vertente, dúvidas não restam de que o recorrente pretende sindicar a íntima convicção do Tribunal recorrido formada a partir da apreciação e valoração global das provas produzidas em audiência e dos documentos juntos aos autos.
Na verdade, estando no âmbito da livre valoração e convicção do julgador, a alteração da resposta dada pelo Tribunal recorrido à matéria de facto só será viável se conseguir lograr de que houve erro grosseiro e manifesto na apreciação das provas.
Salvo o devido respeito por diferente opinião, somos a entender que, lidos os argumentos que o recorrente fez nas suas alegações e confrontando-os com a fundamentação do Tribunal recorrido, não se vislumbra qualquer erro manifesto na apreciação da matéria de facto.
Improcede, pois, o recurso nesta parte.
*
O recorrente defende ainda que andou mal o Tribunal recorrido ao condenar os Réus no pagamento aos Autores do valor que o imóvel tiver aquando do pagamento voluntário pelos Réus ou da execução de sentença, com fundamento na falta de causa de pedir, para além de não dever dar-se como provado o pagamento integral do preço pelos Autores.
Tal como acima referido, não se mostra ter havido qualquer erro grosseiro e manifesto na apreciação das provas pelo Tribunal recorrido, pelo que não há lugar a alteração da resposta dada ao quesito 3º.
Quando a alegada falta de causa de pedir invocada pelo Réu, somos a entender que não lhe assiste qualquer razão.
A causa de pedir é o facto jurídico de que procede a pretensão (artigo 417.º, n.º 4 do Código de Processo Civil).
Como observa Manuel Teixeira de Sousa4, “A causa de pedir é integrada pelos factos necessários para individualizar o direito ou interesse invocado pela parte; é integrada pelos factos essenciais para individualizar a situação subjectiva alegada.”
E são essenciais aqueles factos sem cuja verificação o pedido não pode ser julgado procedente.
Ora bem, de acordo com os factos alegados pelos Autores, e devidamente comprovados em audiência, dúvidas não restam de que existem factos essenciais para fundamentar o seu direito invocado e o pedido formulado. Enquanto no tocante à qualificação jurídica, o juiz não está sujeito às alegações das partes quanto à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, pelo que, não obstante se ter invocado pelos Autores o instituto de enriquecimento sem causa, nada impede que o tribunal conclua por uma qualificação diversa.
Sendo assim, improcede o recurso nesta parte.
***
III) DECISÃO
Face ao exposto, acordam em conceder parcial provimento ao recurso interposto pelos Autores, condenando os Réus, herança aberta por óbito de D, C, E e herdeiros incertos de D, a pagar aos Autores A e B a quantia de USD48.000,00, convertível em patacas de acordo com a respectiva taxa de câmbio, acrescida de juros legais a contar de citação.
Nega-se provimento ao recurso interposto pelo Réu C.
Custas pelos recorrentes e recorridos na proporção do decaimento.
Notifique.
***
RAEM, 22 de Novembro de 2018
_________________________
Tong Hio Fong
_________________________
Lai Kin Hong
_________________________
Fong Man Chong
1 STJ, 26-10-2004: CJ/STJ, 2004, 3.º-84
2 RL, 2-11-1999: CJ, 1999, 5.º-74
3 Código Civil Anotado, Volume III, pág. 381
4 Introdução ao Processo Civil, 2.ª edição, pág. 32 e 33
---------------
------------------------------------------------------------
---------------
------------------------------------------------------------
Recurso Cível 866/2017 Página 28