Proc. nº 615/2018
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 22 de Novembro de 2018
Descritores:
- Contrato-promessa
- Eficácia e Ineficácia
- Revogação
- Distrate
- Imposto do selo
SUMÁRIO:
I - Celebrado um contrato-promessa, podem posteriormente as partes proceder, por consenso, à sua revogação ou distrate.
II - O promitente adquirente, em tal hipótese, pode pedir ao tribunal que, por sentença, declare a ineficácia do contrato-promessa, com vista à recuperação posterior do imposto de selo pago, nos termos do art. 52º, nº2, da Lei nº 17/88/M.
III – O facto de a sentença, eventualmente, decretar a cessação de eficácia do contrato-promessa pela via da revogação consensual não significa que a Administração Tributária tenha forçosamente que devolver o imposto do selo, ao abrigo do art. 52º, nº2, da Lei nº 17/88/M, já que então a ela cumprirá averiguar se uma tal perda superveniente de eficácia se inscreve, ou não, no âmbito de previsão do referido preceito.
Proc. nº 615/2018
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM
I - Relatório
A, casada, de nacionalidade Chinesa, portadora do Bilhete de Identidade de Residente Permanente de Macau número 5XXXXXX (X), emitido em 21 de Novembro de 2013 pela Direcção dos Serviços de Identificação de Macau, residente na XXXXXX, Macau (doravante, a “A.”), instaurou no TJB (Proc. nº CV1-17-0046-CAO ---
“acção declarativa de simples apreciação positiva” com processo ordinário ----
Contra:
B, portador do Bilhete de Identidade de Residente Permanente de Macau número 5XXXXXX(X), emitido em 8 de Janeiro de 2009 pela Direcção dos Serviços de Identificação de Macau, residente em 澳門XXXXXX (doravante, o “R.”), ---
Pedindo a declaração de ineficácia de um contrato-processa de compra e venda de um imóvel celebrado entre si e o réu, com fundamento em que ambas as partes, cerca de um mês depois da sua celebração, o distrataram.
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Na oportunidade foi proferida sentença, que julgou a acção improcedente a acção, com a consequente absolvição do réu do pedido.
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O autor, inconformado, recorre desta sentença, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
“a) Vem o presente recurso interposto da douta sentença, proferida pelo Tribunal Judicial de Base, que julgou improcedente a acção de simples apreciação e, consequentemente, absolveu o Réu e improcedeu o pedido formulado quanto ao reconhecimento e declaração de ineficácia do contrato-promessa de compra e venda.
b) O Réu, apesar de citado regularmente na sua própria pessoa, não contestou, considerando-se, portanto, reconhecidos todos os factos alegados pela Recorrente na sua petição inicial.
c) Resulta assim provado que a Recorrente não adquiriu a propriedade do imóvel identificado nos autos e que as partes voluntariamente terminaram o contrato-promessa de compra e venda, atribuindo-lhe eficácia retroactiva.
d) A revogação expressa do contrato promessa de compra e venda e a atribuição de efeitos retroactivos, destruiu os efeitos do mesmo, tornando-o assim ineficaz ab initio.
e) A ineficácia existe quando os efeitos cessam por força das partes, nomeadamente, através do mecanismo da revogação.
f) Tem sido entendimento da doutrina que existe ineficácia quando a cessação dos efeitos ocorre por força de eventos posteriores ao momento da celebração do negócio como é o caso da revogação.
g) Tem sido igualmente este o entendimento deste Venerando Tribunal, em situações semelhantes à dos autos, determinando que a revogação pode conduzir à ineficácia em sentido amplo, mas não à inexistência do negócio jurídico.
h) Considera o Venerando Tribunal que “(...) A situação criada pela revogação em nada se assemelha a qualquer causa de inexistência. A revogação, “ex tunc” ou “ex nunc”, consoante o ponto de vista divergente da doutrina, destrói ou paralisa os efeitos do negócio; incide sobre ele, mas é-lhe posterior. O facto de a revogação extinguir o contrato não equivale a dizer a que tudo se passa como se inexistisse juridicamente o negócio (…).”
i) Assim, sendo certo que a inexistência pressupõe que o contrato nem chegou a concluir-se, in casu, a revogação do contrato promessa entre a Recorrente e o Réu gera ineficácia e não, ao contrário do que a decisão recorrida entende, inexistência.
j) No seguimento do bom entendimento deste Venerando Tribunal, dúvidas não restam que a pretensão da Recorrente deve ser procedente, porquanto a revogação no presente caso enquadra-se na figura da ineficácia e não no mecanismo da inexistência, devendo ser proferida a declaração de ineficácia do contrato-promessa de compra e venda.
Nestes termos, nos mais de Direito e com o sempre douto suprimento de V. Exa., deve o presente recurso ser julgado procedente, declarando ineficaz o contrato-promessa de compra e venda celebrado entre a Recorrente e o Réu, com que se fará a costumada JUSTIÇA”.
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Não houve resposta ao recurso.
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Cumpre decidir.
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II – Os Factos
A sentença deu por provada a seguinte factualidade:
“a) No dia 6 de Julho de 2015 foi celebrado entre a A. e o R. um contrato-promessa de compra e venda de um imóvel sito em澳門XXXXXX, tudo conforme documento de fls. 9 que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais;
b) No dia 5 de Agosto de 2015 a A. procedeu ao pagamento do imposto de selo devido pela transmissão do imóvel, no valor de MOP164.687,00 (cento e sessenta e quatro mil, seiscentas e oitenta e sete Patacas);
c) No dia 7 de Agosto de 2015, o promitente comprador e o promitente vendedor, respectivamente A. e R., decidiram distratar o contrato-promessa celebrado atribuindo eficácia retroactiva, tudo conforme documento de fls. 12 o qual aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais;
d) Na Conservatória do Registo Predial está inscrita a favor do Réu a aquisição do imóvel sobre o qual o imposto de selo incidiu.”
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III – O Direito
1 – O caso
A e R celebraram um contrato-promessa no dia 6/07/2015, tendente à compra e venda de uma fracção imobiliária habitacional. Porém, cerca de um mês depois, em 7/08/2015, ambos os contraentes resolveram distratar o contrato, com eficácia retroactiva.
Pretende agora a autora/recorrente obter uma sentença que declare a ineficácia do aludido contrato-promessa, a fim de, com ela, e com fundamento no art. 52º da Lei nº 17/88/M, posteriormente reaver o imposto de selo que pagou pela transmissão, no montante de MOP$ 164.687,00.
Preceito que, no seu nº2 estabelece que “A apresentação pelo sujeito passivo de sentença transitada em julgado, que reconheça a invalidade ou ineficácia do documento, papel ou acto que titulou a transmissão, impede a cobrança do imposto do selo e, se tiver sido já pago, confere direito à sua restituição”.
Trata-se, por conseguinte, de uma acção de simples apreciação.
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2 – Da bondade da sentença
A sentença impugnada considerou que o que se verificou foi uma pura e simples extinção do contrato por mútuo consentimento, o que não equivale à ineficácia no sentido estrito da figura jurídica. Ou seja, o contrato só não produz mais efeitos apenas porque foi extinto, e não por ser ineficaz. É o que parece depreender-se do texto da sentença em crise.
Vejamos.
A ineficácia costuma ser apresentada sob duas perspectivas: uma ampla, outra restrita.
Em sentido amplo, a ineficácia abrange todas as hipóteses em que, por qualquer motivo, interno ou externo, o negócio jurídico não produz efeitos.
A nulidade é, nesta óptica, e para algum sector da doutrina, uma forma de ineficácia absoluta que procede da falta ou irregularidade de qualquer dos elementos internos ou essenciais do negócio: falta de capacidade, falta ou defeito da vontade, impossibilidade física ou legal do objecto (incluindo a ilicitude). A nulidade teria um efeito equivalente ao da ineficácia que deriva de um vício de formação do negócio (v.g., Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II, Reimpressão, 2003, pág.411).
Em sentido estrito, a ineficácia já não depende de uma falta ou irregularidade dos elementos internos do negócio, mas de alguma circunstância extrínseca. Isto é, o negócio foi celebrado sem vícios ou desconformidades com a ordem jurídica, mas posteriormente factores extrínsecos vêm retirar-lhe eficácia.
A sentença recorrida afirmou, citando Menezes Cordeiro, algo que o autor não disse expressamente: que entre os factores extrínsecos ao negócio que conduzem à não produção de efeitos não cabe a extinção do contrato por vontade das partes. O que o autor disse (Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo I, 2ª ed., 2000, pág. 642 e sgs.) é que em sentido lato a ineficácia pode decorrer das invalidades e que em sentido estrito que ela pode derivar de factores extrínsecos ao negócio jurídico (pág. 642 e 654-655).
Ora, nós sabemos que a revogação se apresenta como uma das formas de extinção dos contratos. Exceptuando alguns casos especiais em que ela não é possível (v.g., nos casos de adopção, perfilhação, etc.), a revogação, podemos dizê-lo, celebra a autonomia da vontade privada, na medida em que o poder que as partes exerceram ao se vincularem pelo contrato as leva, posteriormente, a dele se desvincularem nas mesmas circunstâncias. “Assim como o fazem, assim o desfazem”. As partes, através da revogação, voluntariamente, põem termo ao contrato, extinguindo os seus efeitos (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, II, p. 277; Ac. TSI, de 17/10/2002, Proc. nº 79/2000), vigorando para ela, enquanto acto jurídico, o princípio da identidade da legitimidade, bem como o da forma (Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 2008, 5ª ed., pág. 771-772).
Por isso, à revogação também se chama “contrato contrário” ou “distrate” (José de Oliveira Ascensão, Direito Civil – Teoria Geral, vol. III, 336; tb. Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. II, 7ª ed., pág. 103-104).
E é por isso mesmo que, em sentido lato de cessação dos efeitos negociais se inscrevem figuras como a resolução, a revogação, a caducidade e a denúncia (Carlos Alberto Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª ed., pág. 605).
Acontece que a revogação, para um largo sector da opinião jurídica opera apenas para o futuro ou “ex nunc”, como é, entre outros, o caso de Mota Pinto (Teoria Geral, 3ª ed., pág. 620) ou Pedro Pais de Vasconcelos (ob. cit., pág. 772).
Outros entendem que ela pode operar retroactivamente, quer por força da lei (Oliveira Ascensão, ob. e loc. cits.), quer pela vontade das partes no quadro da sua autonomia privada, neste caso, porém, sem prejuízo dos direito dos terceiros validamente adquiridos (Oliveira Ascensão, ob. e loc. cits; neste sentido, também, Menezes Leitão, ob. cit., pág. 104).
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2.1 - Descendo ao caso dos autos.
Ora bem. As partes revogaram o contrato de promessa. Podiam fazê-lo? Sim, podiam.
Atribuíram eficácia retroactiva a esse contrato. Podiam fazê-lo? Sim, podiam, segundo alguma doutrina, que seguimos. Vamos, no entanto, averiguar se essa vontade de retroagir a revogação apaga todos os efeitos do contrato inicialmente válido e eficaz.
Como parece evidente, ao convencionarem que o contrato é revogado ab initio, as partes quiseram, reciprocamente e, portanto, com efeitos inter partes, que o negócio se desfizesse. Em consequência disso, o sinal poderia ser restituído1 e da parte do promitente vendedor terminou a obrigação de celebrar o contrato definitivo. São esses os efeitos essenciais inter partes produzidos com essa revogação.
Mas, terá essa declaração de retroactividade outros efeitos, nomeadamente em relação a terceiros e especificamente em relação ao Fisco?
Este é, verdadeiramente, o cerne da questão.
E a nossa resposta é: pode ser que sim, pode ser que não. Não nos cabe, no âmbito dos presentes autos, ir mais além e dizer se a cessação de eficácia decretada pelo tribunal serve a necessidade de tutela do autor em reaver o imposto do selo junto do Fisco ao abrigo do art. 52º da Lei nº 17/88/M.
Com efeito, o Fisco não é parte nos autos e a posição que ele vier a tomar estará já a jusante da sentença. Não pode o tribunal, na presente acção, antecipar qualquer juízo a respeito da decisão que a entidade tributária terá competência para a seu tempo tomar.
Quer isto dizer, pois, que, se o tribunal decretar a cessação de eficácia do contrato-promessa, daí não se segue que, automática ou necessariamente, a entidade competente tenha que satisfazer o interesse do autor em reaver o valor do imposto de selo pago. Não é assim.
O Serviço de Finanças, perante uma tal sentença, deverá analisar se deve devolver o imposto de selo arrecadado. Se entender que sim, devolvê-lo-á; se entender que não, terá que dar a devida justificação e o interessado poderá socorrer-se dos meios administrativos e/ou contenciosos ao seu dispor para impugnar uma tal decisão negatória. E só então o tribunal, se for chamado a avaliar da legalidade desse indeferimento, no quadro de uma impugnação contenciosa de cariz tributário, dirá de sua justiça a respeito da subsunção do caso à previsão do art. 52º, nº2 do citado diploma.
Portanto, em nossa opinião, o autor, embora tenha invocado a necessidade da sentença para posteriormente utilizar ao abrigo do nº2, do art. 52º aludido, não fez mais do que revelar o seu interesse processual (em agir) como pressuposto do uso da acção, isto é., como pressuposto processual justificativo do exercício do direito de accionar judicialmente. Ou seja, o interesse processual tem que ser revelado como forma indispensável de mostrar a necessidade de recurso à via judicial. É um interesse “em utilizar a arma judiciária - em recorrer ao processo” (Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Reimpressão, pág. 79) ou de mostrar a “necessidade justificada, razoável, fundada, de lançar mão do processo ou de fazer prosseguir a acção…” (Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio Nora, in Manual de Processo Civil, 2ª ed., Reimpressão, pág. 181).
Ora, exibir a necessidade do uso do meio processual não é o mesmo que ter que provar o fundamento do interesse. Na verdade, o que interessa é revelar que dispõe do direito de accionar, mas não se tem o direito à pretensão manifestada na acção ou se vai poder exercer mais tarde o direito eventualmente reconhecido na sentença (o autor até pode, mesmo de posse de uma sentença favorável, nunca vir a utilizá-la nos termos e para os efeitos do art. 52º citado).
Portanto, uma vez que o autor tenha revelado inicialmente o interesse processual (em agir), a acção corre os seus termos até final. No entanto, o tribunal já não tem que se preocupar se ele consegue “provar”, digamos assim, o pressuposto. E não tem que, porque o referido pressuposto não é condição de procedência da acção. O tribunal apenas precisa de concluir se o contrato foi ou não revogado e quais os efeitos entre as partes resultantes dessa revogação. Se o Fisco aqui é considerado terceiro e se a entidade tributária não intervém nos autos para defender a desaplicação do caso à previsão do referido art. 52º, nº2, parece lógico concluir que essa tarefa será cometida à própria entidade tributária quando, e se, a situação lhe for concretamente colocada posteriormente.
Ou seja, não pode este tribunal pronunciar-se, neste momento e nesta sede, sobre os efeitos dessa revogação em relação a terceiros, nomeadamente em relação à entidade tributária competente, se ela não é parte na acção, nem teve a oportunidade de arguir a inoponibilidade da revogação quanto a si.
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2.2 - Para já, o que nos é exigível e possível concluir é que, com a revogação operada consensualmente pelas partes, a eficácia do contrato de promessa supervenientemente cessou.
A revogação convencionada através do novo contrato de fls. 12 dos autos (7-8 do apenso “traduções”) teve por finalidade eliminar parte dos efeitos derivados do contrato-promessa inicialmente celebrado de forma a libertar o promitente comprador da vinculação à celebração do contrato definitivo. O facto de nesse novo contrato revogatório ter ficado clausulado que o segundo contraente (primitivo promitente comprador) aceitou pagar o “sinal” ao primeiro não significa outra coisa, senão que este contraente (primitivo promitente vendedor) aceitou a revogação na condição de ficar com a quantia que lhe havia sido entregue a título de sinal. Isso é perfeitamente possível. Dito por outras palavras, essa cláusula não retira ao acordo revogatório a eliminação de todos os restantes efeitos inter-partes do contrato-promessa inicial.
Portanto, somos a concluir que estamos perante uma revogação válida e que, por ela, cessou supervenientemente, e com efeitos retroactivos inter-partes, a eficácia do primitivo contrato-promessa.
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IV – Decidindo
Face ao exposto, acordam em conceder provimento ao recurso jurisdicional, em consequência do que se revoga a sentença impugnada e, julgando procedente a acção, se reconhece e declara que eficácia do contrato-promessa de compra e venda celebrado entre A. e R. cessou com a revogação deste, com efeitos retroactivos inter-partes.
Custas pela autora (art. 376º, nº1, “fine”, do CPC), apenas na 1ª instância.
T.S.I., 22 de Novembro de 2018
José Cândido de Pinho
Tong Hio Fong
Vencido nos termos seguintes:
De acordo com a causa de pedir configurada e o pedido formulado na petição inicial, o que a autora pretendia é reaver o imposto de selo pago com fundamento da alegada ineficácia do documento, nos termos prescritos no artº 52º/2 do Regulamento do Imposto do Selo, aprovado pela Lei nº 17/88/M.
Para o efeito, é preciso obter uma sentença transitada em julgado, que reconheça ineficácia do documento que titula o contrato promessa de compra e venda.
Como se sabe, para resolver, revogar ou fazer cessar os efeitos de um negócio, as partes podem fazê-lo validamente por comum acordo, sem que tenha necessidade de virem ao tribunal para obter uma decisão judicial carimbando tal acordo.
Portanto, o Tribunal não pode ser chamado para se pronunciar sobre a validade de um negócio jurídico quando o negócio tiver sido validamente concluído e cumprido e a sua validade nunca for questionada. A não entender assim, o Tribunal poderia vir a banalizar-se numa máquina para resolver casos académicos ou simples para matar a curiosidade das pessoas.
Assim, in casu, o objectivo de reaver o imposto do selo não pode deixar de ser o único interesse de agir possível, o que aliás confessou a própria autora.
No caso sub judice, para ajuizar se existe esse interesse de agir, a fim de podermos avaliar a verificação de todos os pressupostos processuais com vista à admissão ou ao indeferimento liminar da acção, o Tribunal a quo podia e devia averiguar a viabilidade jurídica, em abstracto, de reaver o imposto pago com fundamento naquilo que foi alegado na causa de pedir, ou seja, no acordo comum posterior para fazer cessar os efeitos do contrato-promessa.
Ora, apesar de ter autora utilizado expressões diversas para qualificar o acordo posterior que celebrou com o Réu para fazer extinguir retroactivamente e cessar os efeitos do contrato promessa, tais como “terminar”, “revogar”, ou “distratar” o tal contrato, o certo é que o contrato promessa nem por isso deixa de ser válido no momento da sua celebração e já começou a produzir os seus efeitos justamente a partir desse momento.
Na verdade, se bem interpretar a norma do artº 52º/2 do Regulamento do Imposto do Selo, e tiver em conta a natureza do imposto do selo e todo o espírito da lei reguladora desse imposto, nomeadamente a mens legislatoris subjacente à tributação de todas as cessões da posição contratual de contrato promessa de compra e venda de imóveis, efectivadas ao longo de toda a cadeia que liga o primeiro promitente-vendedor ao último promitente-comprador, ou seja, o transmitente ao transmissário no contrato prometido, compreende-se logo que a causa da ineficácia do documento a que se refere o artº 52º/2 do Regulamento do Imposto do Selo terá de ser contemporânea à formação do documento, e nunca por eventos posteriores ao momento da sua formação, muito menos por factos posteriores voluntários ou consertados entre os contraentes.
Pois de outro modo, ficaria de todo em todo frustrada a intenção por parte do nosso legislador de tributar as cessões de posição contratual de adquirente intermediárias, e consequentemente fragilizaria o objectivo de esfriar e combater as actividades especulativas no mercado imobiliário que o legislador pretende alcançar com a introdução do imposto do selo especial através da Lei nº 15/2012, uma vez que bastaria manipulação mediante um acordo aparente posterior consertado para retirar a eficácia de tais cessões de posição contratual, estes cedentes/cessionários intermediários poderiam reaver o imposto já pago.
Pelo exposto, considerando que a ineficácia que a autora pretendia ver declarada pelo Tribunal através da instauração da presente acção não é a ineficácia a que se refere o artº 52º/2 do Regulamento do Imposto do Selo, a presente acção é de indeferir por falta de interesse de agir.
Lai Kin Hong
1 No entanto, assim não ficou clausulado, no quadro da liberdade contratual das partes e da autonomia da sua vontade.
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615/2018 1