Processo n.º 160/2017
(Recurso Contencioso)
Data : 18/Outubro/2018
Recorrente : B (B)
Entidade Recorrida : Secretário para a Economia e Finanças
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ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:
I - RELATÓRIO
B (B) , Recorrente, devidamente identificado nos autos, não se conformando com o Despacho do Secretário para a Economia e Finanças, datado de 10/1/2017, que lhe aplicou a pena de demissão em processo disciplinar, veio em 13/2/2017 interpor o recurso contencioso para este TSI, com os fundamentos seguintes:
1. O despacho recorrido - cfr. doc. n.º 1 que se junta e se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais - foi proferido pelo Exmo. Senhor Secretário para a Economia e Finanças, no uso de competências delegadas pelo Exmo. Chefe do Executivo, constituindo a sua decisão final.
2. O despacho recorrido foi notificado ao mandatário do recorrente em 12 de Janeiro de 2017 - em ofício com a referência n.º 12/2016/06/Proc.Dis./DSAL (doc. n.º 2).
3. É, pois, tempestivo o presente recurso (art. 25º, n.º 2, al. b) do CPAC).
Por outro lado,
4. O seu provimento aproveita directa e pessoalmente ao recorrente, que nele tem interesse legítimo.
5. O despacho recorrido é aquele que, concordando com o despacho do Exmo. Director da Direcção de Serviços para os Assuntos Laborais (DSAL), de 10/01/2017 que, por sua vez, manifestou a sua concordância com a Proposta da Instrutora do Processo Disciplinar, de 16/12/2016, aplicou ao recorrente a pena disciplinar de "demissão".
6. A pena disciplinar em causa foi aplicada ao recorrente como decisão final de um processo disciplinar, com o ínicio em 19/09/2016, com a nomeação como Instrutora de C (C).
7. No decurso do processo disciplinar esta Instrutora foi substituída por uma outra, em 22/11/2016, em virtude do "impedimento prolongado" da primeira.
8. No decurso do processo disciplinar, foi alegadamente apurado que o recorrente violou o "dever de correcção" (art. 279º, n.º 2, f) do ETAPM), para com uma colega de serviço, sendo, por isso, aplicável à infracção a "pena de demissão", nos termos do artigo 315, n.º 2, a) do ETAPM.
Ora,
9. Entende, no entanto, o recorrente que a decisão deverá ser anulada, por erro nos pressupostos de facto e nos pressupostos de direito.
10. Como teve oportunidade de referir, em resposta à acusação contra si deduzida, o recorrente confessou espontaneamente os factos que praticou, no dia 25/08/2016, pelas 9:01 a.m., o que foi considerado como a infracção disciplinar;
11. Mas não nos termos em que alegadamente se apurou em sede de processo disciplinar.
Na verdade,
12. Não resulta aos autos qualquer "meio de prova", no caso, documental, qualquer sinal ou notação em meio técnico, que possa corporizar a conduta infractora do arguido, nos termos que, como se disse, foi apurado no processo disciplinar.
13. Tudo é feito com base numa decisão de factos que, com o devido respeito, a Sra. Instrutora ficcionou, de modo que melhor entendeu para, assim, concluir da forma que concluiu.
14. Com base apenas numa prova testemunhal - o segurança, D (D) - são feitas referências ao pormenor que não têm nos autos a menor base probatório - factual.
De facto,
15. Esta testemunha - a única que alegadamente presenciou os factos - faz referências pormenorizadas à actuação do recorrente, naquilo que constituiu a infracção disciplinar que se lhe imputou, sem que, pelo menos da prova existente nos autos, essas referências possam ser confirmadas.
16. E, além desta testemunha, alega a Sra. Instrutora que o depoimento da mesma foi ainda confirmado pelo visionamente de imagems CCTV que constam de um "CD" que é alegadamente, nos termos do processo disciplinar, prova determinante da conclusão a que se chegou.
Ora,
17. Daquele visionamento, não é possível confirmar aquilo que a Sra. Instrutora tão detalhadamente deu como provado;
Nomeadamente,
18. Que o recorrente, no momento da prática da alegada infracção, se tivesse posicionado, nas escadas rolantes, "5 a 6 degraus abaixo da ofendida" e que, depois, tenha subido de repente "aproximando-se muito da ofendida";
19. Que, então, o recorrente tenha ligado o seu telemóvel e a luz do mesmo; e
20. Que o recorrente tenha "esticado o braço", colocando o "telemóvel debaixo do vestido da ofendida, junto das pernas desta, ajustando o telemovel",
Aliás,
21. De tal visionamente e ao contrário do que é referido pela Sra. Instrutora, não é possível perceber onde se encontrava a citada testemunha, D (D), para que ele tenha tido, como diz, uma percepção tão pormenorizada dos factos.
22. Mas não obstante o supra referido, o recorrente confessou uma sua conduta sem que, contudo, também a mesma possa ser confirmada pela prova existente no processo.
23. E confessou que fez uma ''filmagem video ilegal das pernas da ofendida".
24. Confirmando, ainda, que "estava arrependido"; que "queria ter oportunidade de pedir desculpa à ofendida e receber dela o respectivo perdão"; que "não publicitou o video"; e que "já apagou o video do seu telemóvel".
Pois bem,
25. Na ausência do "tal video" no processo disciplinar, bem como - V. Exas. melhor dirão - da total inexistência de prova nos autos que comprove o facto, tal como descrito na matéria de facto, alegadamente assente;
Então,
26. Temos uma confissão de um facto e não exactamente o facto, tal como ocorreu;
27. Que o recorrente lamenta, está arrependido e desejaria o respectivo perdão.
28. Tudo o mais é, com o devido respeito, ficção;
29. Se o video foi feito de perto ou à distância; se com pormenor ou em geral; ou, mesmo, se chegou a ser feito ou gravado tal video, são factos inexistentes nos autos.
30. Convenhamos que, não fora a conduta colaborante e arrependida do recorrente, no processo disciplinar, e aquela acção, a alegada infracção por ele cometida, jamais seria comprovada.
31. Em abstracto, temos uma violação do "dever de correcção"; em concreto, temos nada ...
32. Aliás, tal é a conclusão da Sra. Instrutora quando refere que "nos autos não existe qualquer prova substantiva da infracção" (sic).
33. No decurso do processo, foi nomeada como Instrutora a Sra. C(C) que, em 07/11/2016, elaborou, após o processo de inquérito, uma acusação na qual, a final, propõe para o agente infractor, notificado em 08/11/2016, pena disciplinar de suspensão de 241 dias até 1 ano; considerando as circunstâncias atenuantes.
Contudo,
34. Em 18/11/2016, esta mesma Instrutora, antes da sua substituição pela Instrutora, F (F), "revogou" a primeira acusação e substituiu-a por uma outra, na qual propõe a pena de demissão.
Ora,
35. Com o devido, não compete ao Instrutor de um processo disciplinar "revogar" uma acusação anteriormente feita, substituindo-a por uma outra em que fez considerações diferentes da primeira;
36. Em prejuízo do arguido.
37. Outrossim, compete à instrução (art. 329°, n.º 1 do ETAPM) "... todo o conjunto de averiguações e diligências destinadas a apurar a existência de uma infracção disciplinar e a determinar os seus agentes e a responsabilidade deles, recolhendo todas as provas em ordem a proferir uma decisão fundamentada."
38. E também, nos termos do art. 332° do ETAPM, deduzida a acusação, esta mantém-se inalterada, até ao final do processo disciplinar.
Por outro lado,
39. Na sua defesa, oportunamente deduzida, o recorrente, a final, requereu diligências cuja realização se lhe afigurava pertinente (art. 329°, n.º 4 do ETAPM).
40. A Sra. Instrutora indeferiu as diligências, invocando que, uma, já havia sido realizada e, outra, não era essencial à defesa no processo disciplinar.
41. Obviamente, com o devido, respeito sem razão.
42. Compete à defesa promover "... as diligências que considera essenciais para a descoberta da verdade ...".
43. No caso, a Sra. Instrutora não fez as diligências que o recorrente, então requereu.
Acresce que,
44. A final, entendeu a Sra. Instrutora que a favor do arguido, ora recorrente, militavam circunstâncias atenuantes - a confissão (do que confessou e, não, do que a Sra. Instrutor deu como assente); o arrependimento; e a "não publicidade" das imagens que alegadamente recolheu - ; e
45. Não existiam quaisquer circunstâncias agravantes.
Pelo que,
46. Nos termos do art. 316º, n.º 2 do ETAPM., com o devido respeito, a pena a aplicar, tendo em conta existência de circunstancias atenuantes, poderia e deveria ser a de "escalão mais baixo" àquela de demissão.
Contudo,
47. Assim não foi, verificando-se que a pena de demissão aplicada ao recorrente não teve em conta aqueles factos e é manifestamente desproporcionada à gravidade da infracção praticada - reitera-se, aquela que ele confessou ... -;
Sobretudo,
48. Tendo em conta que a mesma nunca poderia inviabilizar "... a manutenção da situação jurídica-funcionar do recorrente (art. 315º, n.º 1, do ETAPM); e também
49. Não fora a conduta do recorrente no processo disciplinar, e a infracção que cometeu nunca seria apreciada.
EM CONCLUSÃO:
a) Recorre-se do despacho do Exmo. Senhor Secretário para a Economia e Finanças de 10 de Janeiro de 2017;
b) Estão reunidos os pressupostos processuais;
c) O despacho em apreço assenta em erro nos pressupostos de facto e nos pressupostos de direito;
d) Revelando, ainda, uma "total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários";
e) É, por isso, anulável.
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Citada a Entidade Recorrida, o Senhor Secretário para a Economia e Finanças veio contestar o presente recurso, tendo formulado as seguintes conclusões:
1. Da prova produzida pode concluir-se com elevado grau de certeza que o recorrente praticou efectivamente os factos pelos quais foi punido disciplinarmente;
2. O visionamento das imagens captadas pelas câmaras de segurança permite concluir, sem margem para dúvidas, que a única testemunha se encontrava pertíssimo das escadas rolantes onde ocorreram os factos disciplinarmente ilícitos;
3. Não existem (outras) razões para questionar a idoneidade ou boa-fé da testemunha;
4. O próprio recorrente confessou livremente a infracção;
5. A confissão livre também é um meio de prova;
6. O recorrente, aliás, esclareceu também que já anteriormente tinha praticado actos idênticos;
7. De acordo com o processo instrutor, apenas a segunda acusação foi notificada ao recorrente;
8. Apenas uma acusação notificada ao arguido produz efeitos jurídicos;
9. Em geral, no entanto, uma substituição da acusação não viola os direitos do arguido se lhe é dada a oportunidade de se defender da nova acusação;
10. Não se justificava inquirir a testemunha uma terceira vez, pois os factos estavam já devidamente esclarecidos quando o recorrente requereu essa diligência, e o recorrente não apresentou novos factos sobre os quais se justificasse nova inquirição;
11. O pedido de desculpas requerido à instrutora não era necessário à descoberta da verdade;
12. Além disso, não cabia à instrutora do processo disciplinar realizar o pedido de desculpas do recorrente;
13. A concretização de tal pedido de desculpas dependia, unicamente, do próprio recorrente, não tendo a instrutora qualquer papel a desempenhar no mesmo;
14. O órgão recorrido podia decidir discricionariamente a pena a aplicar;
15. O órgão recorrido podia ainda decidir discricionariamente se a infracção praticada inviabilizava ou não a manutenção da relação funcional entre o recorrente e a Administração;
16. O grave comportamento do arguido revelou que o mesmo não tem o perfil que se exige de um funcionário público;
17. A aplicação da pena de demissão não foi, portanto, desproporcional, nem ultrapassou as fronteiras da razoabilidade no exercício de poderes discricionários.
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O Digno. Magistrado do Ministério Público junto do TSI emitiu o douto parecer (fls. 90 a 92), pugnando pela improcedência do recurso.
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Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre analisar e decidir.
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II – PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
Este Tribunal é o competente em razão da nacionalidade, matéria e hierarquia.
O processo é o próprio e não há nulidades.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e são dotadas de legitimidade “ad causam”.
Não há excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
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III – FACTOS
São os seguintes factos considerados assentes com interesse para a decisão do litígio, conforme os elementos juntos no processo administrativo respectivo:
- Por despacho superior foi instaurado um processo disciplinar contra o Recorrente sob o nº 06/2016;
- Durante o qual foram apurados e considerados assentes os seguintes factos:
1. Nos termos do art.º 336 do Estatuto, analisados os depoimentos das testemunhas e os vídeos daquele dia em causa e investigados os fundamentos alegados pelo arguido, foram apurados os seguintes factos:
2. Em 25 de Agosto de 2016, às 9H01, na DSAL sita em Avenida do ......, n.º ...-..., Edifício ......, G, técnica superior do Departamento de Estudos e Informática, foi pela escada rolante do rés-do-chão para o 1º andar, estando vestida com uma saia. O arguido estava atrás de G a distância de cerca de 3 pessoas, com telemóvel na sua mão direita.
3. No mesmo dia, às 9H01M38, G virou à esquerda e foi pela escada rolante do 1º andar para o 2º andar.
4. Após 2 segundos, o arguido virou à esquerda e foi pela escada rolante do 1º andar para o 2º andar. Na altura o estava atrás de G a distância de cerca de 3 pessoas, com telemóvel cujo ecrã estava brilhante na sua mão direita.
5. No mesmo dia, às 09H01M46, o arguido, que estava atrás de G a distância de 3 pessoas, de repente, andou um passo para frente com o pé direito e estendeu a mão direita com telemóvel nela para o baixo da saia de G.
6. O arguido declarou que não conhece G, o vídeo filmado no incidente referido só serviu para o seu próprio gozo e foi deletado vários dias depois da gravação.
7. O arguido confessou que, antes de 25 de Agosto de 2016, neste ano, usou telemóvel para filmar o baixo da saia de colegas femininas por 2 vezes na DSAL.
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- Foram realizadas várias diligências que se encontram documentadas no respectivo relatório, constante de fls. 88 a 101, cujo teor se dá por reproduzido aqui para todos os efeitos legais;
- Concluida a instrução, foi proferido pelo Secretário para a Economia e Finanças o despacho punitivo, lançado no relatório de fls. 88 a 100 do PA, cujo teor se dá por reproduzido aqui para todos os efeitos legais.
- Tal despacho foi comunicado ao Recorrente mediante ofício da DSL, com o seguinte teor:
Ao abrigo do art. 339.° do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau (diante designado por "Estatuto"), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 87/89/M de 21 de Dezembro, vem notificar V. Ex.ª de que:
Após investigação, verifica-se que, em 25 de Agosto de 2016, às 1, quando V. Ex.ª estava a ir pela escada rolante na DSAL, estendeu direita com telemóvel nela para o baixo da saia de G para filmagem. A vossa conduta viola o art. 279.º n.º 2 alínea f) do Estatuto, de acordo com o despacho de 10 de Janeiro de 2017 do Secretário para a Economia e Finanças sobre a informação n.º 10/2016/06/Proc.Dis/DSAL (vide o anexo), é aplicada a V. Ex.º a pena de demissão nos termos do art. 315.º n.º 2 alínea a) do Estatuto.
Se não se conformar com a decisão referida de aplicação da pena de demissão, é susceptível de recurso contencioso dentro do prazo previsto no art. 25.º do Código de Processo Administrativo Contencioso; pode também deduzir reclamação ao Secretário para a Economia e Finanças dentro de 15 dias contados do dia de recepção da notificação nos termos do art. 145.º n.º 2 alínea a) e art. 149.º do Código de Procedimento Administrativos; nos termos do art. 151.º n.º 2 do mesmo Código, a reclamação não suspende nem interrompe os prazos de recurso.
A DSAL é competente para execução da pena nos termos do art. 324.º do Estatuto. Pelo que, a pena é-lhe executada de imediato a partir da recepção da presente notificação.
Com os melhores cumprimentos.
Director
Ass. Vide o original
XXX
11 de Janeiro de 2017
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IV - FUNDAMENTOS
A resolução do presente recurso passa pela análise e resolução das seguintes questões: a decisão padece dos seguintes vícios:
1) - Vício de erro nos pressupostos de facto;
2) - Vício de erro nos pressupostos de direito;
3) - Vício da violação do princípio da proporcionalidade.
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1ª questão: Vício de erro nos pressupostos de facto e erro nos pressupostos de direito
No domínio de factos:
Ora, o Recorrente confessou efectivamente os factos que lhe foram imputados no processo disciplinar.
Não se trata de uma confissão abstracta, sem base fáctica nem probatória, mas sim, uma confissão espontânea durante a instrução do processo disciplinar em causa, tem nomeadamente por base nos seguintes elementos:
- Depoimento de uma testemunha presencial;
- Imagens captadas pelo circuito interno de videovigilância (CCTV).
Sendo certo que não foi possível confirmar fisicamente o conteúdo exacto da gravação efectuada pelo Recorrente/arguido, porquanto ele a apagou.
Mas foi possível concluir com segurança, que o Recorrente, seguindo atrás de uma colega nas escadas rolantes, aproveitou a diferença de planos em que seguiam para, durante alguns instantes, colocar o telemóvel em modo de videogravação, com o ecrã iluminado, sob a saia da colega, assim efectuando uma gravação de vídeo da parte inferior do corpo da colega.
Este circunstancialismo resulta da confissão do próprio Recorrente/arguido e confirmado pela testemunha ouvida, que presenciou a actuação do mesmo, e pela câmara de videovigilância.
Nesta óptica, não se suscita dúvida quanto aos pressupostos factuais em que assentou a imputação e condenação do arguido por violação do dever de correcção para com uma colega (dever este que se encontra previsto no artigo 279º/2-f) do ETAPM).
Pelo que, não se verificando o alegado erro nos pressupostos de facto, é de julgar improcedente o argumento nesta parte.
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1) - Vício de erro nos pressupostos de direito
Neste domínio, o Recorrente alega essencialmente os seguintes argumentos:
- Contra ele foi deduzida uma segunda acusação;
- Algumas diligências requeridas pelo Recorrente foram indeferidas.
Relativamente ao 1º ponto, cabe sublinhar que inexiste norma jurídica que interdita a possibilidade de deduzir a segunda acusação em processo disciplinar (o STA vem admitindo mediante jurisprudência que se crê uniforme, e havendo pelo menos um acórdão do Tribunal de Última Instância que igualmente cauciona essa hipótese (cf., quanto ao STA, v. g., os acórdãos de 27.05.1971, Recurso 008228, em que foi relator Manso Preto, e de 10 de Dezembro de 1998, Recurso 037808, relatado por Alves Barata, e, quanto ao TUI, o acórdão de 15.10.2003, Processo 26/2003, onde foi relator Viriato Lima)), o que releva é saber em que condições é que o mesmo é feito e para que finalidade.
E depois, no meio de tudo isto, o mais importa é e salvaguardar a defesa do arguido perante nova acusação.
O que foi feito no caso, pois não foi suscitada nenhuma nulidade decorrente da nova acusação.
Neste ponto, o artigo 298º (Nulidades) do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau (ETAPM) dispõe:
1. É insuprível a nulidade resultante da falta de audiência do arguido em artigos de acusação, nos quais as infracções sejam suficientemente individualizadas e referidas aos preceitos legais infringidos, bem como a que resulte de omissão de quaisquer diligências essenciais para a descoberta da verdade.
2. É equiparada à nulidade referida no número anterior a falta de audiência, na fase de defesa, das testemunhas indicadas pelo arguido nos termos do disposto no artigo 335.º
3. As restantes nulidades consideram-se supridas se não forem reclamadas pelo arguido até decisão final.
Ora, como não foi arguida nenhuma nulidade durante o andamento do processo (até à tomada da decisão punitiva final), não faz sentido invocar este argumento nesta fase processual.
Improcedem assim os argumentos produzidos pelo Recorrente neste domínio.
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No que toca ao 2º ponto: diligências requeridas pela defesa, que foram objecto de indeferimento, também não se detecta qualquer irregularidade ou nulidade projectável na decisão final.
O Recorrente pediu que a colega que foi visada com a sua gravação vídeo fosse convocada para comparecer consigo, perante a instrutora do processo disciplinar, a fim de lhe pedir perdão.
Não se trata de uma diligência para apurar os factos, mas sim uma diligência que visa obter perdão da vítima. Aceitar ou não aceitar este pedido não alterar em nada os factos imputados. À instrutora cabe decidir realizar ou não a diligência requerida. No caso, a rejeição em nada afecta o direito de defesa do Recorrente/arguido.
Nesta óptica, o argumento do Recorrente deixa de ter razão neste ponto.
O Recorrente invocou também um outro facto: que a testemunha D fosse novamente ouvida. Mas a testemunha em causa havia já sido ouvida no processo disciplinar, previamente à dedução da acusação, prestando um depoimento claro, verosímil e factualmente coincidente com o que se pode retirar da gravação recolhida do sistema de videovigilância.
A circunstância de tal testemunha não aparecer na gravação vídeo em que aparece o Recorrente/arguido e a “ofendida” é totalmente irrelevante para pôr em xeque o depoimento, tanto mais que ficou esclarecido no processo disciplinar qual o local onde permanecia a testemunha para poder prestar o depoimento que prestou.
Em suma, tratava-se de uma diligência inútil, que também não podia deixar de ser rejeitada.
Por último, o Recorrente argumenta ainda que não foi observada a norma do artigo 316.º, n.º 2, do ETAPM, o que, a ter sucedido, implicava a aplicação de uma pena de escalão mais baixo.
Antes de mais, importa recordar que a conduta do Recorrente/arguido violou o dever de correcção, previsto no artigo 279º/8 (Deveres) do ETAPM, que consagra:
1. Os funcionários e agentes, no exercício da função pública, estão exclusivamente ao serviço do interesse público, devendo exercer a sua actividade sob forma digna, contribuindo assim para o prestígio da Administração Pública.
2. Consideram-se, ainda, deveres gerais:
a) (…);
b) (…);
c) (…);
d) (…);
e) (…);
f) O dever de correcção;
g) (…);
h) (…);
i) (…). (**)
(…)
8. O dever de correcção consiste em tratar com respeito e urbanidade os utentes dos serviços públicos, os colegas, os superiores hierárquicos e os subordinados.
(…).
Depois o artigo 316º do ETAPM (Concurso de infracções e critério de graduação das penas) prescreve:
1. As penas graduar-se-ão de acordo com as circunstâncias atenuantes ou agravantes que no caso concorram e atendendo nomeadamente ao grau de culpa do infractor e à respectiva personalidade.
2. Ponderado o especial valor das circunstâncias atenuantes ou agravantes que se provem no processo, poderá ser especialmente atenuada ou agravada a pena, aplicando-se pena de escalão mais baixo ou de escalão superior do que ao caso caberia.
3. Havendo reincidência, a pena a aplicar, quando igual ou superior a multa, será obrigatoriamente agravada para a de escalão imediatamente superior.
4. Não pode aplicar-se ao mesmo funcionário ou agente mais de uma pena disciplinar por cada infracção ou pelas infracções apreciadas em mais de um processo quando apensados nos termos do artigo 296.º
5. A decisão punitiva deve referir expressamente os fundamentos de facto e de direito da pena aplicada
Como se vê da norma, a atenuação especial aí prevista envolve o exercício de um poder marcadamente discricionário, que só é passível de controle judicial em caso de erro palmar ou manifesta desrazoabilidade, que no caso não se detectam.
Caem também por baixo os argumentos tecidos pelo Recorrente neste ponto.
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3ª questão: vício da violação do princípio da proporcionalidade.
Uma outra questão alegada pelo Recorrente é a violação do princípio da proporcionalidade.
O princípio da proporcionalidade está consagrado no artigo 5º do CPA, ao estabelecer que
«2. As decisões da Administração que colidam com direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos dos particulares só podem afectar essas posições em termos adequados e proporcionados aos objectivos a realizar”.
Entendido, em sentido amplo, como proibição do excesso, o princípio da proporcionalidade postula que a Administração prossiga o interesse público pelo meio que represente um menor sacrifício para as posições dos particulares. Incorpora, como subprincípio constitutivo, o princípio da exigibilidade, também conhecido como princípio da necessidade ou da menor ingerência possível, que destaca a ideia de que o cidadão tem direito à menor desvantagem possível.
Para maior operacionalidade deste princípio, a doutrina acrescenta, entre outros elementos, o da exigibilidade espacial, que aponta para a necessidade de limitar o âmbito da intervenção na esfera jurídica das pessoas cujos interesses devam ser sacrificados (vd. J. J. Gomes Canotilho, in Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª ed., Almedina, 266, ss.).
Nesta óptica, a questão essencial reside em saber qual medida punitiva – repreensão, suspensão ou aposentação compulsiva – que é mais proporcional à sanção motivada pelos factos praticados pelo Recorrente.
O artigo 300º (Escala das penas) do ETAPM dispõe:
1. As penas aplicáveis aos funcionários e agentes pelas infracções disciplinares que cometerem, são:
a) Repreensão escrita;
b) Multa;
c) Suspensão;
d) Aposentação compulsiva;
e) Demissão.
2. As penas aplicáveis a aposentados constam do artigo 306.º
3. As penas são sempre registadas no processo individual do funcionário ou agente.
No fundo, importa saber se o tipo de penas foi bem escolhido ou não. Ou seja, é uma matéria que se prende com a questão da aplicação correcta ou não do artigo 315º do ETAPM.
O artigo 315º (Aposentação compulsiva ou demissão) do referido Estatuto manda:
1. As penas de aposentação compulsiva ou de demissão serão aplicáveis, em geral, às infracções que inviabilizem a manutenção da situação jurídico-funcional.
2. As penas referidas no número anterior serão aplicáveis aos funcionários e agentes que, nomeadamente:
a) Agredirem, injuriarem ou desrespeitarem gravemente superior hierárquico, colega, subordinado ou terceiro, nos locais de serviço ou em serviço;
b) Praticarem actos de insubordinação ou de indisciplina graves ou incitarem à sua prática;
c) No exercício das suas funções praticarem actos manifestamente ofensivos das instituições e princípios constitucionais;
d) Praticarem ou tentarem praticar qualquer acto que lese ou contrarie os superiores interesses do Estado ou do Território;
e) Participarem infracção disciplinar de algum funcionário ou agente, com falsidade ou falsificação, quando daí resulte a injusta punição do denunciado;
f) Dentro do mesmo ano civil derem 20 faltas seguidas ou 30 interpoladas, sem justificação;
g) Revelem comprovada incompetência profissional;
h) Violarem segredo profissional ou cometerem inconfidências de que resultem prejuízos materiais ou morais para a Administração ou para terceiro;
i) Em resultado do lugar que ocupem, aceitarem ilicitamente ou solicitarem, directa ou indirectamente, dádivas, gratificações, participações em lucros ou outras vantagens patrimoniais, ainda que sem o fim de acelerar ou retardar qualquer serviço ou expediente;
j) Comparticiparem ilicitamente em oferta ou negociações de emprego público;
l) Forem encontrados em alcance ou desvio de dinheiros públicos;
m) Tomarem parte ou interesse, directamente ou por interposta pessoa, em qualquer contrato celebrado ou a celebrar com qualquer organismo ou serviço da Administração;
n) Com intenção de obterem para si ou para terceiro qualquer benefício ilícito, faltarem aos deveres do seu cargo, não promovendo atempadamente os procedimentos adequados ou lesarem, em negócio jurídico ou por mero acto material, os interesses patrimoniais que no todo ou em parte lhes cumpre administrar, fiscalizar, defender ou realizar;
o) Forem condenados, por sentença transitada em julgado em que seja decretada pena de demissão ou, por qualquer forma, revelem indignidade ou falta de idoneidade moral para o exercício das funções.
3. A pena de aposentação compulsiva só poderá ser aplicada se o funcionário ou agente reunir o período mínimo de 15 anos de serviço contados para efeitos de aposentação, na ausência do que lhe será aplicada a pena de demissão.
Foi invocado o artigo 315º/2-a) do ETAPM acima citado.
Existe uma corrente de entendimento, à lua da qual a aplicação de medidas punitivas disciplinares é, em princípio, insindicável contenciosamente, salvo nos casos de erro manifesto, notória injustiça ou violação dos princípios gerais do Direito Administrativo (cfr. acórdãos de 28 de Julho de 2004, 21 de Janeiro de 2015 e 4 de Novembro de 2015, respectivamente nos Processos 27/2003, 26/2014 e 71/2015) .
Tendo o Recorrente violado o dever de correcção a que estava obrigado, mediante desrespeito grave a uma colega, nas instalações do serviço, o que, à luz do artigo 315.º, n.º 2, alínea a), do ETAPM, configura causa de demissão – não se aplica a pena de aposentação compulsiva por o Recorrente não estar reunido dos pressupostos legalmente exigidos (ex.: (não)ser funcionário do quadro e ter mais de 15 anos de serviço) -, nada há a sindicar, na decisão punitiva, em matéria de proporcionalidade.
Pelo que, improcede o alegado vício de violação do princípio da proporcionalidade.
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Síntese conclusiva:
I – Quando um trabalhador contratado da função pública, seguindo atrás de uma colega nas escadas rolantes, aproveitou a diferença de planos em que seguiam para, durante alguns instantes, colocar o telemóvel em modo de videogravação, com o ecrã iluminado, sob a saia da colega, efectuando assim uma gravação de vídeo da parte inferior do corpo da colega, cometeu uma infracção disciplinar que cai na alçada do artigo 315º/2-a) do ETAPM, violando o dever de correcção, previsto no artigo 279º/8 do mesmo ETAPM.
II – A dedução de uma segunda acusação em processo disciplinar não gera nenhuma nulidade, desde que sejam salvaguardados todos os meios de defesa do arguido (Recorrente) e mesmo que exista alguma irregularidade ou nulidade, se esta não viesse a ser arguida durante o andamento do processo e até à decisão final, tais vícios são considerados sanados nos termos do disposto no artigo 298º do ETAPM, salvo aquelas situações em que o legislador consagre soluções diferentes.
III – À instrutora do processo disciplinar cabe decidir, em nome da descoberta da verdade material, se são pertinentes ou não e, se realizar ou não certas diligências requeridas pelo arguido(Recorrente), sem excepção em relação à diligência requerida pelo mesmo, no sentido de convocar a comparência da vítima na presença da instrutora, para que o arguido(Recorrente) pudesse pedir perdão.
IV - Tendo o Recorrente violado o dever de correcção a que estava obrigado, mediante desrespeito grave a uma colega, nas instalações do serviço, o que, à luz do artigo 315.º, n.º 2, alínea a), do ETAPM, configura causa de demissão – não se aplica a pena de aposentação compulsiva por o Recorrente não estar reunido dos pressupostos legalmente exigidos (ex.: (não)ser funcionário do quadro, nem ter mais de 15 anos de serviço) -, nada há a sindicar, na decisão punitiva, em matéria de proporcionalidade.
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Tudo visto, resta decidir.
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V - DECISÃO
Em face de todo o que fica exposto e justificado, os juízes do TSI acordam em julgar improcedente o presente recurso, mantendo-se o despacho punitivo recorrido.
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Custas pelo Recorrente, que se fixa em 5 UCs.
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Notifique e Registe.
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RAEM, 18 de Outubro de 2018.
Fong Man Chong
(Relator)
Ho Wai Neng
(Primeiro Juiz-Adjunto)
Fui presente José Cândido de Pinho
Joaquim Teixeira de Sousa (Segundo Juiz-Adjunto)
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