打印全文
Processo nº 570/2018 Data: 25.10.2018
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Crime de “corrupção passiva para acto ilícito”.
Crime de “abuso de poder”.
Vícios da decisão da matéria de facto.
In dubio pro reo.
Concurso real.
Pena.



SUMÁRIO

1. Admite-se que se possa entender que entre o crime de “abuso de poder” e o de “corrupção passiva para acto ilícito” existem “relações de subsidiariedade” e de “consumpção”.
Porém, em causa estando “duas situações” (distintas): uma, em que a conduta do arguido recorrente se relaciona com o co-arguido de quem obteve vantagens, (constituindo o crime de “corrupção”), e, a outra, em que tem como objectivo favorecer uma conhecida, integrando o crime de “abuso de poder”, adequada é a sua condenação como autor de tais crimes em concurso real.

2. A necessidade de salvaguardar a confiança dos cidadãos numa administração pública que sirva com neutralidade, objectividade e eficácia os interesses gerais, (públicos e comuns), reclama uma sanção penal que dê um sinal claro de “intransigência” perante os crimes relacionados com “abusos de funções públicas” como a “corrupção”, o “abuso de poder” e todas as outras formas de exercício ilegal de funções públicas.
Decididamente, não pode ser um “crime de baixo risco e fácil/alto rendimento”, havendo antes que ser um “crime de alto risco e firme punição.

O relator,

______________________
José Maria Dias Azedo



Processo nº 570/2018
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Em audiência colectiva no T.J.B. responderam AXX (AXX), BXX (BXX) e CX (CX), (1°, 2° e 3°) arguidos com os restantes sinais dos autos.

Realizada a audiência, proferiu o Tribunal Acórdão decidindo condenar:

–– o (1°) arguido AXX, como autor material da prática em concurso real de 1 crime de “corrupção passiva para acto ilícito”, p. e p. pelo art. 337°, n.° 1 do C.P.M., na pena de 2 anos e 3 meses de prisão, e 1 outro de “abuso de poder”, p. e p. pelo art. 347° do C.P.M., na pena de 9 meses de prisão.
Em cúmulo jurídico, foi o arguido condenado na pena única de 2 anos e 6 meses de prisão.

–– o (2°) arguido BXX, como autor material da prática de 1 crime de “corrupção activa”, p. e p. pelo art. 339°, n.° 1 do C.P.M., na pena de 1 ano de prisão.

–– o (3°) arguido CX, como autor material da prática de 1 crime de “falsidade de testemunho”, p. e p. pelo art. 324°, n.° 1 do C.P.M., na pena de 9 meses de prisão, suspensa na sua execução por 18 meses; (cfr., fls. 2278 a 2346-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

*

Inconformados, os (1° e 2°) arguidos AXX e BXX recorreram.

O (1°) arguido A, imputando ao Acórdão recorrido o vício de “erro notório na apreciação da prova”, violação do “princípio in dubio pro reo” e “errada qualificação jurídica”, pugnando pela sua absolvição quanto aos crimes de “corrupção passiva para acto ilícito” e “abuso de poder”, ou no sentido de se dever considerar a sua conduta como a prática de 1 crime de “corrupção passiva para acto lícito”, pedindo a redução e suspensão da execução da pena; (cfr., fls. 2530 a 2602).

O (2°) arguido B, assacando à decisão recorrida o vício de “erro notório na apreciação da prova”, “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”, “contradição insanável da fundamentação”, “errada aplicação de direito” e “excesso de pena”; (cfr., fls. 2501 a 2529).

*

Respondendo, considera o Ministério Público que os recursos merecem parcial provimento, considerando haver “excesso de pena”; (cfr., fls. 2608 a 2619-v e 2620 a 2634-v).

*

Neste T.S.I., e em sede de vista, juntou o Exmo. Representante do Ministério Público o seguinte douto Parecer:

“Submetidos a julgamento em processo comum perante tribunal colectivo, foram os ora recorrentes AXX e BXX condenados: o primeiro, nas penas parcelares de prisão de 2 anos e 3 meses por corrupção passiva para acto ilícito (artigo 337.°, n.° 1, do Código Penal) e 9 meses por abuso do poder (artigo 347.° do Código Penal), das quais resultou, em cúmulo jurídico, apena global de 2 anos e 6 meses de prisão; o segundo, na pena de prisão de 1 ano por corrupção activa para acto ilícito (artigo 339.°, n.° 1, do Código Penal).
Vêm interpor recurso do acórdão condenatório, imputando-lhe as baterias de vícios que alinham nas respectivas motivações de recurso, que incluem erro notório na apreciação da prova, com violação do princípio in dubio pro reo, insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, contradição insanável da fundamentação, erro na qualificação e na subsunção dos factos nos tipos legais, e erro na determinação das penas.
Em resposta aos recursos, o Ministério Público põe a nu a falta de razão dos recorrentes, esmiuçando e rebatendo, ponto por ponto, os seus argumentos, em extensas e acertadas considerações, com adequada sinalização da matéria de facto pertinente e das disposições e princípios de direito aplicáveis, embora conceda que as penas concretamente aplicadas, não devendo ser objecto de suspensão na sua execução, têm margem para um ligeiro abaixamento.
Cremos que pouco haverá a aditar às contraminutas do Ministério Público em primeira instância, tal a exaustividade com que abordam as questões suscitadas nas motivações dos recursos.
Nas conclusões da sua motivação de recurso, o arguido AXX começa por afirmar a violação do princípio in dubio pro reo.
Não se vislumbra como chega à conclusão de que este princípio não foi respeitado. Da leitura das actas da audiência e da fundamentação do acórdão não perpassa situação de dúvida sobre a materialidade factual que se teve por assente e que permitiu a integração da conduta do arguido nos ilícitos típicos por que foi condenado, incluindo o crime de corrupção. Não pode o recorrente pretender transferir para o tribunal eventuais dúvidas que a sua leitura pessoal da prova suscite.
O princípio in dubio pro reo, pressupondo a valoração de um non liquet em favor do arguido, só se impõe perante uma situação de dúvida sobre a realidade dos factos constitutivos do crime que lhe é imputado – acórdão do Tribunal de Segunda Instância, de 24 de Julho de 2014, proferido no Processo n.° 311/2014 – situação que, no caso, cremos arredada.
Põe este recorrente também em causa que se haja logrado demonstrar, de forma clara e coerente, à existência de nexo entre as contrapartidas ilegais que proporcionou ao segundo arguido e suas firmas e as vantagens patrimoniais por si recebidas, intentando desta forma lançar dúvidas acerca do preenchimento dos elementos constitutivos do crime de corrupção. Além disso, assevera que a obtenção e utilização, por si, de bilhetes de transporte oferecidos pelas firmas do segundo arguido não integra uma relação de corrupção, porquanto os serviços governamentais podiam requisitar tais bilhetes àquelas firmas por motivo de serviço.
Pois bem, provada que ficou a existência de um acordo entre o recorrente e o segundo arguido, mediante o qual este proporcionaria àquele vantagens com expressão pecuniária contra favores prestados por via e em função do cargo de autoridade que aquele desempenhava, afigura-se irrelevante que não se tenha concretamente referenciado uma determinada vantagem a um concreto favor. O acordo e a inerente resolução cobrem evidentemente uma relação plúrima de vantagens e favores. Daí que o recorrente tenha sido condenado por um único crime de corrupção, não obstante os diversos momentos em que houve concretização de dádivas e favores.
Quanto à oferta de bilhetes, é óbvio que ela ocorre fora do quadro normal de requisição por parte dos serviços públicos governamentais. Há regras e procedimentos formais instituídos para o efeito, que não foram observados, não tendo, em bom rigor, os bilhetes sido disponibilizados e usados por motivo de serviço público – posto que fossem invocadas razões de serviço público nos pedidos, o que é compreensível, dada a necessidade de ocultar a melindrosa relação de prática de favores estabelecida entre os dois arguidos.
Sustenta também este recorrente que há contradição insanável na fundamentação do acórdão, já que se deu como provado que as firmas ligadas ao segundo arguido podiam atribuir bilhetes aos serviços governamentais, por motivo de serviço, tendo-se igualmente dado como provado que o recorrente AXX, ao solicitar os bilhetes, alegou razões de serviço, posto que acabasse por usar os bilhetes para finalidades estranhas ao serviço.
É óbvio que, nos termos e em decorrência do acordo firmado com o segundo arguido, não precisava o recorrente AXX de invocar, perante o segundo arguido, a finalidade de serviço dos bilhetes. Mas, como quem quer sabe, os actos de corrupção costumam ficar no íntimo de quem os pratica. É necessário manter as aparências, perante todos os demais que possam lidar com a matéria. Não podia, evidentemente, o primeiro arguido pedir bilhetes às firmas do segundo arguido, esclarecendo que não se destinavam a finalidades de serviço público…
Nenhuma incongruência ou contradição se detecta.
O primeiro recorrente imputa ainda ao acórdão a violação do princípio da livre apreciação da prova e o cometimento de erro notório na apreciação da prova, na parte relativa ao pacto alcançado entre os dois arguidos. Critica a circunstância de o acórdão dar como provado que o acordo, gizado em 2012, iria abranger pagamentos futuros de benesses, incluindo uma reserva de hotel em 2014, e diz que há uma ficção do acordo.
Ora bem, o acordo, entendimento, combinação, encontro de vontades, ou o que se lhe queira chamar, resulta evidenciado do conjunto de provas produzidas e da forma como elas delineiam a relação entre os arguidos a partir de 2012. É de crer que, em 2012, o recorrente não tenha solicitado do segundo arguido o pagamento de um alojamento hoteleiro que veio a ocorrer em 2014. Mas, como se frisou supra, o acordo e a respectiva resolução cobrem evidentemente uma relação plúrima de vantagens e favores. Daí que não se possa considerar anómala a conclusão de que o pagamento do alojamento hoteleiro efectuado pelo segundo arguido a favor do primeiro se insere no desenvolvimento do acordo gizado em 2012. Pela mesma razão, fica também esvaziado o argumento da inexistência de conexão directa entre vantagens auferidas e actos ou omissões contrários ao dever do cargo do recorrente.
Em suma, não se divisa onde possa residir a invocada violação do princípio da livre apreciação da prova, bem como o aventado erro notório na apreciação da prova.
Também no que respeita ao encobrimento da subcontratação da firma **** para efectuar serviços de segurança vislumbra o primeiro recorrente a existência de erro notório na apreciação da prova. Considera, essencialmente, que, se o terminal não podia funcionar sem serviços de segurança e estava efectivamente a funcionar, tinha que haver no local trabalhadores habilitados a prestar serviços de segurança, e pertencentes a uma companhia diferente daquela que havia ganho o concurso, pois a actividade tem que ser exercida em exclusividade e a firma vencedora do concurso não estava habilitada nem podia a prestar esses serviços. E porque a dita subcontratação era do conhecimento de toda a gente, a conclusão, pelo acórdão recorrido de que o recorrente conhecia a situação de subcontratação e a encobriu constitui erro notório na apreciação da prova.
Discordamos desta tese.
Até é possível que o procedimento de concurso não haja equacionado a totalidade das necessidades aliadas ao funcionamento dos terminais marítimos, bem como as especificidades da sua prestação, e daí tenha resultado uma situação de carência de pessoal que aconselhasse o recurso à subcontratação para ultrapassar o problema. Mas há que não esquecer que a DSAMA, através dos seus dirigentes máximos, não autorizou a subcontratação, facto do conhecimento do arguido recorrente, que, dadas as suas funções, tinha a obrigação de não fechar os olhos e denunciar superiormente a anomalia da situação, até para que ela pudesse ser resolvida adentro da legalidade. Por outro lado, a circunstância de muita gente poder estar a par da existência da subcontratação não é motivo para eximir a responsabilidade do arguido recorrente quanto à omissão de medidas e de reporte do caso.
Improcede também este alegado erro na apreciação da prova.
No que toca à sua condenação por abuso de poder, o recorrente AXX também entende que houve erro notório na apreciação da prova. Salienta que, a partir do documento junto aos autos onde constam os requisitos para concorrer à atribuição de lojas no Terminal Marítimo do Porto Exterior, tal como aprovado pela DSAMA, não podia o acórdão ter dado por provada a situação de abuso de poder, já que o recorrente não tinha quaisquer poderes em matéria de atribuição de lojas.
Aceita-se que não competia ao recorrente organizar o concurso e concretizar a atribuição de lojas. Porém, face às suas competências, enquanto Chefe do Departamento de Gestão Portuária, cabia-lhe fiscalizar e coordenar a gestão do Terminal Marítimo, aí incluídas as áreas comerciais, que então estavam concessionadas à $$$$, conforme bem salienta o Exm.° colega na sua resposta. Assim, não obstante não lhe competir directamente a organização do concurso para atribuição de lojas e espaços comerciais, é certo que o arguido AXX, dadas as suas funções, detinha poderes de fiscalização e gestão, no âmbito dos quais exerceu as pressões ou influências que viriam a ficar demonstradas em juízo e que levaram à sua condenação por abuso de poder.
Soçobra, assim, também este invocado erro.
Posto isto, impõe-se dizer que não se mostra errada a subsunção dos factos nos tipos legais de corrupção passiva para acto ilícito e de abuso de poder, pelo que não tem cabimento a pretendida absolvição ou a convolação para outro tipo de ilícito. Igualmente não se antolham razões para censurar a não suspensão da execução da pena, dados os motivos arregimentados pelo acórdão, que aliás encontram pleno acolhimento em considerações de política criminal e de prevenção geral positiva. Por seu turno, a medida das penas, posto que não apresente desfasamentos com a bitola habitualmente usada nos tribunais da Região Administrativa Especial de Macau, nem se apresente desajustada aos fins das penas e à culpa que as delimita, poderá eventualmente ser ajustada em sintonia com o parecer a esse propósito veiculado pelo Ministério Público em primeira instância.
Por seu turno, o recorrente BXX, na sua motivação, começa por imputar ao acórdão recorrido o vício de erro notório na apreciação da prova e a violação do princípio in dubio pro reo. Para tanto, aborda um conjunto de situações integrantes de vantagens que o acórdão considerou terem sido por si proporcionadas indevidamente ao arguido AXX, como contrapartida de actos ou omissões contrários aos deveres do cargo deste, e intenta desvalorizar a carga penal desta actuação, através de tentativas de explicação no mínimo simplistas. Ou porque estava convencido de que o pedido fora feito para fins, ou por motivo, de serviço público; ora por uma questão de face; ora porque o caso se passou em 2014 ou 2015; doutra vez porque não tinha necessidade de subornar o primeiro arguido; enfim, porque nunca pediu ao primeiro arguido para se abster de fiscalizar e de lhe aplicar qualquer sanção.
Pois bem, a menorização destas situações e a negação de algumas delas representam apenas a sensibilidade e o ponto de vista do recorrente quanto ao desvalor e à verificação das acções apuradas no processo, as suas e as do arguido AXX. Mas isso apenas quer dizer que não há coincidência entre a valoração da prova e a integração dos factos na lei penal efectuada pelo acórdão recorrido e a valoração e integração que o recorrente sufraga. Não se segue daí que ocorra erro na apreciação da prova, muito menos o notório.
O erro notório na apreciação da prova pressupõe que a partir de um facto se extraia uma conclusão inaceitável, que sejam preteridas regras sobre o valor da prova vinculada ou tarifada, ou que se violem as regras da experiência ou as leges artis na apreciação da prova – acórdão do Tribunal de Última Instância, de 4 de Março de 2015, exarado no Processo n.° 9/2015. Em bom rigor, nada disto vem posto em causa.
Por outro lado, e tal como dissemos a propósito da motivação do recorrente AXX, não se vislumbra como é possível a conclusão de que não foi respeitado o princípio in dubio pro reo. Nem da fundamentação do acórdão nem da leitura da acta perpassa situação de dúvida sobre a materialidade factual que se teve por assente e que permitiu a integração da conduta do arguido no ilícito típico por que foi condenado, pelo que não pode o recorrente pretender transferir para o tribunal eventuais dúvidas que a sua leitura pessoal da prova suscite.
O princípio in dubio pro reo, pressupondo a valoração de um non liquet em favor do arguido, só se impõe perante uma situação de dúvida sobre a realidade dos factos constitutivos do crime que lhe é imputado – acórdão do Tribunal de Segunda Instância, de 24 de Julho de 2014, proferido no Processo n.° 311/2014 – o que, no caso, é de excluir.
Improcedem estes vícios.
Seguidamente, este recorrente afirma padecer o acórdão de insuficiência para a decisão da, matéria de facto provada. Na tentativa de explicitação do vício, diz que o tribunal não devia ter feito a cisão, em duas, da questão relativa à execução do contrato de prestação de serviços. Isto porque a subcontratação da Companhia **** acontece precisamente para possibilitar o cumprimento do contrato e foi tacitamente permitida pelo arguido AXX.
Não descortinamos, sinceramente, onde reside a alegada insuficiência e o certo é que também o recorrente não logra explicitá-la.
Improcede também este fundamento do recurso.
Depois, o recorrente afirma haver contradição insanável da fundamentação. Argumenta que o acórdão, por um lado, teve por assente que ele, segundo arguido, para obter benefício para a sua Companhia Cotai ####, pediu ao primeiro arguido que a dispensasse de efectuar serviços na “zona proibida” dos terminais; e, por outro, considerou o mesmo acórdão que não se podia ter por adquirido que o primeiro arguido tivesse conseguido encobrir a subcontratação.
Não cremos que haja incompatibilidade ou contradição entre as duas asserções. Pedir a alguém que desonere a vencedora de um concurso de prestação de serviços de executar parte desses serviços, fechando os olhos a uma subcontratação, não é incompatível com o malogro da tentativa de ocultação da subcontratação de uma outra firma para executar os serviços de que a primeira se viu desonerada.
Improcede também este fundamento.
Chegados aqui, impõe-se dizer que não se mostra errada a subsunção dos factos no tipo do artigo 339.°, n.° 1, do Código Penal, não tendo cabimento a pretendida absolvição. E, tal como dissemos a propósito do recurso de AXX, não se divisam razões para censurar a não suspensão da execução da pena, dados os motivos arregimentados pelo acórdão, que aliás encontram pleno acolhimento em considerações de política criminal e de prevenção geral positiva. Por seu turno, a medida da pena, posto que não se possa considerar desfasada da bitola habitualmente usada nos tribunais da Região Administrativa Especial de Macau, nem se apresente desajustada aos fins das penas e à culpa que as delimita, poderá eventualmente sofrer o ajuste proposto pelo Ministério Público em primeira instância.
Ante o exposto, e na improcedência dos fundamentos dos recursos, vai o nosso parecer no sentido de lhes ser negado provimento, ressalvada a possibilidade de ajuste da medida das penas, nos moldes preconizados pelo Ministério Público em primeira instância”; (cfr., fls. 3045 a 3050).

*

Nada parecendo obstar, passa-se a decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Estão “provados” e “não provados” os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 2297-v a 2316-v, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.

Do direito

3. Vem os (1° e 2°) arguidos AXX e BXX recorrer do Acórdão do T.J.B. que os condenou nos termos atrás já referidos.

Vejamos se tem razão, começando-se por identificar as questões pelos recorrentes colocadas e trazidas à apreciação deste T.S.I..

Entende o (1°) arguido A que o Acórdão recorrido padece do vício de “erro notório na apreciação da prova”, violação do “princípio in dubio pro reo” e “errada qualificação jurídica”, pugnando pela sua absolvição quanto aos crimes de “corrupção passiva para acto ilícito” e “abuso de poder”, e, subsidiariamente, no sentido de a sua conduta ser considerada como a prática de 1 só crime de “corrupção passiva para acto lícito”, pedindo a “redução e suspensão da execução da pena”.

O (2°) arguido B, é de opinião que a decisão recorrida padece do vício de “erro notório na apreciação da prova”, “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”, “contradição insanável da fundamentação”, “errada aplicação de direito” e “excesso de pena”.

–– Sendo estas as questões colocadas, outras de conhecimento oficioso não havendo, e certo sendo que não está esta Instância vinculada a conhecer das questões colocadas na mesma ordem em estas vem apresentadas, comecemos, como se apresenta lógico, pelas relacionadas com a “decisão da matéria de facto”.

Pois bem, aqui, mostra-se-nos de dizer que, no que toca às ditas “questões”, acompanhamos, na íntegra, o teor do douto Parecer do Ministério Público que, de forma clara, objectiva, cabal e detalhada, (e que aqui se dá como reproduzido), responde às pretensões dos recorrentes, pouco havendo a acrescentar.

Seja como for, não se deixa de dizer o que segue.

Repetidamente temos afirmado que o vício de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão” apenas ocorre “quando o Tribunal não se pronuncia sobre toda a matéria objecto do processo”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 25.01.2018, Proc. n.° 1149/2017, de 14.06.2018, Proc. n.° 451/2018 e de 06.09.2018, Proc. n.° 677/2018, podendo-se também sobre o dito vício em questão e seu alcance, ver o Ac. do Vdo T.U.I. de 24.03.2017, Proc. n.° 6/2017).

Como decidiu o T.R. de Coimbra:

“O vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, existe quando da factualidade vertida na decisão se colhe faltarem dados e elementos para a decisão de direito, considerando as várias soluções plausíveis, como sejam a condenação (e a medida desta) ou a absolvição (existência de causas de exclusão da ilicitude ou da culpa), admitindo-se, num juízo de prognose, que os factos que ficaram por apurar, se viessem a ser averiguados pelo tribunal a quo através dos meios de prova disponíveis, poderiam ser dados como provados, determinando uma alteração de direito.
A insuficiência para a decisão da matéria de facto existe se houver omissão de pronúncia pelo tribunal sobre factos relevantes e os factos provados não permitem a aplicação do direito ao caso submetido a julgamento, com a segurança necessária a proferir-se uma decisão justa”; (cfr., Ac. de 17.05.2017, Proc. n.° 116/13, in “www.dgsi.pt”).

E, como igualmente também considerou o T.R. de Évora:

“A insuficiência da matéria de facto para a decisão não tem a ver, e não se confunde, com as provas que suportam ou devam suportar a matéria de facto, antes, com o elenco desta, que poderá ser insuficiente, não por assentar em provas nulas ou deficientes, antes, por não encerrar o imprescindível núcleo de factos que o concreto objecto do processo reclama face à equação jurídica a resolver no caso”; (cfr., o Ac. de 26.09.2017, Proc. n.° 447/13).

“Só existe tal insuficiência quando se faz a “formulação incorreta de um juízo” em que “a conclusão extravasa as premissas” ou quando há “omissão de pronúncia, pelo tribunal, sobre factos alegados ou resultantes da discussão da causa que sejam relevantes para a decisão, ou seja, a que decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou como não provados todos os factos que, sendo relevantes para a decisão, tenham sido alegados pela acusação e pela defesa ou resultado da discussão”; (cfr., o Ac. da Rel. de Évora de 21.12.2017, Proc. n.° 165/16).

“O vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada traduzir-se-á, afinal, na falta de elementos fácticos que permitam a integração na previsão típica criminal, seja por falência de matéria integrante do seu tipo objectivo ou do subjectivo ou, até, de uma qualquer circunstância modificativa agravante ou atenuante, considerada no caso. Em termos sintéticos, este vício ocorre quando, com a matéria de facto dada como assente na sentença, aquela condenação não poderia ter lugar ou, então, não poderia ter lugar naqueles termos”; (cfr., o Ac. da Rel. de Coimbra de 24.01.2018, Proc. n.° 647/14).

No caso dos autos, de uma mera leitura ao Acórdão recorrido se constata que o Colectivo a quo emitiu (expressa) pronúncia sobre toda a “matéria objecto do processo”, elencando a que do julgamento resultou “provada” e “não provada”, justificando, adequadamente, esta sua decisão, não se vislumbrando assim que tenha incorrido no assacado vício; (aliás, como no recente Ac. da Rel. de Coimbra de 12.09.2018, Proc. n.° 28/16, se decidiu, inexiste insuficiência da matéria de facto provada para a decisão “quando os factos dados como provados permitem a aplicação segura do direito ao caso submetido a julgamento”, sendo, como se verá, este o caso dos autos).

Continuemos.

Quanto ao vício de “contradição insanável da fundamentação”, o mesmo tem sido definido como aquele que ocorre quando “se constata incompatibilidade, não ultrapassável, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão”; (cfr., v.g. os recentes Acs. deste T.S.I. de 04.04.2018, Proc. n.° 127/2018, de 19.04.2018, Proc. n.° 66/2018 e de 28.06.2018, Proc. n.° 459/2018).

Em síntese, quando analisada a decisão recorrida através de um raciocínio lógico se verifique que a mesma contém posições antagónicas ou inconciliáveis, que mutuamente se excluem e que não podem ser ultrapassadas.

E, como se tem igualmente decidido:

“Há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem-se mutuamente”; (cfr., o Ac. da Rel. de Évora de 21.12.2017, Proc. n.° 165/16).

E, analisada a decisão recorrida, não se vislumbra nela qualquer “incompatibilidade”, muito menos “insanável”, afigurando-se-nos que a mesma se apresenta clara e lógica, e de acordo com as regras de experiência e normalidade das coisas.

Dest’arte, e face ao que se consignou, adequado não é considerar-se que a decisão recorrida padece da imputada “contradição”.

Avancemos, agora, para o assacado “erro notório”.

No que toca a este vício temos entendido que o mesmo apenas existe quando “se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores”.
De facto, “É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 04.04.2018, Proc. n.° 912/2017, de 17.05.2018, Proc. n.° 236/2018 e de 19.07.2018, Proc. n.° 538/2018).

Como também já tivemos oportunidade de afirmar:

“Erro” é toda a ignorância ou falsa representação de uma realidade. Daí que já não seja “erro” aquele que possa traduzir-se numa “leitura possível, aceitável ou razoável, da prova produzida”.
Sempre que a convicção do Tribunal recorrido se mostre ser uma convicção razoavelmente possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve a mesma ser acolhida e respeitada pelo Tribunal de recurso.
O princípio da livre apreciação da prova, significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que pré-determinam ou hierarquizam o valor dos diversos meios de apreciação da prova, pressupondo o apelo às “regras de experiência” que funcionam como argumentos que ajudam a explicar o caso particular com base no que é “normal” acontecer.
Com o mesmo, consagra-se um modo não estritamente vinculado na apreciação da prova, orientado no sentido da descoberta da verdade processualmente relevante pautado pela razão, pela lógica e pelos ensinamentos que se colhem da experiência comum, e limitado pelas excepções decorrentes da “prova vinculada”, (v.g., caso julgado, prova pericial, documentos autênticos e autenticados), estando sujeita aos princípios estruturantes do processo penal, entre os quais se destaca o da legalidade da prova e o do “in dubio pro reo”.
Enformado por estes limites, o julgador perante o qual a prova é produzida – e que se encontra em posição privilegiada para dela colher todos os elementos relevantes para a sua apreciação crítica – dispõe de ampla liberdade para eleger os meios de que se serve para formar a sua convicção e, de acordo com ela, determinar os factos que considera provados e não provados.
E, por ser assim, nada impede que dê prevalência a um determinado conjunto de provas em detrimento de outras, às quais não reconheça, nomeadamente, suporte de credibilidade.

Aqui chegados, quid iuris?

Ora, cremos que tal como em relação aos atrás apreciados vícios, inexiste, também, qualquer “erro”, (muito menos, notório), pois que, em momento algum, violou o Colectivo a quo qualquer regra sobre o valor das provas tarifadas, regras de experiência ou legis artis, tendo, antes, decidido em conformidade com estas, e em total respeito do princípio da livre apreciação da prova.

Aliás, basta uma leitura a fundamentação exposta no Acórdão recorrido para se constatar que a sua “convicção” não merece qualquer censura ou reparo.

Por fim, cabe dizer que não se verifica igualmente qualquer violação do “princípio in dubio pro reo”, pois que em momento algum, teve o Colectivo a quo qualquer “dúvida” ou “hesitação”, tendo, mesmo assim, decidido em prejuízo de qualquer dos arguidos.

Como se consignou no citado Ac. da Rel. de Coimbra de 12.09.2018, (Proc. n.° 28/16):

“O princípio do “in dubio pro reo” é exclusivamente probatório e aplica-se quando o tribunal tem dúvidas razoáveis sobre a verdade de determinados factos, ao passo que o princípio da presunção de inocência se impõe aos juízes ao longo de todo o processo e diz respeito ao próprio tratamento processual do arguido.
O princípio in dubio pro reo estabelece que na decisão de factos incertos a dúvida favorece o arguido, ou seja, o julgador deve valorar sempre em favor do arguido um non liquet.
A violação do princípio in dubio pro reo exige que o tribunal tenha exprimido, com um mínimo de clareza, que se encontrou num estado de dúvida quanto aos factos que devia dar por provados ou não provados”.

–– Apreciada e confirmada que assim deve ficar a “decisão da matéria de facto”, vejamos agora do seu “enquadramento jurídico-penal”.

Comecemos pelo (1°) arguido A.

Como se viu, foi este arguido condenado como autor material da prática em concurso real de 1 crime de “corrupção passiva para acto ilícito”, p. e p. pelo art. 337°, n.° 1 do C.P.M., na pena de 2 anos e 3 meses de prisão, e 1 outro de “abuso de poder”, p. e p. pelo art. 347° do C.P.M., na pena de 9 meses de prisão, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 2 anos e 6 meses de prisão.

Vejamos.

Quanto ao crime de “corrupção passiva para acto ilícito” prescreve art. 337° do C.P.M.:

“1. O funcionário que, por si ou por interposta pessoa com o seu consentimento ou ratificação, solicitar ou aceitar, para si ou para terceiro, sem que lhe seja devida, vantagem patrimonial ou não patrimonial, ou a sua promessa, como contrapartida de acto ou de omissão contrários aos deveres do cargo, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.
2. Se o facto não for executado, o agente é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
3. A punição não tem lugar se o agente, antes da prática do facto, voluntariamente repudiar o oferecimento ou a promessa que aceitara, ou restituir a vantagem, ou, tratando-se de coisa fungível, o seu valor”.

E, no que toca ao crime de “abuso de poder”, preceitua o art. 347° do mesmo C.P.M. que:

“O funcionário que, fora dos casos previstos nos artigos anteriores, abusar de poderes ou violar deveres inerentes às suas funções, com intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou de causar prejuízo a outra pessoa, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”.

Com se viu, pretende o arguido a absolvição em relação a tais crimes, ou então, que se considere que cometeu apenas o crime de “corrupção”.

Não se pode acolher tal pretensão.

Vejamos.

Tratando do crime de “corrupção”, e ponderando sobre a sua natureza, consignou-se o seguinte no Ac. do Vdo T.U.I. de 30.01.2008, (Proc. n.° 36/2007):

“Explica A. M. ALMEIDA COSTA, que o bem jurídico protegido que subjaz aos crimes de corrupção passiva repousa na ““dignidade” e “prestígio” do Estado, traduzidos na “confiança” da colectividade na objectividade e na independência do funcionamento dos seus órgãos, como bem jurídico ínsito à corrupção. Numa palavra, o objecto de protecção reconduz-se ao prestígio e à dignidade do Estado, como pressupostos da sua eficácia ou operacionalidade na prossecução legítima dos interesses que lhe estão adstritos”.
O mesmo Autor acrescenta que “ao transaccionar com o cargo, o empregado público corrupto coloca os poderes funcionais ao serviço dos seus interesses privados, o que equivale a dizer que, abusando da posição que ocupa, se “sub-roga” ou “substitui” ao estado, invadindo a respectiva esfera de actividade. A corrupção (própria e imprópria) traduz-se, por isso, numa manipulação do aparelho de estado pelo funcionário que, assim, viola a autonomia intencional do último, ou seja, em sentido material, infringe as exigências de legalidade, objectividade e independência que, num Estado de direito, sempre têm de presidir ao desempenho das funções públicas”.
E CLÁUDIA SANTOS acentua que “o que o legislador pretende evitar com a incriminação da corrupção é sobretudo a criação da mera possibilidade de actuação, por parte do agente público, de acordo com critérios outros que não os estritamente objectivos. Quando solicita ou aceita o recebimento de um suborno, o funcionário ou titular de cargo político fica de imediato com a sua imparcialidade prejudicada. Independentemente da prática de qualquer acto, a sua autonomia intencional está já condicionada”.
Na síntese de F. L. COSTA PINTO “o bem jurídico tutelado por todas as incriminações da corrupção é a “legalidade da administração”, um valor constitucional e uma vertente do Estado de direito, mas igualmente um bem instrumental relativamente ao relacionamento de qualquer cidadão com o Estado”.
Da configuração adoptada para o bem jurídico do crime de corrupção passiva, temos que este constitui um crime de dano e não de perigo, “já que não se limita a pôr em risco, antes importa uma efectiva violação da esfera de actividade do Estado, traduzida numa ofensa à sua autonomia intencional”.
Tem-se considerado a corrupção passiva como um crime material ou de resultado, cuja consumação coincide com o momento em que a solicitação ou a aceitação do suborno (ou a sua promessa) por parte do funcionário, cheguem ao conhecimento do destinatário.
“Ao invés do que sucedia no direito anterior, para a consumação do delito não se requer, pois, o recebimento efectivo da peita. No presente contexto, mostra-se suficiente que se torne conhecida do particular a “solicitação” do suborno (se a iniciativa pertenceu ao funcionário) ou a correspondente “aceitação” (se a iniciativa proveio do corruptor).
A “mera solicitação de suborno, ainda que recusada, ao concretizar uma manifestação de venalidade, consubstancia uma ofensa efectiva à autonomia intencional da função pública e, assim, uma corrupção passiva consumada”.
Assim, pode haver corrupção passiva consumada ainda que o acto ilícito não se efective”.

Por sua vez, cremos que se pode definir o “abuso de poderes” como uma instrumentalização de poderes (inerentes à função), para finalidades estranhas ou contrárias às permitidas pelo direito.
Várias situações são susceptíveis de configurar esse mesmo abuso de poderes por parte do funcionário.
Desde logo, abusa dos poderes que lhe são conferidos, o agente que desrespeita formalidades impostas por lei, ou actua fora dos casos estabelecidos na lei, (em violação da lei).
O tipo legal poderá também ser preenchido através da “violação de deveres” por parte do funcionário.
Aqui se incluem deveres funcionais específicos impostos por normas jurídicas ou instruções de serviço, e relativos a uma função em particular, e deveres funcionais genéricos que se referem a toda a actividade desenvolvida no âmbito da administração.
Integram-se, aqui, o dever de zelo, o dever de isenção e o dever de lealdade, entre outros.
O crime pode ser cometido por “acção” e “omissão”, (o que parece ser mais consentâneo com a intenção do legislador ao pretender proteger com este tipo legal a imparcialidade e o bom andamento da administração).
No crime de “abuso de poder”, que constitui um crime de função e, por isso, um crime próprio, o funcionário que detém determinados poderes funcionais faz uso de tais poderes para um fim diferente daquele para que a lei os concede; o crime é integrado, no primeiro limite do perímetro da tipicidade, pelo mau uso ou uso desviante de poderes funcionais, ou por excesso de poderes legais ou por desrespeito de formalidades essenciais.

Perante isto, quid iuris?

Ora, no caso dos autos, a factualidade dada como provada preenche, na íntegra, os elementos típicos, (objectivos e subjectivos), de ambos os crimes em questão, pois que provado está que o arguido ora recorrente, a troco de vantagens patrimoniais, que recebeu, e em violação dos seus deveres de Chefe do Departamento de Gestão Portuária, favoreceu, (por diversas vezes e ocasiões), o (2°) arguido BXX, tendo, também, em manifesto uso indevido dos poderes que lhe advinham das funções que exercia, providenciado para que uma sua conhecida, (DXX), obtivesse vantagens e benefícios na exploração de espaços comerciais no Terminal Marítimo de Passageiros do Porto Exterior.

Admite-se que se possa entender que entre o crime de “abuso de poder” e o de “corrupção passiva para acto ilícito” existem “relações de subsidiariedade” e de “consumpção”; (cfr., v.g., o Ac. da Rel. do Porto de 12.07.2017, Proc. n.° 731/09 e da Rel. de Lisboa de 21.03.2018, Proc. n.° 32/14).

Porém, no caso, importa atentar que em causa estão “duas situações” (distintas): uma, em que a conduta do arguido recorrente se relaciona com o (2°) arguido B, constituindo o crime de “corrupção”, e, a outra, em que a sua conduta tem como objectivo favorecer uma conhecida (D), e que, assim, integra, (em concurso real), o crime de “abuso de poder”.

Confirmada, desta forma, a “qualificação jurídico-penal” da conduta do arguido A, continuemos.

Em relação ao (2°) arguido B, o mesmo foi condenado como autor material da prática de 1 crime de “corrupção activa”, p. e p. pelo art. 339°, n.° 1 do C.P.M., na pena de 1 ano de prisão.

Nos termos do art. 339° do C.P.M.:

“1. Quem, por si ou por interposta pessoa com o seu consentimento ou ratificação, der ou prometer a funcionário, ou a terceiro com conhecimento daquele, vantagem patrimonial ou não patrimonial que ao funcionário não seja devida, com o fim indicado no artigo 337.º, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
2. Se o fim for o indicado no artigo anterior, o agente é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 60 dias.
3. É correspondentemente aplicável o disposto na alínea b) do artigo 328.º”.

E, face ao que “provado” está e ao que se consignou em relação ao recorrente A, evidente é que inviável é a absolvição do ora recorrente quanto ao crime de “corrupção activa” pelo qual foi condenado, sendo, porque verificados os seus pressupostos, de se confirmar o assim decidido.

–– Em relação às penas, vejamos.

Desde logo, e no que a esta matéria diz respeito, importa ponderar no estatuído no art. 40° do C.P.M. onde se prescreve que:

“1. A aplicação de penas e medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
2. A pena não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa.
3. A medida de segurança só pode ser aplicada se for proporcionada à gravidade do facto e à perigosidade do agente”.

Outrossim, não se pode olvidar que nos termos do art. 64° do mesmo C.P.M.:

“Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.

E, imprescindível é igualmente atentar no art. 65°, (onde se fixam os “critérios para a determinação da pena”), e em relação ao qual temos repetidamente considerado que “Na determinação da medida da pena, adoptou o Código Penal de Macau a “Teoria da margem da liberdade”, segundo a qual, a pena concreta é fixada entre um limite mínimo e um limite máximo, determinados em função da culpa, intervindo os outros fins das penas dentro destes limites”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 12.04.2018, Proc. n.° 166/2018, de 24.05.2018, Proc. n.° 301/2018 e de 13.09.2018, Proc. n.° 626/2018).

Como nota F. Dias, (in “Dto Penal, Parte Geral”, Tomo 1, pág. 84), “em síntese, pode dizer-se que, toda a pena que responda adequadamente às exigências preventivas e não exceda a medida da culpa é uma pena justa”.

Por sua vez, há que consignar também que como decidiu o Tribunal da Relação de Évora:

“I - Também em matéria de pena o recurso mantém o arquétipo de remédio jurídico, pelo que o tribunal de recurso deve intervir na pena (alterando-a) apenas e só quando detectar incorrecções ou distorções no processo de determinação da sanção.
II - Por isso, o recurso não visa nem pretende eliminar alguma margem de apreciação livre reconhecida ao tribunal de 1ª instância nesse âmbito.
III - Revelando-se, pela sentença, a selecção dos elementos factuais elegíveis, a identificação das normas aplicáveis, o cumprimento dos passos a seguir no iter aplicativo e a ponderação devida dos critérios legalmente atendíveis, justifica-se a confirmação da pena proferida”; (cfr., o Ac. de 22.04.2014, Proc. n.° 291/13, in “www.dgsi.pt”, aqui citado como mera referência, e Acórdão do ora relator de 30.01.2018, Proc. n.° 35/2018, de 10.05.2018, Proc. n.° 265/2018 e de 12.07.2018, Proc. n.° 534/2018).

No mesmo sentido decidiu este T.S.I. que: “Não havendo injustiça notória na medida da pena achada pelo Tribunal a quo ao arguido recorrente, é de respeitar a respectiva decisão judicial ora recorrida”; (cfr., o Ac. de 24.11.2016, Proc. n.° 817/2016).

E, como se tem igualmente decidido:

“O recurso dirigido à medida da pena visa tão-só o controlo da desproporcionalidade da sua fixação ou a correcção dos critérios de determinação, atentos os parâmetros da culpa e as circunstâncias do caso.
A intervenção correctiva do Tribunal Superior, no que diz respeito à medida da pena aplicada só se justifica quando o processo da sua determinação revelar que foram violadas as regras da experiência ou a quantificação se mostrar desproporcionada”; (cfr., o Ac. da Rel. de Lisboa de 24.07.2017, Proc. n.° 17/16).

“O tribunal de recurso deve intervir na pena, alterando-a, apenas quando detectar incorrecções ou distorções no processo de aplicação da mesma, na interpretação e aplicação das normas legais e constitucionais que a regem. Nesta sede, o recurso não visa nem pretende eliminar alguma margem de actuação, de apreciação livre, reconhecida ao tribunal de primeira instância enquanto componente individual do ato de julgar.
A sindicabilidade da pena em via de recurso situa-se, pois, na detecção de um desrespeito dos princípios que norteiam a pena e das operações de determinação impostas por lei. E esta sindicância não abrange a determinação/fiscalização do quantum exacto da pena que, decorrendo duma correcta aplicação das regras legais e dos princípios legais e constitucionais, ainda se revele proporcionada”; (cfr., o Ac. da Rel. de Guimarães de 25.09.2017, Proc. n.° 275/16).

Dito isto, vejamos.

O (1°) arguido A, foi condenado pela prática de:
- 1 crime de “corrupção passiva para acto ilícito”, p. e p. pelo art. 337°, n.° 1 do C.P.M. – ao qual cabia a pena de 1 a 8 anos de prisão – na pena de 2 anos e 3 meses de prisão; e,
- 1 crime de “abuso de poder”, p. e p. pelo art. 347° do C.P.M. – ao qual cabia a pena de prisão até 3 anos ou multa – na pena de 9 meses de prisão.

O (2°) arguido B, foi condenado pela prática de:
- 1 crime de “corrupção activa”, p. e p. pelo art. 339°, n.° 1 do C.P.M. – ao qual cabia a pena de prisão até 3 anos ou multa – na pena de 1 ano de prisão.

Face ao exposto, e pronunciando-nos, desde já, em relação à consideração pelos arguidos feita no sentido de haver “excesso de pena”, cabe referir que não se nos apresenta que assim tenha sucedido.

Com efeito, e antes de mais, nenhuma censura nos merece a decisão de não aplicação de “penas não privativas da liberdade” para os casos em que se previa tal alternativa (ao abrigo do art. 64° do C.P.M.), pois que, perante a factualidade provada, muito fortes se apresentam as necessidades de prevenção geral, a evidenciar a total inadequação de tais penas (para os casos em que eram as mesmas passíveis de aplicação).

Por sua vez, verifica-se que os arguidos agiram com dolo directo e muito intenso, muito elevada sendo também a ilicitude da sua conduta, não se verificando que a seu favor se possa invocar qualquer circunstância atenuante ou que lhes seja favorável.

Com efeito, (e embora seja seu legítimo direito), não confessaram os factos, inexistente sendo assim qualquer possibilidade de se considerar haver (eventual) arrependimento em relação à sua conduta, tornando, desta forma, também fortes as necessidades de prevenção especial.

E, nesta conformidade, atentas as molduras penais em questão, e os critérios do art. 40°, 65° e 71° do C.P.M., não se mostram de considerar excessivas as penas parcelares e única fixadas, sendo, também nesta parte, de se julgar improcedentes os recursos dos arguidos.

Como já tivemos oportunidade de considerar, “A necessidade de salvaguardar a confiança dos cidadãos numa administração pública que sirva com neutralidade, objectividade e eficácia os interesses gerais, (públicos e comuns), reclama uma sanção penal que dê um sinal claro de “intransigência” perante os crimes relacionados com “abusos de funções públicas” como a “corrupção”, o “abuso de poder” e todas as outras formas de exercício ilegal de funções públicas.
Decididamente, não pode ser um “crime de baixo risco e fácil/alto rendimento”, havendo antes que ser um “crime de alto risco e firme punição”; (cfr., v.g., os Acs. de 08.06.2017, Proc. n.° 310/2017 e de 28.09.2017, Proc. n.° 638/2017).

E, dito isto, impõe-se consignar que verificados (também) não estão os pressupostos legais do art. 48° do C.P.M. para que se possa decidir por uma eventual suspensão da execução das penas aplicadas.

Sobre a matéria já teve este T.S.I. oportunidade de dizer que:

“O artigo 48º do Código Penal de Macau faculta ao juiz julgador a suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido quando:
– a pena de prisão aplicada o tenha sido em medida não superior a três (3) anos; e,
– conclua que a simples censura do facto e ameaça de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (cfr. Art.º 40.º), isto, tendo em conta a personalidade do agente, as condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste.
E, mesmo sendo favorável o prognóstico relativamente ao delinquente, apreciado à luz de considerações exclusivas da execução da prisão não deverá ser decretada a suspensão se a ela se opuseram as necessidades de prevenção do crime”; (cfr., v.g., os Acs. deste T.S.I. de 26.10.2017, Proc. n.° 762/2017, de 11.01.2018, Proc. n.° 1157/2017 e de 26.04.2018, Proc. n.° 228/2018).

E, constatadas as “fortes necessidades de prevenção criminal”, à vista está a solução.

Tudo visto, resta decidir.

Decisão

4. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam negar provimento aos recursos.

Pagarão os (1° e 2°) arguidos AXX e BXX, a taxa de justiça (individual) de 10 UCs.

Registe e notifique.

Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.

Macau, aos 25 de Outubro de 2018

(Relator)
José Maria Dias Azedo

(Primeiro Juiz-Adjunto)
Chan Kuong Seng

(Segunda Juiz-Adjunta)
Tam Hio Wa
Proc. 570/2018 Pág. 48

Proc. 570/2018 Pág. 49