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Processo nº 407/2016
Data do Acórdão: 08NOV2018


Assuntos:

Autorização de permanência
Arquivamento do processo-crime
Perigosidade à ordem e seguranças da RAEM


SUMÁRIO

A não iniciação ou a não prossecução do procedimento penal contra o agente dos factos susceptíveis de preencher o tipo de um crime semi-público que se não funda na falta da dignidade penal desses factos ou na falta dos indícios suficientes da prática desses factos, mas sim na simples falta da legitimidade do Ministério Público para promover o processo penal ou na desistência da queixa por parte do ofendido, respectivamente, não deve ser tida em conta, por carecer de qualquer relevância, para o efeito da avaliação da conduta daquele agente dos factos com vista à formulação do juízo prognóstico sobre a eventual perigosidade da sua permanência à ordem e segurança públicas da RAEM.


O relator



Lai Kin Hong

Processo nº 407/2016

I

Acordam na Secção Cível e Administrativa do Tribunal de Segunda Instância da RAEM

A, devidamente identificado nos autos, vem recorrer da decisão do Secretário para a Segurança que, em sede de recurso hierárquico necessário, manteve a decisão do Comandante do Corpo de Polícia de Segurança Pública, que lhe revogou a autorização de permanência na qualidade de trabalhador não residente, concluindo e pedindo:
  1.ª - A decisão ora recorrida, ao ter desconsiderado e não valorado o arquivamento dos autos pelo Ministério Público em 2 DEZ 2015, fez errada interpretação e aplicação quer do art. 4.º, n.º 2, al. 3) da Lei 4/2003 de 17 MAR - tal como consta como fundamento de direito do projecto de decisão - quer da al. 3) do n.º 1 do art. 11.º da Lei 6/2004 que, em sede da decisão ora recorrida, surge como novo fundamento de direito, alterando o fundamento de direito anteriormente invocado em sede de projecto de decisão ... !
  2.a - Consequentemente, a decisão a quo configura-se como um acto anulável, ex vi do art. 124.º do C.P.A., invalidade que aqui se invoca como fundamento específico para a sua revogação por V. Ex.as, conforme o permitem, entre outros, o art. 20.º e a al. d) do n.º 1 do art. 21.º do C.P.A.C.
  3.ª - Invoca-se também a viciação do acto recorrido por um vício de violação de lei atenta a errónea interpretação e aplicação da lei - ou seja, quer do art. 4.°, n.º 2, al. 3) da Lei 4/2003 de 17 MAR quer da al. 3) do n.º 1 do art. 11.° da Lei 6/2004 - ao desconsiderar a manifesta falta superveniente de um pressuposto de facto essencial (a existência de uma situação de perigo para a “segurança ou ordem pública” de Macau), o que se invoca nos termos e para os efeitos dos artigos 124.º do C.P.A. e da al. d) do n.º 1 do art. 21.º do C.P.A.C.
NESTES TERMOS,
deverá ser dado provimento ao presente recurso, determinando-se a anulação do acto recorrido, atento os vícios de violação de lei invocados geradores da sua anulabilidade.

Citado, veio o Secretário para a Segurança contestar pugnando pela improcedência do recurso – vide as fls. 25 a 30 dos presentes autos.

Apenas o recorrente apresentou as alegações facultativas, reiterando grosso modo as razões de facto e de direito já invocadas na petição de recurso.

Em sede de vista final, o Dignº Magistrado do Ministério Público opinou no seu douto parecer pugnando pelo não provimento do presente recurso - vide as fls. 54 a 55v dos presentes autos.

Colhidos os vistos, cumpre conhecer.

O Tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia.

O processo é o próprio e inexistem nulidades e questões prévias que obstam ao conhecimento do mérito do presente recurso.

Os sujeitos processuais gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade.

De acordo com os elementos existentes nos autos, é tida por assente a seguinte matéria de facto com relevância à decisão do presente recurso:

* O recorrente A é cidadão da China interior e titular do Título de Identificação de Trabalhador não Residente;

* Na sequência da aquisição de uma notícia de crime contra o recorrente, foi aberto o inquérito no âmbito do qual o recorrente foi constituído como arguido;

* Encerrado o inquérito, em 30JUL2015, foi deduzida acusação contra o recorrente, a quem foi imputada a prática de um crime de ofensa simples à integridade física, p. e p. pelo artº 137º do CP;

* No âmbito do procedimento administrativo de autorização de permanência, decorrido no seio da PSP, o recorrente foi notificado em 29OUT2015 para se pronunciar no prazo de 10 dias sobre a eventual revogação da autorização de permanência que lhe foi concedida com validade até 20OUT2016, com fundamento na existência dos fortes indícios da prática pelo recorrente de um crime de ofensa à integridade física;

* Por despacho do Magistrado do Ministério Público, datado de 02DEZ2015, foi determinado, com fundamento na desistência da queixa da ofendida e não oposição do arguido, ora recorrente, que: 基於此,本人決定根據《刑事訴訟法典》第259條第1款之規定將本案歸檔。同時,本人廢止卷宗第42頁及其背之控訴書。

* Por despacho datado de 13JAN2015 do Comandante da PSP, foi-lhe revogada a autorização de permanência;

* Inconformado com o despacho, o recorrente interpôs recurso hierárquico necessário para o Secretário para a Segurança;

* Em 08ABR2016, o Secretário para a Segurança proferiu o seguinte despacho julgando improcedente o recurso hierárquico e mantendo a revogação da autorização de permanência:

DESPACHO
Assunto: – Recurso hierárquico necessário
  – Revogação de autorização de permanência, na qualidade de trabalhador
Recorrente: A
O cidadão acima referenciado recorre do despacho de 13.01.2016, do Senhor Comandante do Corpo de Polícia de Segurança Pública, que determinou a revogação da respectiva autorização de permanência, na qualidade de trabalhador.
Na sua petição de recurso, o Recorrente alega, no essencial, que o acto impugnado teve por base ‶a existência de um despacho de acusação do M.P., pela suposta prática de um crime de ofensa à integridade física, p.p. pelo art. 137.º do Código Penal.″ Ora, o Recorrente entende que, como o processo penal foi arquivado pelo Ministério Público em 2.12.2015, deixou de existir base para o acto impugnado, devendo o mesmo ser revogado.
Compulsado o processo, verifico que, efectivamente, no caso concreto do Recorrente, a autoridade judiciária decretou o arquivamento do processo penal. Todavia, esse arquivamento não foi proferido ao abrigo da primeira ou segunda situações previstas no n.º 1 do artigo 259.º do Código Penal (isto é, não se ter verificado crime ou o arguido não o ter praticado a qualquer título); o arquivamento teve lugar por força da terceira situação prevista naquele normativo, ou seja, por ‶não ser legalmente inadmissível o procedimento″ (no caso, por falta de queixa). O que significa que o arquivamento do processo penal, nos termos em que foi proferido, em nada destruiu, ou sequer beliscou, o juízo de perigosidade sobre o Recorrente, que está ínsito no acto impugnado, na respectiva motivação e fundamentação.
Por outro lado, o procedimento que conduziu à revogação da autorização de permanência não é um mero sub-procedimento do processo penal e que dele esteja absolutamente dependente: é um procedimento administrativo autónomo. Neste tipo de procedimento administrativo, o que está em causa é a adopção de medidas securitárias – que não têm natureza não penal, nem sequer sancionatória –, tendentes a assegurar a boa ordem e tranquilidade públicas, afastando-se da RAEM ou recusando-se a entrada na RAEM de pessoas que constituem perigo para esses bens jurídicos; não está em causa a responsabilidade penal do recorrente.
Assim, o que se mostra realmente relevante, e está suficientemente comprovado, no processo, é que o trabalhador não residente A, em 3.10.2014, cerca das 9h 00, junto ao edifício industrial XX, na zona do Fai Chi Kei, em Macau, agrediu várias vezes na cara e noutras partes do corpo, uma outra pessoa, levando a que a mesma caísse ao chão e ficasse com marcas das agressões no corpo.
Essa conduta demonstra, objectivamente, que o Recorrente é pessoa que constitui perigo para a ordem e segurança públicas, e nessa medida, a situação enquadra-se na previsão da alínea 3) do n.º 1 do artigo 11.º da lei n.º 6/2004.
Ora, no n.º 1 do artigo 15.º do Regulamento Administrativo n.º 8/2010, prevê-se que a autorização de permanência, na qualidade de trabalhador, pode ser revogada quando se verifiquem os pressupostos previstos na lei para a revogação da autorização de permanência de quaisquer não residentes.
Deste modo, tudo ponderado, afigura-se que o acto administrativo impugnado está devidamente fundamentado, quer de facto quer de direito, razão pela qual decido confirmá-lo, negando provimento ao presente recurso.
Gabinete do Secretário para a Segurança da Região Administrativa Especial de Macau, aos 08 de Abril de 2016.

* Pessoalmente notificado do despacho em 27ABR2016 e inconformado com o mesmo, o recorrente interpôs o presente recurso contencioso de anulação mediante o requerimento que deu entrada na Secretaria do TSI em 27MAIO2016.

Antes de mais, é de salientar a doutrina do saudoso PROFESSOR JOSÉ ALBERTO DOS REIS de que “quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão” (in CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ANOTADO, Volume V – Artigos 658.º a 720.º (Reimpressão), Coimbra Editora, 1984, pág. 143).

Conforme resulta do disposto nos artºs 563º/2, 567º e 589º/3 do CPC, ex vi do artº 1º do CPAC, são as conclusões do recurso que delimitam o seu objecto, salvas as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras e as que sejam de conhecimento oficioso.

Apesar de ter alegado a falta ou insuficiência de investigação por parte da entidade administrativa no âmbito do procedimento administrativo, as questões concretamente levadas às conclusões do recurso e nelas delimitadas são apenas as seguintes:

1. Da não valoração do arquivamento do processo penal; e

2. Da violação da lei.

E portanto, só estas duas questões é que constituem o objecto da nossa apreciação.

Então vejamos.

1. Da não valoração do arquivamento do processo penal

O recorrente entende que “a decisão ora recorrida, ao ter desconsiderado e não valorado o arquivamento dos autos pelo Ministério Público em 2 DEZ 2015, fez errada interpretação e aplicação quer do art. 4.º, n.º 2, al. 3) da Lei 4/2003 de 17 MAR - …… - quer da al. 3) do n.º 1 do art. 11.º da Lei 6/2004, ……”.

Ao que parece que, o recorrente está a confundir as duas coisas distintas, ou tentar confundir o Tribunal, ao dizer que o arquivamento dos autos foi desconsiderado e não foi valorado.

Uma coisa é a simples não valoração, ou seja, um non facere.

Outra é a valoração no sentido diverso do que pretendia o recorrente.

Talvez o que quer dizer o recorrente seja que o tal arquivamento não foi valorado no sentido que pretendia!

Na verdade, ao contrário do que disse o recorrente, conforme se vê no acto recorrido, o arquivamento do processo-crime foi efectivamente tido em conta e valorado no sentido de que em nada influía na formulação do juízo de perigosidade do recorrente à ordem e à segurança pública da RAEM.

In casu, está em causa o crime de ofensa simples à integridade física, cujo procedimento penal depende de queixa – artº 137º do CP.

Tratando-se de um crime semi-público, a falta de queixa, por renúncia ou por não apresentação oportuna, obsta ao início do procedimento penal, e a desistência da queixa já apresentada, sem oposição do arguido, até à publicação da sentença da 1ª instância, implica a extinção do procedimento criminal.

Qualquer que seja a hipótese, está em jogo uma questão da legitimidade do Ministério Público para a promoção ou a prossecução da acção penal, e nunca um juízo sobre a censurabilidade ou não da conduta do agente dos factos.

Ou seja, a não iniciação ou não prossecução do procedimento penal não se funda na falta da dignidade penal dos factos, mas sim na falta da legitimidade do Ministério Público para a promoção do processo penal.

Obviamente, a extinção do procedimento penal por desistência da queixa por parte da ofendida não pode ter qualquer relevância na avaliação da conduta do ora recorrente, para formular o juízo prognóstico sobre a eventual perigosidade da sua permanência na RAEM à ordem e segurança públicas da RAEM.

Portanto, ao não dar qualquer relevância ou valor à extinção do procedimento penal por desistência válida da queixa por parte da ofendida, na formulação do juízo prognóstico sobre a perigosidade do recorrente à ordem e segurança pública da RAEM, a Administração não andou mal e portanto não merece de qualquer censura.

2. Da violação da lei

O recorrente defende a viciação do acto recorrido por violação da lei.

Na sua óptica, a viciação consiste em desconsiderar a manifesta falta superveniente de um pressuposto de facto essencial (a existência de uma situação de perigo para a segurança ou ordem pública de Macau).

Só com alguns esforços e com o recurso à leitura das alegações do recurso, não sintetizadas nas conclusões, é que podemos perceber afinal qual foi a questão que o recorrente delimitou nas conclusões do recurso.

O recorrente alega que …… não tomou em consideração todos os factos posteriores, mormente o da espontânea remoção por acção queixa por parte da pessoa que se havia arrogado ofendida da pretensa fonte de perigo que ab initio poderia eventualmente ter fundado e legitimado a decisão a quo – vide artº 33º da petição de recurso.

Ao que parece, o recorrente está a invocar o erro nos pressupostos de facto, por entender que a desistência da queixa por parte da ofendida fez cessar supervenientemente o perigo para a segurança ou ordem pública da RAEM.

Ora, a mesma questão já foi por nós tratada supra, onde já demonstrámos a irrelevância da extinção do procedimento penal ao juízo prognostico sobre a eventual perigosidade da permanência do recorrente à ordem e segurança públicas.

Assim, é de dar aqui por integralmente reproduzidas as razões já por nós expostas supra para julgar improcedente esta parte do recurso.



Em conclusão:

A não iniciação ou a não prossecução do procedimento penal contra o agente dos factos susceptíveis de preencher o tipo de um crime semi-público que se não funda na falta da dignidade penal desses factos ou na falta dos indícios suficientes da prática desses factos, mas sim na simples falta da legitimidade do Ministério Público para promover o processo penal ou na desistência da queixa por parte do ofendido, respectivamente, não deve ser tida em conta, por carecer de qualquer relevância, para o efeito da avaliação da conduta daquele agente dos factos com vista à formulação do juízo prognóstico sobre a eventual perigosidade da sua permanência à ordem e segurança públicas da RAEM.

Resta decidir.

III

Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em conferência julgar improcedente o recurso.

Custas pelo recorrente, com taxa de justiça fixada em 8 UC.

Registe e notifique.

RAEM, 08NOV2018

Lai Kin Hong
Fong Man Chong
Ho Wai Neng
Fui presente
Joaquim Teixeira de Sousa
407/2016-12