Processo nº 990/2017
Data do Acórdão: 25OUT2018
Assuntos:
Arguição da nulidade de sentença
Insolvência
SUMÁRIO
1. Em regra, da nulidade processual cabe arguição perante o Tribunal a que se imputa a inobservância de regras processuais, geradora da nulidade; e da decisão judicial cabe recurso ordinário para o Tribunal superior;
2. Todavia, se a nulidade processual só puder vir a ser detectada numa altura em que já se tenha esgotado o poder de julgar do autor da inobservância de regras processuais, nomeadamente na situação em que a nulidade só é detectável ou cognoscível com a publicação da sentença final de uma determinada instância, a nossa lei permitirá excepcionalmente a sua arguição, por via de recurso ordinário, perante o Tribunal superior, desde que seja recorrível a decisão judicial que contém a nulidade processual ou em que é detectada a nulidade processual. E neste último caso, o Tribunal superior conhece directamente da nulidade em sede de recurso;
3. Não se mostra violado o princípio do contraditório, se o Tribunal fundamentar a sua decisão sobre as questões concretamente suscitadas pelas partes nas razões de facto e de direito, não expectáveis portanto não trazidas pelas partes, mas extraíveis da lógica das coisas, de doutrinas jurídicas e dos normativos reguladores da matéria controvertida, desde que as tais razões sejam invocadas pelo Tribunal para justificar uma das soluções juridicamente plausíveis do pleito que as partes podiam perfeitamente contar; e
4. A expressão “quando o activo do seu património seja inferior ao passivo”, utilizada no artº 1185º do CPC, como requisito de cuja verificação depende a declaração de um devedor no estado de insolvência, em si não é um facto material, directamente susceptível de constituir o thema probandum, mas sim um juízo conclusivo que carece de ser sustentado pelos factos materiais concretos. Para formular este juízo, pode o Tribunal fazer ilação dos factos materiais índice, essenciais e/ou instrumentais, capazes de sustentar tal juízo conclusivo da carência dos meios financeiros para pagar as dívidas.
O relator
Lai Kin Hong
Processo nº 990/2017
Acordam na Secção Cível e Administrativa do Tribunal de Segunda Instância da RAEM
I
No âmbito dos autos do processo de insolvência nº CV3-16-0003-CFI, de que é requerente B Casino, S.A. e requerido C, ambos devidamente identificados nos autos, foi afinal proferida a sentença julgando improcedente o pedido de declaração de insolvência:
I) RELATÓRIO
B Casino, S.A. (B娛樂場股份有限公司), com sede em Macau, na Alameda ......, nºs...-..., Centro Comercial do ......, ...º andar, registada na Conservatória do Registo Comercial e de Bens Móveis sob o n.º 1XXXX(SO), vem intentar a presente
DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA contra
C (C), divorciado, titular do BIR n.º 50XXXXX(X), com último morada conhecida em Macau, na Rampa ......, nºs ...-..., ......, Bloco ..., Regal ......, ...º andar ..., Taipa
com os fundamentos apresentados constantes da p.i., de fls. 2 a 18.
Concluiu pedindo que seja julgada procedente, por provada, e em consequência, requer-se seja declarada a Insolvência do Requerido C (C), com as legais consequências, seguindo-se os demais termos até final.
***
O Requerido contestou a acção com os fundamentos constantes de fls. 782 a 806 dos autos.
Concluiu pedindo que sejam julgados improcedentes os pedidos da Requerente.
***
Foi realizado o julgamento com a intervenção do Tribunal Colectivo.
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O Tribunal é competente em razão da matéria, hierarquia e internacionalmente e o processo é próprio.
As partes gozam de personalidade e capacidade jurídicas e são legítimas.
Não existem excepções, nulidades ou outras questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
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II) FACTOS
Dos autos resulta assente a seguinte factualidade com interesse para a decisão da causa:
- A B Casino, S.A., ora Requerente, é uma sociedade que se dedica à exploração de jogos de fortuna ou azar ou outros jogos em casino e, ainda, à prática de actos inerentes a tal actividade, incluindo a concessão de crédito para jogo. (Artigo 1º)
- No exercício da sua actividade, a ora Requerente celebrou em 1 de Janeiro de 2016, dois contratos de promoção de jogo, com a Sociedade Promoção de Jogos YY Limitada, registada na CRCBM sob o nº2XXXX(SO) (doravante, a “YY”) e a Sociedade Promoção de Jogos ZZ Limitada, registada na CRCBM sob o nº3XXXX(SO) (doravante, a “ZZ”), respectivamente (doravante e conjuntamente, os “Contratos de Promoção de Jogo”), das quais o Requerido é administrador, mediante os quais as partes acordaram em estabelecer uma relação comercial, que consista, sucintamente, na promoção do negócio do jogo por parte da YY e da ZZ, a ser realizada em salas destinadas a esse fim nos casinos da Requerente. (Artigo 2º)
- Nesse mesmo dia, a Requerente celebrou contratos de crédito de jogo com:
* a YY, mediante o qual a Requerente concedeu uma linha de crédito, na modalidade de crédito rotativo (em inglês, “revolving credit”), até ao limite máximo de HKD179.000.000,00, nos termos e condições aí acordados, válido para o período entre a sua celebração e o dia 31 de Dezembro de 2016 (doravante, o “Contrato A”); e
* a ZZ, mediante o qual foi concedida uma linha de crédito, na modalidade de crédito rotativo (em inglês, “revolving credit”), até ao máximo de HKD200.000.000,00, nos termos e condições aí acordados, válido para o período entre a sua celebração e o dia 31 de Dezembro de 2016 (doravante, o “Contrato B”). (Artigo 3º)
- Em virtude da celebração do Contrato A e do Contrato B (doravante, os “Contractos de Crédito para Jogo”), a Requerente colocou à disposição da YY e da ZZ, fichas de jogo, não negociáveis, para serem utilizadas por estas ou pelos seus clientes, com o intuito exclusivo de as mesmas serem jogadas nos casinos da Requerente aí melhor identificados. (Artigo 4º)
- A utilização das fichas de jogo acima referidas realizava-se a pedido das YY e ZZ, junto da Requerente, por meio de avisos de saque (em inglês, denominados “drawdown notices” ou “markers”), nos termos dos quais se definia a quantia mutuada e o respectivo período de pagamento. (Artigo 5º)
- A falta de pagamento de qualquer das quantias mutuadas nos termos supra descritos, implica o vencimento de juros convencionados à taxa mensal de 1,5%, calculados sobre o montante em dívida, desde a data de vencimento até integral e efectivo pagamento. (Artigo 6º)
- Em garantia de todas as importâncias que as YY e ZZ devessem ou viessem a dever por via dos contratos acima referidos, o Requerido outorgou uma garantia, datada de 3 de Março de 2016, pela qual se constituiu fiador, solidariamente responsável e principal pagador perante a Requerente, desde logo renunciando ao benefício da excussão prévia (doravante, a “Garantia”). (Artigo 7º)
- Ainda nessa data, o Requerido entregou à Requerente, para garantia do pagamento das obrigações por si assumidas ao abrigo dos Contratos de Promoção de Jogo e dos Contratos de Crédito para Jogo:
* o cheque nº HF3XXXXX, por si subscrito, sacado sobre o Bank of China, Sucursal de Macau, e uma declaração por si assinada segundo a qual expressamente autorizava a Requerente a preencher os elementos que estivessem em falta, in casu, a data da emissão do cheque e a quantia em dívida, em caso de incumprimento das obrigações assumidas; e,
* uma livrança por si subscrita, bem como o correspondente pacto de preenchimento. (Artigo 8º)
- Em 3 de Março de 2016, a requerente, previamente à emissão da declaração de compromisso, extraiu informações prediais referentes aos imóveis, verificou a sua situação jurídica e confirmou os direitos que o requerido detinha sobre os mesmos. (Artigo 10º)
- Nos termos do Contrato A, a YY utilizou a linha de crédito concedida pela Requerente e foi efectuando pagamentos parciais ao longo da relação; todavia, estão ainda em dívida, a título de capital, as quantias mutuadas melhor discriminadas na tabela infra, no valor global de HKD$112.000.000,00:
Aviso de saque n.º
Quantia mutuada em dívida
Data de emissão
CMK006628
HKD10.000.000,00
07-07-2016
CMK006724+1
HKD5.000.000,00
07-07-2016
CMK006726
HKD10.000.000,00
08-07-2016
CMK006727
HKD12.000.000,00
08-07-2016
CMK006630
HKD10.000.000,00
09-07-2016
CMK006914
HKD10.000.000,00
01-08-2016
CMK007020
HKD10.000.000,00
04-08-2016
CMK007119
HKD10.000.000,00
04-08-2016
CMK007025
HKD5.000.000,00
10-08-2016
CMK007027
HKD5.000.000,00
10-08-2016
CMK007029
HKD5.000.000,00
11-08-2016
CMK007216
HKD5.000.000,00
12-08-2016
CMK007030
HKD5.000.000,00
13-08-2016
CMK007217
HKD5.000.000,00
14-08-2016
CMK007031
HKD5.000.000,00
16-08-2016
(Artigo 12º)
- Nos termos do Contrato B, a ZZ utilizou a linha de crédito concedida pela Requerente e foi efectuando pagamentos parciais ao longo da relação; todavia, estão ainda em dívida, a título de capital, as quantias mutuadas melhor discriminadas na tabela infra, no valor global de HKD$200.000.000,00:
Aviso de saque n.º
Quantia mutuada em dívida
Data de emissão
GCMK057774
HKD10.000.000,00
08-07-2016
GCMK057886
HKD10.000.000,00
09-07-2016
GCMK057994
HKD10.000.000,00
09-07-2016
GCMK057995
HKD10.000.000,00
10-07-2016
GCMK057889
HKD10.000.000,00
11-07-2016
GCMK058144
HKD10.000.000,00
12-07-2016
GCMK058146
HKD10.000.000,00
13-07-2016
GCMK058057
HKD10.000.000,00
15-07-2016
GCMK058347
HKD10.000.000,00
15-07-2016
GCMK058245
HKD10.000.000,00
15-07-2016
GCMK058147
HKD10.000.000,00
15-07-2016
GCMK058058
HKD10.000.000,00
15-07-2016
GCMK058460
HKD10.000.000,00
09-08-2016
GCMK058561
HKD5.000.000,00
11-08-2016
GCMK058463
HKD5.000.000,00
11-08-2016
GCMK058769
HKD5.000.000,00
12-08-2016
GCMK058677
HKD5.000.000,00
12-08-2016
GCMK058563
HKD5.000.000,00
12-08-2016
GCMK058565
HKD5.000.000,00
12-08-2016
GCMK058770
HKD5.000.000,00
12-08-2016
GCMK058465
HKD5.000.000,00
13-08-2016
GCMK058772
HKD5.000.000,00
13-08-2016
GCMK058568
HKD5.000.000,00
13-08-2016
GCMK058685
HKD5.000.000,00
13-08-2016
GCMK058466
HKD5.000.000,00
13-08-2016
GCMK058686
HKD5.000.000,00
13-08-2016
GCMK058773
HKD5.000.000,00
14-08-2016
(Artigo 13º)
- As quantias mutuadas acima descritas correspondem aos valores das fichas de jogo, não negociáveis, que as YY e ZZ sacaram nos dias referidos para serem utilizadas por estas ou pelos seus clientes nos casinos da Requerente, constando de cada um dos avisos de saque o valor, o recibo de entrega das fichas e o respectivo prazo de pagamento das quantias assim mutuadas. (Artigo 14º)
- Nos termos dos contratos de promoção de jogo concedeu às YY e ZZ o acesso a determinados equipamentos e estabelecimentos dentro dos estabelecimentos da Requerente, para uso dos clientes das YY e ZZ, procedendo as partes a um acerto mensal entre a remuneração paga pela requerente e as despesas incorridas por aquelas. (Artigo 15º)
- Durante os meses de Agosto e Setembro de 2016 tal acerto não foi realizado, sendo que as despesas incorridas pela Requerente a este respeito e ainda por pagar, nomeadamente, quanto a alojamento, restauração, entretenimento, ascendem ao montante total de HKD1.451.132,00. (Artigo 16º)
- A Requerente levou a cabo diligências para ressarcimento das dívidas junto das YY e ZZ e dos garantes, ou de D e do requerido, tendo sido realizadas várias reuniões para tentar encontrar uma solução amigável, nomeadamente, em 5 de Setembro de 2016, sem que, todavia, tenham as partes logrado obter um plano de pagamento. (Artigo 18º)
- A requerente enviou missivas às partes, incluindo o requerido, exigindo o cumprimento pontual e integral das obrigações assumidas por este. (Artigo 19º)
- No dia 8 de Setembro de 2016, a Requerente enviou uma carta de interpelação às YY e ZZ, entregue e recebida em mãos no mesmo dia, denominada Plano de Reembolso (em inglês “Repayment Plan”) e relativa às dívidas assumidas nos termos do Contrato A e do Contrato B, nos termos da qual informa aquelas sobre o valor global em dívida (HKD312.000.000,00), faz cessar as linhas de crédito concedidas e exige o seu pagamento, bem como, concede prazo até 9 de Setembro de 2016 para a conclusão de quaisquer negociações entre as partes, sob pena de a ora Requerente levar a cabo todas as diligências legais tidas por necessárias para a recuperação do seu crédito. (Artigo 20º)
- As Mutuárias nada disseram sobre o assunto. (Artigo 21º)
- No dia 12, 13 e 14 de Setembro de 2016, a Requerente remeteu, por intermédio da sua mandatária constituída, cartas de interpelação às YY e ZZ, bem como ao ora Requerido e a D (D), enquanto garantes, informando-os do incumprimento das obrigações contratualmente assumidas, do montante em dívida e exigindo pagamento integral do mesmo no prazo máximo aí fixado, sob pena de levar a cabo todas as diligências legais tidas por necessárias para a recuperação do seu crédito. (Artigo 22º)
- No dia 12 de Setembro de 2016, foi ainda enviada mensagem telefónica, via Whatsapp, para o número telefónico do Requerido, que a recebeu e leu, com o conteúdo da carta. (Artigo 23º)
- De entre os interpelados apenas o Requerido reagiu à interpelação da Requerente, tendo-se limitado a responder “OK, 謝謝!”. (Artigo 24º)
- A Requerente interpelou o ora Requerido, por carta datada de 9 de Setembro de 2016, por via da qual requereu esclarecimentos no que concerne aos Imóveis e quanto às transacções que este, ao arrepio do acordado com aquela, efectuou sobre os mesmos, sem conhecimento ou autorização da Requerente, tendo-lhe concedido o prazo máximo de 5 dias para depositar o produto líquido recebido, sob pena de esta levar a cabo todas as diligências legais tidas por necessárias para a recuperação do seu crédito. (Artigo 25º)
- Na sequência desta missiva, o Requerido nada disse, esclareceu, alegou ou depositou, o que, atendendo à importância do compromisso por ele assumido e ao valor presumível dos Imóveis. (Artigo 26º)
- Uma vez que a Requerente não recebeu qualquer pagamento até 21 de Setembro de 2016, ainda nesse dia preencheu a data de emissão e o valor do cheque emitido pelo Requerido nos termos acordados na Garantia e respectivo pacto de preenchimento, no valor de HKD312.000.000,00 e apresentou-o a pagamento, junto do Banco OCBC Wing Hang Bank Limited. (Artigo 27º)
- Cheque esse que foi, no dia 22 de Setembro de 2016, devolvido pela instituição financeira sacada com a menção “Insuficiência de Fundos”. (Artigo 28º)
- O que deu origem à apresentação, no dia 23 de Setembro de 2016, de queixa-crime, junto da Polícia Judiciária, autuada sob o n.º3376/2016. (Artigo 29º)
- A Requerente, em 28 de Setembro de 2016, preencheu e apresentou a pagamento a livrança subscrita pelo Requerente (no valor de HKD317.819.132,00), tendo sido lavrado o competente instrumento de protesto em 7 de Outubro de 2016. (Artigo 30º)
- Não obstante as diversas diligências acima descritas, até à presente data, a Requerente não obteve ressarcimento dos seus créditos. (Artigo 31º)
- A liquidação das quantias em dívida, com referência a 7 de Outubro de 2016, ascende aos montante de:
* HKD203.687.580,65, correspondente a HKD200.000.000,00, a título de capital e a HKD3.687.580,65, a título de juros vencidos, calculados à taxa mensal acordado de 1,5% desde 1 de Setembro até 7 de Outubro de 2016, ao qual acrescem juros vincendos até integral pagamento;
* HK$114.065.045,16, equivalente a HKD112.000.000,00, a título de capital e a HKD2.065.045,16, a título de juros vencidos, calculados à taxa mensal acordada de 1,5% desde 1 de Setembro até 7 de Outubro de 2016, ao qual acrescem juros vincendos até integral pagamento; e
* HKD1.451.132,00, a título de capital. (Artigo 33º)
- A 19 de Agosto de 2016, os direito que o Requerido detinha sobre os 26 imóveis referidos no doc. 66, foram por ele cancelados junto da Conservatória do Registo Predial, sem autorização ou conhecimento prévio da Requerente, indicando este meramente não ter mais interesse na manutenção dos mesmos. (Artigos 36º e 37º)
- No fim de Agosto de 2016, a ZZ chegou a informar a requerente que iria cessar a sua actividade na sala VIP do casino B a partir de 13 de Setembro de 2016. (Artigo 19º da resposta)
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III) FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
Cumpre analisar os factos e aplicar o direito.
A requerente invocou que é credora do requerido no montante de HK$319.203.757,81, a título de capital e juros, interpelado o requerido para o pagamento, não tendo este procedido ao seu pagamento, apresentado ao a pagamento o cheque subscrito pelo requerido, tendo o cheque devolvido por insuficiência de fundos, o requerido assinou, em 8/4/2016, uma declaração de compromisso, comprometendo a alienar os imóveis com vista ao pagamento da dívida, mas a 19/08/2016, verificou que com excepção das três lojas, o requerido deixou de ser titular do direito sobre os 26 imóveis, com fundamento da inferioridade do activo do requerido em relação passivo, da incumprimento das obrigações e da dissipação dos bens, pretende que o requerido seja declarado insolvente.
Na resposta, o requerido, para além de impugnar os factos alegados pela requerenete, alegando que a requerente encerrou por sua iniciativa as duas salas de jogo “YY” e “ZZ”, com a cessação da exploração da actividade de jogo, impossibilitando-lhes e o requerido a obter rendimentos para pagar a dívida, ao requerer a declaração da insolvência do requerido com o fundamento de não pagamento da dívida, está a requerente a agir com abuso do direito, e que no momento da celebração dos contratos de promoção e jogo e de concessão de crédito com “YY” e “ZZ”, assim como a exigir o requerido a prestar garantia para pagamento das dívidas derivadas destas duas salas de jogos, a requerente impus unilateralmente as cláusulas contratuais, não aceitando quer as “YY” “ZZ” quer o requerido a negociar ou modificar o respectivo teor.
*
Ao abrigo do disposto do art°1189° do C.P.C., “O credor que pretenda a declaração da insolvência deduz os fundamentos do pedido, justificando a existência do seu crédito e oferecendo logo as provas de que pretende usar.”
A noção do estado de insolvência está consagrado no artº1185º do C.P.C., “O devedor que não seja empresário comercial pode ser declarado em estado de insolvência quando o activo do seu património seja inferior ao passivo.”
Flui do preceito acima referido a declaração da insolvência está condicionada com a verificação de dois pressupostos: a existência do crédito pelo credor e a inferioridade do activo em relação ao passivo do devedor.
Vamos analisar, em primeiro lugar, se no caso em apreço ocorrerão esses dois requisitos.
Crédito da requerente
Segundo os factos assentes, vem comprovado que foram concedidos pela requerente às “YY” e “ZZ” o montante de HK$112.000.000,00 e HK$200.000.000,00, no período entre 07/07/2016 a 16/08/2016, mas estas não procederam ao seu pagamento. Portanto, a requerente é credora das “YY” e “ZZ” no valor supra referido. Quanto ao requerido, este assumiu como fiador perante a requerente para pagamento das quantias concedidas às salas de jogos referidos por via dos dois contratos de concessão de crédtios, tendo assinado uma garantia em 3 de Março de 2016.
Nos termos do n°1 do art°623° do C.C., “O fiador garante a satisfação do direito de crédito, ficando pessoalmente obrigado perante o credor.”
Dispõe-se o n°1 do art°634° que ao fiador é lícito recusar o cumprimento enquanto o credor não tiver excutido todos os bens do devedor sem obter a satisfação do seu crédito. Porém, o fiador não pode invocar os benefícios da excussão se tiver o renunciado, ao abrigo do disposto da alínea a) do art°636° do C.C..
No caso em apreço, o requerido foi constituído como fiador, tendo assumido solidariamente e como principal pagador das dívidas contraídas pelas “YY” e “ZZ” e renunciado o benefício de excussão,
Portanto, desde que as dívidas que as duas salas de jogo “YY” e “ZZ” têm perante a requerente não se mostrem liquidadas, tem a requerente o direito de exigir ao requerido o seu pagamento.
Segundo a matéria fáctica apurada, os créditos concedidos pela requerente às “YY” e “ZZ” foram feitos no período compreendidos entre 07/07/2016 e 16/08/2016. De acordo com os recibos de levantamento constantes de fls. 183 a 399, consta que a data de devolução dos créditos é de 32 dias a contar da data da emissão dos respectivos recibos. Pelo que todos os créditos reclamados pela requerente se encontram vencidos.
Portanto, o requerido é devedor da requerente no montante alegado.
Inferioridade do activo do requerido em relação ao passivo
Quanto ao passivo, conforme o que vem descrito acima, o requerido é devedor da requerente no montante de HK$312.000.000,00, a qual é acrescido dos juros contados a partir da data de vencimento.
À data de 7 de Outubro de 2016, a dívida total já ascendeu ao montante de HKD317.752.625,81, No entanto, à data de encerramento da audiência, os juros já ascendem à HKD44.920.109,59. Assim, a dívida do requerido já é de HKD$364.920.109,59. Esse é passivo do requerido.
No que diz respeito ao activo do património do requerido, alegou a requerente que o requerido, na outorga da declaração do compromisso em 8 de Abril de 2016, tinha os direitos sobre os imóveis aí referidos, porém, a 19 de Agosto de 2016, o requerido deixou de ser titular dos direitos sobre 26 imóveis, visto os respectivos registos foram cancelados por este sem deu conhecimento àquela.
Conforme os factos assentes, ficou provado, efectivamente, que em 3 de Março de 2016, o requerido detinha os direitos sobre os imóveis indicados na declaração do compromisso. (cfr. fls. 83 a 84) e que a 19 de Agosto de 2016, os direitos que o requerido detinha sobre 26 dos imóveis referidos foram cancelados junto da conservatória do registo predial.
Esses imóveis são os únicos bens conhecidos nos autos para apurar o activo do requerido.
Na lista anexada à declaração do compromisso prestada pelo requerido, os imóveis que o requerido tem dividem-se em três categorias: lojas, habitações e parqueamento. Em relação às lojas, nada consta dos autos que a propriedade das mesmas foi transmitida pelo requerido a terceiro.
No que diz respeito aos restantes 26 imóveis (habitações e lugar de estacionamento), diz a requerente que o requerido já deixou de ser titular de direito sobre esses imóveis. Será? Conforme o teor dos documentos de fls. 402 a 750, os registos provisórios do direito de aquisição de que o requerido detinha sobre 26 imóveis indicados na declaração de compromisso foram efectivamente cancelados. Mas, analisado o motivo de cancelamento nele invocado, só em relação à fracção autónoma “Z10” (fls. 468) em que demonstra inequivocamente que o direito do requerido tinha cedido ao terceiro, e por essa causa foi cancelado o registo provisório. Em relação aos outros 25 imóveis, não foi relevado qual é causa de cancelamento, pois o requerente apenas justificou o acto por não ter interesse na manutenção do registo provisório. O registo provisório ou definitivo sobre a aquisição é facultativo e não obrigatório, o não registo da aquisição não implica, necessariamente, que o titular deixa de ser direito de aquisição sobre os imóveis. De facto, a renúncia, por parte do requerido, da garantia concedida pelo registo predial, não é normal, todavia, desse comportamento não se permitir deduzir que o requerido já não é titular dos direitos sobre os imóveis, visto que o direito de aquisição prova-se com o acordo escrito, sua validade não dependendo da existência do registo provisório. Assim, a transmissão do direito de aquisição pelo requerido a terceiro só pode estar inequivocamente demonstrada por documento lavrado para esse efeito, sem o qual não podemos concluir que o requerido cessou, efectivamente, o seu direito a terceiro ou não é titular dos mesmos direitos sobre os respectivos imóveis.
Nem com o facto de o requerido ter passado, em 10 de Outubro de 2014 procuração com poderes especiais a favor do indivíduo conhecido por “F” em relação aos 26 imóveis, podemos concluir que o requerido já não é titular dos respectivos direitos. A procuração é um acto unilateral para conferir o poder da celebração do negócio jurídico em nome doutrem. Acontece que, nas chamadas procurações com poderes especiais, ao representante são conferidos amplos poderes de representação e que o representante até poderá, por via da procuração, agir em nome do requerido mas por interesse próprio, nomeadamente, a vender o bem a si próprio ou a terceiro e a receber o valor da venda, nesses casos, o terceiro munido das procurações, poderá agir como fosse o verdadeiro titular do direito. A transmissão dos direitos sobre os imóveis por via da outorga da procuração com poderes especiais é também uma prática conhecida na área imobiliária. A passagem da procuração poderá ser mero acto de conferir o poder para representação e poderá não ser. Portanto, com a mera passagem da procuração com poderes especiais pelo representado, sem outros suportes fácticos, não é suficiente para concluir, inequivocamente, que, por trás da procuração existe um verdadeiro acto translativo do direito. Aliás, mesmo que seja passada a procuração, até que o procurador use, efectivamente, a faculdade conferida para a transmissão dos imóveis, os direitos sobre os mesmos manter-se-ão na esfera jurídica do representado. Portanto, sem a prova da efectiva cessão da posição contratual, não permite concluir que o requerido já não é titular do direito em relação aos respectivos imóveis, excepto a fracção Z10.
Esclarecida está o património que o requerido tem, resta saber o valor dos desses imóveis com vista a determinar se o activo é inferior ao passivo.
A requerente, no requerimento inicial, alega somente que estes imóveis são insuficientes para fazer face ao seu compromisso, porém, não foi alegado qual é o valor desses imóveis.
De acordo com as cópias das certidões do registo predial juntos aos autos a fls. 402 a 750 em relação às habitações e lugar de estacionamento, constata apenas que essas fracções autónomas têm o valor abaixo indicado nas seguintes datas:
Fracção autónoma
Valor
Data
S21
$16,342,684.00
03/09/2008
T21
$16,256,698.00
03/09/2008
U21
$10,286,108.00
03/09/2008
X9
$13,249,808.00
25/03/2010
X18
$16,378,983.00
19/01/2012
S8
$13,261,500.00
26/05/2014
A21
$27,290,100.00
26/11/2012
B25
$31,089,310.00
14/03/2013
S22
$15,919,635.00
14/03/2013
U22
$10,026,115.00
14/03/2013
T25
$16,062,750.00
14/03/2013
U25
$10,188,490.00
14/03/2013
V25
$10,155,548.00
14/03/2013
T26
$16,138,375.00
14/03/2013
U26
$10,242,615.00
14/03/2013
V26
$10,209,498.00
14/03/2013
CV4-A3
$1,600,000.00
19/05/2014
CV4-A4
$1,600,000.00
19/05/2014
CV1-A13
$1,600,000.00
19/05/2014
CV4-A61
$1,600,000.00
09/04/2013
CV4-A65
$1,600,000.00
09/04/2013
CV4-A66
$1,600,000.00
09/04/2013
CV4-A85
$1,480,000.00
09/04/2013
CV4-A86
$1,480,000.00
09/04/2013
$255,658,217.00
Ou seja, o valor total das fracções autónomas acima referidas atinge a HKD$255.658.217,00.
No entanto, esse é apenas o valor dos bens referenciado às datas acima indicadas e não o valor actual do mercado. Pois, é conhecimento notário que o valor imobiliário tem vindo a subir bastante durante a última década. O valor actual dos respectivos imóveis deverão ser superior ao valor há três, quatro e setes anos, e a diferença não deverá ser pequena.
A isso acrescenta o facto de que em relação às três lojas identificadas na declaração de compromisso de fls.83 a 84 e ao estacionamento CV4-A5, nada consta dos autos sobre o valor dos mesmos, nem da altura, nem do actual. Do conhecimento do Tribunal, hoje em dia, o valor das lojas podiam valer umas dezenas até centena milhões. Sendo certo que o valor do imóvel varia consoante o local e a sua área. Todavia, na falta de elementos, a indicação do valor do imóvel nem a avaliação do valor actual, não poderá o Tribunal determinar qual é o valor desses imóveis.
Ora, o passivo do requerido atinge a HKD$364.920.109,59. Quanto ao activo do requerido, sabendo que 24 imóveis do requerido valia, pelo menos, HKD$255.658.217,00, repara-se que este também não é valor actual. A diferença entre esse activo e o passivo é de HKD$109.261.892,59. No entanto, o requerido é proprietário de mais quatro imóveis, (três lojas e um parqueamento), mas, desconhecemos qual é o valor destes bens, na falta desse elemento relevante, não podemos apurar o exacto valor do activo do requerido e não poderemos afastar a hipótese de o valor do mercado de todos os imóveis ser superior ao valor do passivo.
De qualquer modo, o credor tem o ónus de alegar e provar factos sobre a insuficiência do activo para satisfazer o passivo, perante a ausência da factualidade para apuramento do activo do património do requerido, impõe-se a decidir a matéria em desfavor da requerente, assim, entendemos que não se verificou o requisito da inferioridade do activo do requerido para satisfazer o passivo.
Falta de cumprimento das obrigações e dissipação dos bens
Para além do activo ser inferior ao passivo, invoca ainda a requerente como fundamentos da declaração da insolvência o incumprimento e da impossibilidade de ressarcimento e a dissipação dos bens, justificando a sua pretensão com o apelo ao disposto da alínea a) e d) do art°1082°, aplicável, ao presente caso, por força do artigo 1187° do C.P.C.,
Na óptica da requerente, ao requerido, embora seja pessoa singular, é aplicável igualmente os fundamentos de falência, para declarar a insolvência deste.
Não nos partilhamos com essa posição pugnada pela requerente.
Com efeito, a propósito da matéria da liquidação em favor dos credores, o Código de Processo Civil vigente tem seguido o regime adoptado pelo C.P.C. de 1961 de 1939, onde se reza a matéria em dois institutos: processo de falência e processo de insolvência.
Segundo ensinamento do Luís Manuel Teles de Meneses Leitão, a propósito da distinção entre a falência e insolvência regulada no âmbito do C.P.C. de 1939, o processo de falência distinguem-se do processo de insolvência em termos subjectivos e conceptuais, “Em termos subjectivos, a falência era vista como um instituto próprio dos comerciantes, em nome individual ou sociedades comerciais, enquanto que a insolvência aplicava antes aos devedores não comerciantes, fossem eles pessoas singulares ou colectivas, e abrangendo as sociedades civis, independentemente da sua forma. Em termos conceptuais, a falência era identificada como a impossibilidade de o comerciante solver os seus compromissos, enquanto que a insolvência era definida como a inferioridade do activo patrimonial em relação ao passivo”. (in Direito da Insolvência, 3ª ed., pg. 68)
De acordo com a definição consagrada no art°1043 do C.P.C., “o empresário comercial impossibilitado de cumprir pontualmente as suas obrigações considerar-se em estado de falência.”.
Face à diferente definição da falência e da insolvência prevista no art°1043° e 1185° do C.P.C., vê-se bem que a nossa lei processual também adopta os mesmos critérios para a distinção dos dois institutos.
Portanto, a falência é aplicável apenas aos empresários comerciais enquanto a insolvência destina-se aos não empresários comerciais, ambos os institutos têm como fundamentos factos-índices diferentes.
Frisa-se que a aplicação subsidiária das disposições do processo de falência ao da insolvência, por força do art°1187° do C.P.C., limita-se a parte não relacionadas com a empresa comercial.
Ora, o art°1082° do C.P.C. regulam os motivos de declaração da falência, conceito esse que só se aplica aos empresários comerciais, daí se resulta, como é patente, que esse preceito não é aplicável ao processo da insolvência.
“A impotência económica do comerciante para satisfazer pontualmente os seus compromissos, a qual caracteriza o estado de falência, não coincide com a insuficiência ou inferioridade do activo em relação ao passivo: uma pode existir sem a outra.” (Alberto dos Reis, in Processo Especiais, Vol. II- Reimpressão, pg. 350)
“Enquanto a insolvência se funda num cálculo aritmético, a falência pressupõe uma situação real ou iminente da impossibilidade de cumprir. O crédito é factor positivo na falência e é praticamente irrelevante na insolvência” (Ac. S.T.J. de 22/05/1973, BMJ, 227, 105)
Diferente do estado de falência cujo fundamento se reside na inviabilidade económica da empresa. O fundamento do pedido de insolvência alicerça-se simplesmente na insuficiência do activo para satisfazer o passivo.
Para obter a declaração da insolvência, o credor tem que alegar e demonstrar os factos que consubstanciam a insuficiência do activo do devedor para satisfazer o passivo ou demonstrar os factos-índice da presunção tipificada no art°1186° do C.P.C.. Fora disso, a verificação dos outros factos referidos no art° 1082° é irrelevante para o efeito da insolvência.
Concluindo, não é aplicável ao presente caso o disposto do art°1082° do C.P.C.
Não sendo o incumprimento ou impossibilidade de cumprimento das obrigações ou a dissipação dos bens fundamentos para a declaração da insolvência, sem demais considerações da análise da matéria fáctica no enquadramento desses conceitos, falece essa argumentação da requerente para sustentar a sua pretensão.
*
Em conclusão, provado está a requerente é credor do requerido no valor de HKD$364.920.109,59, a título de capital e de juros vencidos, mas, não logrou ela demonstrar que o activo do requerido é inferior ao passivo nem que se verifiquem os factos operadores da presunção referidos no art°1186°, assim, por inverificação do pressuposto da insuficiência do activo para satisfazer o passivo, há de julgar por improcedente o pedido de insolvência.
Como não se julga viável a pretensão da requerente, fica prejudicado o conhecimento das excepções invocadas pelo requerido.
***
IV) DECISÃO
Em face de todo o que fica exposto e justificado, o Tribunal julga improcedente a acção e, em consequência, decide:
- Absolver o Requerido C (C), do pedido de insolvência formulado pela requerente B Casino, S.A..
*
Custas da acção pela Requerente.
*
Registe e Notifique.
Notificada da sentença, vem a requerente B Casino, S. A. arguir a nulidade da sentença por violação do princípio do contraditório, mediante o requerimento a fls. 1296 a 1304 dos presentes autos.
Ainda na pendência do incidente da arguição da nulidade da sentença, a requerente B Casino, S. A. interpôs recurso ordinário da sentença de mérito que julgou improcedente o seu pedido de declaração de insolvência do requerido C, mediante o requerimento a fls. 1828 dos presentes autos.
Por despacho a fls.1829 dos presentes autos, foi julgada improcedente a arguição a nulidade da sentença.
E por despacho a fls. 1830 dos presentes autos, foi admitido o recurso da sentença.
Inconformada com a decisão sobre a arguição da nulidade da sentença, a requerente B Casino, S. A., interpôs o recurso ordinário.
Por despacho a fls. 1834 dos presentes autos, foi admitido o recurso.
Mediante os requerimentos a fls. 1837 a 1860 e a fls. 1864 a 1879 dos autos, a requerente motivou, respectivamente, o recurso de mérito da sentença e o recurso da decisão que recaiu sobre a arguição da nulidade.
Notificado das motivações de ambos os recursos, o requerido, ora recorrido C limitou-se a responder às alegações do recurso da decisão que recaiu sobre a arguição a nulidade, pugnando pela não admissão ou pela rejeição do recurso, e subsidiariamente pela improcedência do recurso.
II
Admitidos no Tribunal a quo, ambos os recursos foram feitos subir a este Tribunal de recurso.
Liminarmente admitidos ambos os recursos e colhidos os vistos, cumpre conhecer.
Antes de mais, é de salientar a doutrina do saudoso PROFESSOR JOSÉ ALBERTO DOS REIS de que “quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão” (in CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ANOTADO, Volume V – Artigos 658.º a 720.º (Reimpressão), Coimbra Editora, 1984, pág. 143).
Conforme resulta do disposto nos artºs 563º/2, 567º e 589º/3 do CPC, são as conclusões do recurso que delimitam o seu objecto, salvas as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras e as que sejam de conhecimento oficioso.
Assim, de acordo com as conclusões de ambos os recursos, constituem objecto da nossa apreciação duas questões, quais são:
1. Da nulidade de sentença; e
2. Da inferioridade do activo patrimonial do requerido ao seu passivo.
Todavia, antes de entrarmos na apreciação dessas questões, temos de resolver a questão prévia de inadmissibilidade ou rejeição, com fundamento na inutilidade e ilegalidade, do recurso da decisão que recaiu sobre a arguição da nulidade, suscitada pelo recorrido.
Para convencer o Tribunal da inadmissibilidade ou da rejeição desse recurso interlocutório interposto pela requerente, o recorrido defende nas contra-alegações que, nos termos prescritos no artº 571º/3 do CPC, só pode ser arguida a nulidade de sentença perante o Tribunal que a proferiu se a sentença não admitir recurso ordinário, o que não é o caso, assim, esgotado que está o poder jurisdicional do Tribunal a quo, e extinta a instância, o presente recurso, interposto paralelamente ao recurso da sentença, além de inútil, é indevido e inadmissível, e ilegal por contrariar as normas do artº 571º do CPC.
Tem razão o recorrido.
Na verdade, em regra, da nulidade processual cabe arguição perante o Tribunal a que se imputa a inobservância de regras processuais, geradora da nulidade; e da decisão judicial cabe recurso ordinário para o Tribunal superior.
Todavia, se a nulidade processual só puder vir a ser detectada numa altura em que já se tenha esgotado o poder de julgar do autor da inobservância de regras processuais, nomeadamente na situação em que a nulidade só é detectável ou cognoscível com a publicação da sentença final de uma determinada instância, a nossa lei permitirá excepcionalmente a sua arguição, por via de recurso ordinário, perante o Tribunal superior, desde que seja recorrível a decisão judicial que contém a nulidade processual ou em que é detectada a nulidade processual. E neste último caso, o Tribunal superior conhece directamente da nulidade em sede de recurso.
É justamente o que está previsto no artº 571º/3 do CPC, à luz do qual, à excepção da falta da assinatura, as restantes nulidades de sentença só podem ser arguidas perante o tribunal que proferiu a sentença se esta não admitir recurso ordinário; no caso contrário, o recurso pode ter como fundamento qualquer dessas nulidades.
In casu, a alegada nulidade da sentença decorre da inobservância do princípio do contraditório pelo Tribunal a quo na fundamentação da sentença que a proferiu.
Ou seja, a nulidade configurada pela recorrente está coberta pela sentença final, susceptível de recurso.
Assim sendo, a alegada nulidade da sentença deve ser arguida por via de recurso ordinário e não perante o Tribunal que a proferiu.
Todavia, a requerente já arguiu a nulidade perante o Tribunal a quo, e este decidiu sobre arguição da nulidade.
E ainda por cima, dessa decisão já foi interposto recurso!
Quid juris?
Em face dessas vicissitudes, parece-nos que a boa saída para contornar esta situação algo anormal pode ser inspirada no espírito do princípio de aproveitamento, subjacente à do artº 145º do CPC.
Ora, reza este artigo que:
(Erro na forma de processo)
1. O erro na forma de processo importa unicamente a anulação dos actos que não possam ser aproveitados, devendo praticar-se os que forem estritamente necessários para que o processo se aproxime, quanto possível, da forma estabelecida pela lei.
2. Não devem, porém, aproveitar-se os actos já praticados, se do facto resultar uma diminuição de garantias do réu.
Assim, por força do princípio do aproveitamento ai consagrado, não nos repugna aceitar a solução que consiste no seguinte:
* anular a decisão, proferida pelo Tribunal a quo, que recaiu sobre a arguição da nulidade da sentença;
* converter e integrar no recurso de mérito para este TSI a arguição da nulidade perante o Tribunal a quo; e
* não admitir o recurso por inexistência do objecto (em consequência da anulação da decisão recorrida).
Pois, não obstante a arguição da nulidade perante ele, o Tribunal a quo não deveria conhecer dela directamente, mas sim convolá-la em recurso.
E agora só defendemos fazer por nós aquilo que deveria ter sido feito pelo Tribunal a quo.
Assim procedemos.
Arrumada esta questão prévia suscitada pelo recorrido, já estamos em condições de avançar.
São duas as questões que constituem o objecto da nossa apreciação, quais são:
1. Da nulidade de sentença; e
2. Da inferioridade do activo patrimonial do requerido ao seu passivo.
Comecemos pela apreciação do alegado vício formal da sentença recorrida.
1. Da nulidade de sentença
Ao arguir a nulidade perante do Tribunal a quo, a requerente alegou que:
B CASINO, S.A., Requerente nos autos à margem referenciados, que move contra C (C), notificada da douta sentença de 29 de Junho de 2017 (a “Sentença”), vem, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 147.º do Código de Processo Civil de Macau (CPC), arguir nulidade processual por violação do princípio do contraditório, previsto no n.º 3 do artigo 3.º do CPC,
o que faz nos termos e com os fundamentos seguintes:
- DA NÃO OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO COMO NULIDADE PROCESSUAL INOMINADA, PORQUANTO TAL OMISSÃO É SUSCEPTÍVEL DE INFLUIR NO EXAME OU DECISÃO DA CAUSA
Nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 3.º do CPC “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.”.
A ratio legis subjacente à aludida norma é a de evitar as denominadas decisões-surpresa, baseadas em fundamentos que não tenham sido previamente considerados pelas partes, que, por conseguinte, são surpreendidas com decisões sobre matérias que nunca estiveram sequer em discussão no processo.
Ou seja, o juiz não pode decidir questões sem que as partes tenham tido oportunidade de se pronunciarem.
Com referência ao já aludido n.º 3 do artigo 3.º do CPC, o Acórdão do TSI proferido no processo n.º 7/2013, de 10/07/2014, in www.court.gov.mo, consagra: “Como é sabido, com essa norma, visou-se aprofundar ainda mais o exercício do direito do contraditório, enquanto princípio estruturante do nosso processo civil, princípio que surge como uma garantia de uma discussão dialéctica entre as partes, visando evitar "decisões-surpresa", ou seja, baseadas em fundamentos que não tenham sido previamente consideradas pelas partes.”.
E também o Acórdão do TRC de Portugal, que se cita a título de jurisprudência comparada, proferido no processo n.º 7026/04.3TJLSB.C1, de 6/26/2012, in www.dgsi.pt., refere: “Quer o direito de acção, quer de defesa, assentam numa determinada qualificação jurídica dos factos carreados para o processo, que as partes tiveram por pertinente e adequada quando procederam à respectiva articulação. Deste modo qualquer alteração do módulo jurídico perfilhado, designadamente quando assuma um grau particularmente relevante, é susceptível de comprometer a posição das partes... e daí a proibição imposta pelo n.º 3» - vide Abílio Neto, Breves Notas ao CPC 2005, p.10.”.
Ora com o devido respeito, a Sentença proferida nestes autos julga a acção improcedente, invocando fundamentos e argumentos que não tinham sido sequer equacionados por qualquer das partes.
O Tribunal, por via da Sentença, pronunciou-se sobre questões não suscitadas nos autos pela Requerente ou pelo Requerido, pelo que deveria, previamente à decisão que tomou, convidar as partes a pronunciar-se ou a exprimir a sua posição quanto às questões que tinha intenção de vir a proferir.
Senão vejamos,
Ficou provado nestes autos e consta da Sentença que em 3 de Março de 2016, o Requerido detinha os direitos sobre os imóveis indicados na declaração de compromisso e que “A 19 de Agosto de 2016, os direitos que o Requerido detinha sobre os 26 imóveis referidos no Doc. 66, foram por ele cancelados junto da Conservatória do Registo Predial, sem autorização ou conhecimento prévio da Requerente, indicando este meramente não ter mais interesse na manutenção dos mesmos. “.
Ora na fundamentação jurídica da Sentença é referido que em relação aos 25 imóveis, não foi revelado qual é a causa do cancelamento do registo provisório, pois o requerente (entenda-se, o de tal cancelamento) apenas justificou o acto por não ter mais interesse na manutenção do registo provisório.
E ainda que “O registo provisório ou definitivo sobre a aquisição é facultativo e não obrigatório, o não registo da aquisição não implica, necessariamente, que o titular deixa de ["ter"] ser direito de aquisição sobre os imóveis.” (parêntesis nosso).
“De facto, a renúncia, por parte do requerido, da garantia concedida pelo registo predial, não é normal, todavia, desse comportamento não se permite deduzir que o requerido já não é titular dos direitos sobre os imóveis, visto que o direito de aquisição prova-se com o acordo escrito, sua validade não dependendo da existência do registo provisório.”.
Ora quer a causa do cancelamento dos registos provisórios pelo Requerido, quer a não obrigatoriedade do registo provisório ou definitivo de aquisição não foi matéria de discussão nos presentes autos, por não ter sido alegada pelas partes.
Nos termos do disposto no artigo 5.º do Código do Registo Predial, os factos sujeitos a registo produzem efeitos em relação a terceiros depois da data do respectivo registo.
Portanto para qualquer terceiro, como é aqui o caso da Requerente, a presunção da titularidade de tais direitos do Requerido sobre os imóveis que este detinha deixou de operar. Ou, dito de outro modo, após o cancelamento do registo aquele deixou de ser o titular presumido dos direitos de aquisição.
Presunção essa que poderia ter sido ilidida pelo Requerido, mas que não o foi.
A verdade é que o Requerido foi citado nos autos, constituiu mandatário e apresentou Resposta, na qual esta matéria não foi impugnada especificadamente, o que, se porventura ainda fosse titular de quaisquer direitos, deveria ter feito. Por conseguinte, aceitou aquela asserção (de que não é titular de tais direitos de aquisição) como verdadeira.
Aliás, o Requerido foi mais longe e não se remeteu ao silêncio, pronunciando-se expressamente sobre isto, sendo do maior relevo transcrever o que o mesmo afirmou no artigo 73.º da Resposta: “O Requerido só tomou conhecimento de que deixou de ser titular dos direitos sobre os 26 imóveis em causa com a recepção do requerimento inicial e que os direitos foram cancelados junto da Conservatória do Registo Predial.” (sublinhado e negrito nosso).
O que configura verdadeira prova por confissão da parte, nos termos e para os efeitos do artigo 489.º do CPC.
E centra toda a sua defesa, em síntese, apenas na "teoria" do abuso do direito por parte da Requerente e na existência de um "eventual" direito de crédito das sociedades das quais é sócio e administrador, relativo a markers ainda por cobrar dos seus jogadores, sendo estes os únicos “activos” que alegou ter.
Ora, o cancelamento dos registos é referido no requerimento inicial para invocar que o Requerido já não é titular de tais direitos (gozando a Requerente da presunção conferida por força do registo, e da falta dele, reitere-se), e que tais direitos já não fazem parte do seu activo.
Se esta alegação não fosse verdadeira, então o Requerido deveria tê-la contestado na sua Resposta e, eventualmente, apresentado prova para o efeito.
Mas não só não o fez, como, frise-se, admitiu expressamente já não ser o titular dos direitos de aquisição dos imóveis em causa.
Por esta razão, afigura-se à Requerente, com o devido respeito, ser irrelevante saber se tais imóveis foram cedidos a um terceiro ou se o promotor imobiliário (ou seja, o promitente-vendedor) ficou novamente em posição de poder prometer vender ou vender aqueles imóveis a quem bem entender, sendo que esta última configuração não foi sequer equacionada na Sentença.
Ora, se a transmissão do direito de aquisição pelo Requerido a terceiro só pode ser inequivocamente demonstrada por "documento lavrado para esse efeito", como decidido - não bastando para este efeito a confissão daquele constante do artigo 73.º da Resposta, o que não se concebe -, para se poder concluir que aquele cedeu, efectivamente, o seu direito a terceiro e não é titular dos mesmos - sem que nenhuma das partes tivesse sequer equacionado tal possibilidade - , deveria então o Tribunal, salvo o devido respeito, ter convidado as partes a pronunciar-se sobre a existência de tal(is) documento(s), termos e validade, podendo até ordenar, designadamente, a prestação de informações, a entrega de mais documentos, mormente em posse do Requerido e/ou de terceiros, ao abrigo do princípio da cooperação e do princípio do inquisitório.
O que, no limite, não teria grande utilidade prática atenta a confissão do próprio Requerido e a presunção do registo.
De todo o modo, se houvesse necessidade de juntar outros documentos adicionais, nomeadamente informação predial para além da que já consta dos autos - o que, reitera-se, não se verificou - a informação constante das certidões prediais relativas aos 26 imóveis seria coincidente com o alegado pelas partes, ou seja, que o Requerido não é titular de qualquer direito sobre os imóveis (nem o era à data em que se apresentou o requerimento inicial de insolvência) - cfr. certidões prediais que se juntam para os devidos efeitos legais sob os Docs. n.os 1 a 26 - gozando o titular aí inscrito da presunção derivada do registo prevista no artigo 7.º do Código de Registo Predial.
A assunção inserta na Sentença de que os direitos de aquisição ainda pertencem ao Requerido, quando afirma: "Esclarecida está o património que o requerido tem (...)" - sem que nunca tivessem sido carreados para os autos quaisquer contratos ou acordos, constitui, salvo o devido respeito, uma manifesta violação do princípio do contraditório.
Ora, à Requerente nunca foi dada a possibilidade de se pronunciar sobre a existência desses contratos ou, no caso de existirem, sobre a sua validade, eficácia ou autenticidade, nem ao Recorrido foi possível tecer quaisquer considerações sobre tal questão.
Ademais, sublinhe-se nem o Tribunal alguma vez viu tais contratos, nem a existência dos mesmos é matéria de conhecimento oficioso, sendo que ao abrigo dos princípios da cooperação e do inquisitório poderia ordenar outras diligências e ouvir as partes.
Portanto, é manifestamente surpreendente que a decisão dos autos se funde em "matéria de facto" que nunca foi trazida à lide por qualquer das partes.
Ainda mais surpreendente se revela o exercício aritmético constante da Sentença para determinar o valor do activo.
Decidir pela existência de direitos de aquisição na esfera jurídica do Requerido, desconhecendo se existem ou não contratos ou acordos que porventura titulem quaisquer direitos do Requerido sobre os imóveis e mais do que isso, não valorar a confissão acima já aludida é manifestamente surpreendente; mas ficcionar o valor de tais direitos como sendo o valor dos imóveis, (quando só os direitos de aquisição poderiam porventura ainda integrar o activo do Requerido), mais surpreendente o é.
Para que se verificasse a existência de património (activo) na esfera jurídica do Requerido seria necessário que dos autos constassem os valores já pagos por este a título de sinal e /ou outros pagamentos, no âmbito de contratos promessa de compra e venda ou ainda de cessão da posição contratual.
Ora a posição de promitente-comprador apenas confere uma expectativa juridicamente tutelada da celebração do contrato definitivo e as partes podem, por razões diversas, nem sequer celebrar o contrato prometido. Sendo os contratos promessa de compra, meramente obrigacionais, em caso de incumprimento por parte do promitente vendedor a devolução do sinal em dobro, ainda poderia conceber-se como um activo do Requerido, mas doutro passo se o incumprimento já se verificar do lado do promitente comprador, tal já não sucede, podendo aquele ser igual a zero.
Mais uma vez, porque não foram carreados para os autos quaisquer contratos não é possível determinar se os mesmos existem e se são susceptíveis de gerar qualquer activo no património do Requerido.
Nem as partes se pronunciaram sobre o valor dos imóveis.
Nos presentes autos, determinante era apurar se faziam ou não ainda parte do património do Requerido, o que o próprio corroborou que já não existiam, tal como já se disse supra.
Com o devido respeito, este raciocínio inserto na fundamentação da Sentença, constitui, uma verdadeira decisão-surpresa, com manifesta violação do princípio do contraditório, porquanto tais factos nunca foram carreados para os autos, não se trata de matéria de conhecimento oficioso do Tribunal, nem tão pouco as partes tiveram a oportunidade de se pronunciar sobre os mesmos.
Face ao exposto, constituindo a Sentença uma decisão-surpresa, proferida em violação do disposto no n.º 3 do artigo 3.º do CPC, deverá ser considerada procedente a nulidade processual invocada nos termos do estatuído no n.º 1 do artigo 147.º ambos do CPC, com a consequente anulação do processado, e as demais consequências legais.
Em síntese, a recorrente entende que o Tribunal a quo pronunciou-se na fundamentação da sentença sobre várias questões, não suscitadas nos autos quer pela requerente quer pelo requerido, nem para o efeito convidou previamente as partes a pronunciar-se ou a exprimir a sua posição quanto às questões que tinha intenção de vir a proferir. Portanto, ao decidir a acção com base nessas soluções dadas a estas questões, o Tribunal a quo proferiu uma decisão-surpresa e portanto violou o princípio do contraditório, o que é gerador da nulidade da sentença.
Na óptica da recorrente, as questões tratadas pelo Tribunal a quo sem que tenha sido dado cumprimento ao contraditório podem ser sintetizadas no seguinte:
* O desconhecimento da causa do cancelamento do registo provisório do direito de aquisição sobre os imóveis;
* A natureza facultativa do registo provisório do direito de aquisição sobre os imóveis;
* A falta de documento lavrado para demonstrar a efectiva transmissão do direito de aquisição sobre os imóveis pelo requerido a terceiro; e
* A ficção do valor dos direitos sobre os imóveis para concluir pela inferioridade do activo do patrimonial do requerido em relação ao seu passivo.
In casu, a questão que o Tribunal a quo decidiu é a verificação ou não do pressuposto material para a declaração de insolvência, ou seja, a inferioridade do activo do patrimonial do requerido em relação ao seu passivo.
Para a requerente, os fundamentos de acção, de facto e de direito que alegou, apontam para a verificação desse pressuposto.
Para o requerido, segundo os fundamentos de oposição, de facto e de direito que alegou, não se mostra verificado tal pressuposto.
O Tribunal a quo acabou por julgar inverificado o tal pressuposto e em consequência disso, absteve-se de declarar a insolvência do requerido.
Admitimos que, uma parte dos fundamentos, de facto e de direito, invocados pelo Tribunal a quo para justificar a inverificação do tal pressuposto não foi trazida pelas partes.
Todavia, nem por isso a decisão pela não declaração de insolvência constitui uma decisão-surpresa.
Ora, para decidir o pleito, o Tribunal não deve ficar vinculado apenas aos fundamentos quer da acção quer da defesa trazidos pelas partes, mas sim deve ir encontrar fundamentos necessários à sua decisão, através da correcta interpretação da matéria de facto assente e mediante o recurso às doutrinas autorizadas que se debruçam sobre a matéria controvertida e aos normativos reguladores dos institutos jurídicos concernentes à matéria controvertida.
No caso sub judice, apesar de não trazidos pelas partes, os fundamentos invocados pelo Tribunal a quo para justificar a decisão que tomou quanto ao pedido de declaração de insolvência do requerido, resultam, ou da interpretação da materialidade fáctica provada, ou dos regimes jurídicos relacionados com a matéria do registo predial e a de contrato-promessa de compra e venda de imóveis.
Frisa-se que, em sede da arguição de nulidade processual, não nos cabe averiguar se os fundamentos invocados pelo Tribunal a quo podem resultar da interpretação da matéria de facto assente ou dos regimes jurídicos concernentes à matéria controvertida e se os fundamentos invocados justificam a decisão de direito. O que deve ter lugar em sede de apreciação da bondade ou não do julgamento de direito.
Aqui só nos compete saber se o tribunal a quo pode utilizar os tais fundamentos para justificar a decisão que tomou, ou seja, se estamos perante uma decisão-surpresa.
Para o efeito, há que distinguir bem duas situações distintas.
Uma situação é tomar uma decisão que as partes não podiam contar. Neste caso, estamos sim perante uma decisão-surpresa.
Outra é o Tribunal fundamentar a sua decisão nas razões de facto e de direito, não expectadas ou expectáveis pelas partes mas extraíveis da lógica das coisas, de doutrinas jurídicas e dos normativos reguladores da matéria controvertida, desde que sejam invocadas para justificar uma das soluções juridicamente plausíveis do pleito que as partes podiam perfeitamente contar. Aqui as partes já não estão confrontadas com qualquer decisão-surpresa.
As duas situações não são confundíveis.
Sucede in casu que o Tribunal a quo decidiu julgar improcedente o pedido da declaração de insolvência, que não deixa de ser uma das soluções possíveis que a requerente possa ter concebido, não se mostra, pois, violado o princípio do contraditório.
Improcede portanto a arguição da nulidade.
2. Da superioridade do passivo do património do embargante ao seu activo
No recurso de mérito da sentença, a recorrente formulou as conclusões e pedido nos termos seguintes:
A. O Tribunal a quo, no Acórdão que decidiu da matéria de facto, deu como provados todos os quesitos da requerente, ora Recorrente, nomeadamente, os quesitos previstos nos artigos 34.º, 36.º e 37.º.
B. No artigo 34.º do Acórdão foi dado como provado a existência da dívida e o seu montante.
C. Nos artigos 36.º e 37.º do Acórdão foi dado como provado que "a 19 de Agosto de 2016, os direitos que o Requerido detinha sobre os 26 Imóveis referidos no doc. 66, foram por ele cancelados junto da Conservatória do Registo Predial, sem autorização ou conhecimento prévio da Requerente, indicando este meramente não ter mais interesse na manutenção dos mesmos" .
D. Nenhum outro quesito integrou a base instrutória ou a decisão da matéria de facto proferida no Acórdão que diga respeito aos imóveis em questão.
E. Nada foi alegado por banda do Requerido, ora Recorrido, quanto ao cancelamento dos seus direitos sobre os imóveis.
F. Igualmente, nenhuma prova foi junta aos autos, por banda do Requerido, ora Recorrido quanto aos imóveis ou aos direitos de que era titular (até os cancelar).
G. O Requerido, ora Recorrido, no artigo 73.º da sua Resposta confessou, nos termos e para os efeitos do artigo 489.º do CPC, que já não era titular de quaisquer direitos sobre aqueles imóveis.
H. O Tribunal a quo não ordenou nenhuma diligência probatória para se inteirar da existência (ou não) daqueles direitos.
I. A questão nunca foi discutida em sede de audiência de discussão e julgamento.
J. Pelo que, os únicos bens que integram o activo do Recorrido eram os direitos que este detinha sobre os imóveis, direitos esses que ele, por sua vontade, cancelou junto da Conservatória do Registo Predial.
K. Por outro lado, ainda que a admitir que esses direitos subsistem na esfera jurídica do Recorrido, o que não se concede, o Tribunal a quo não ordenou nenhuma diligência probatória, nomeadamente, uma perícia, para determinar qual o valor dos imóveis, muito menos, qual o valor monetário dos eventuais direitos de aquisição sobre os mesmos.
L. Pelo que, o valor desses direitos deveria ser o valor constante do registo.
M. Nesse sentido, é pacífico o entendimento sobre as presunções de registo e quanto aos efeitos substantivos do registo, que só é ilidido mediante prova em contrário.
N. Tais presunções vêm estabelecidas no Código de Registo Predial e, no caso sub judice, são suplementadas pelo regime em vigor na Lei n.º 7/2013.
O. Atendendo à matéria de facto dada como provada no Acórdão, tendo em consideração a confissão do Recorrido no artigo 73.º da sua Reposta e os efeitos substantivos do registo, não podia o Tribunal a quo ter sequer ponderado da existência ou não dos direitos de aquisição que o Recorrido detinha sobre os 26 Imóveis.
P. O Tribunal a quo tinha de aceitar o efeito substantivo dado à presunção registrai de cancelamento desses mesmos direitos e concluído, consequentemente, que estes já não existiam na esfera jurídica do Recorrido.
Q. Por outro lado, o Tribunal a quo tinha de aceitar o valor inscrito no registo para tais imóveis, na ausência de qualquer prova em contrário, a admitir que estes ainda subsistiam na esfera jurídica do Recorrido, o que não se concede.
R. Sendo esta a única conclusão possível, à luz dos factos e dos normativos legais aplicáveis.
S. O Tribunal a quo socorreu-se de factos e questões de direito que não foram alegadas por nenhuma das partes, nem, por maioria de razão, sujeitas a qualquer semblante de contraditório.
T. O Tribunal a quo, não estava em condições de saber se existem (ou não) contratos promessa de compra e venda relativos aos imóveis sobre os quais o Recorrido tinha direitos; quais os termos e condições desses contratos (a existirem); se os mesmos (a existirem) estão válidos ou se os seus efeitos já cessaram, por qualquer razão contratual ou legal; e, qual o valor dos direitos do Recorrido sobre tais imoveis (admitindo, o que não se concede, que os mesmos ainda subsistem).
U. Igualmente, não deve proceder a decisão do Tribunal a quo, na fundamentação jurídica da Sentença, de que não se verificou o requisito da inferioridade do activo do requerido para satisfazer o passivo.
V. Tal conclusão está em clara contradição com o teor da matéria de facto provada, nos artigos 34,36.º e 37.º do Acórdão.
W. Isto pois, a Requerente, ora Recorrente, alegou e comprovou suficientemente "a insuficiência do activo para satisfazer o passivo".
X. Tendo cumprido com o ónus de alegação da insuficiência do activo do Recorrido, nos termos do artigo 1189.º CPC, e ainda, do previsto no n.º 1, do artigo 1085,º, aplicável ex vi artigo 1187.º, ambos do CPC.
Y. Ademais, a fls. 14 da Sentença ora em crise admite o Tribunal a quo que "Esses imóveis são os únicos bens conhecidos nos autos apurar o activo do requerido".
Z. Se os mesmos, à luz dos factos e normativos legais citados, já não integram o activo do Recorrido, então a única conclusão possível é que este já não dispõe de mais qualquer activo.
AA. Foi determinante para a apreciação da existência (ou não) do estado de insolvência do Recorrido a conclusão do Tribunal a quo de que tais direitos ainda existiriam na sua esfera jurídica.
BB. Pelo que, mal andou o Tribunal a quo, ao ter concluído a fls. 21 que "não logrou ela demonstrar que o activo do requerido é inferior ao passivo".
CC. Outrossim, deveria o Tribunal a quo ter decidido pela insolvência do Recorrido, porquanto, dos factos dados como provados resulta claramente que este tem uma dívida no montante de HKD364.920.109,59 para com a Recorrente e não tem activos nenhuns, estando, por isso, cumprida a estatuição legal prevista no n.º 1, do artigo 1185.º do CPC.
Nestes termos, e nos mais de Direito aplicáveis, deve ser o presente recurso ser julgado procedente, e, em consequência, revogada a douta Sentença, ora recorrida e substituída por outra que declare a insolvência de C (C), sendo o Recorrido condenado no pagamento de custas e procuradoria condigna, seguindo-se os ulteriores termos até final,
assim se fazendo a costumada,
JUSTIÇA!
A requerente B Casino, S. A., ora recorrente, em sede de recurso, questionou a bondade da decisão de mérito consubstanciada na não declaração da insolvência do requerido C, imputando-a erro de julgamento uma vez que, para ela, já se verificou o requisito da superioridade do passivo do património do requerido ao seu activo, de cuja verificação depende a declaração da insolvência.
Sob vários aspectos a recorrente defende que se verificou in casu o tal pressuposto material para declaração de insolvência do requerido.
Comecemos pelo primeiro.
A recorrente entende que já foi demonstrada nos autos a superioridade do passivo do requerido ao seu activo, pois por um lado ficou provado que a 19 de Agosto de 2016, os direitos que o Requerido detinha sobre os 26 Imóveis referidos no doc. 66, foram por ele cancelados junto da Conservatória do Registo Predial, sem autorização ou conhecimento prévio da requerente, indicando este meramente não ter mais interesse na manutenção dos mesmos, e por outro, nenhuma prova foi junta aos autos, por banda do requerido, ora recorrido, quanto aos imóveis ou aos direitos de que era titular, até pelo contrário o requerido no artigo 73.º da sua resposta confessou, nos termos e para os efeitos do artigo 489.º do CPC, que já não era titular de quaisquer direitos sobre aqueles imóveis.
A propósito dos requisitos para a declaração de insolvência, reza o artº 1185º/1 do CPC que o devedor que não seja empresário comercial pode ser declarado em estado de insolvência quando o activo do seu património seja inferior ao passivo.
Ora, a expressão “quando o activo do seu património seja inferior ao passivo” em si não é um facto material, susceptível de ser objecto da prova, mas sim uma conclusão, ou, pelo menos um facto conclusivo que carece de ser demonstrado pelos factos materiais concretos.
Para chegar a tal conclusão, é preciso que sejam demonstrados factos materiais susceptíveis de constituir índices ou manifestações que sustentam um juízo conclusivo do défice patrimonial do requerido.
No caso, ficou provada a seguinte matéria de facto:
- A B Casino, S.A., ora Requerente, é uma sociedade que se dedica à exploração de jogos de fortuna ou azar ou outros jogos em casino e, ainda, à prática de actos inerentes a tal actividade, incluindo a concessão de crédito para jogo. (Artigo 1º)
- No exercício da sua actividade, a ora Requerente celebrou em 1 de Janeiro de 2016, dois contratos de promoção de jogo, com a Sociedade Promoção de Jogos YY Limitada, registada na CRCBM sob o nº2XXXX(SO) (doravante, a “YY”) e a Sociedade Promoção de Jogos ZZ Limitada, registada na CRCBM sob o nº3XXXX(SO) (doravante, a “ZZ”), respectivamente (doravante e conjuntamente, os “Contratos de Promoção de Jogo”), das quais o Requerido é administrador, mediante os quais as partes acordaram em estabelecer uma relação comercial, que consista, sucintamente, na promoção do negócio do jogo por parte da YY e da ZZ, a ser realizada em salas destinadas a esse fim nos casinos da Requerente. (Artigo 2º)
- Nesse mesmo dia, a Requerente celebrou contratos de crédito de jogo com:
* a YY, mediante o qual a Requerente concedeu uma linha de crédito, na modalidade de crédito rotativo (em inglês, “revolving credit”), até ao limite máximo de HKD179.000.000,00, nos termos e condições aí acordados, válido para o período entre a sua celebração e o dia 31 de Dezembro de 2016 (doravante, o “Contrato A”); e
* a ZZ, mediante o qual foi concedida uma linha de crédito, na modalidade de crédito rotativo (em inglês, “revolving credit”), até ao máximo de HKD200.000.000,00, nos termos e condições aí acordados, válido para o período entre a sua celebração e o dia 31 de Dezembro de 2016 (doravante, o “Contrato B”). (Artigo 3º)
- Em virtude da celebração do Contrato A e do Contrato B (doravante, os “Contractos de Crédito para Jogo”), a Requerente colocou à disposição da YY e da ZZ, fichas de jogo, não negociáveis, para serem utilizadas por estas ou pelos seus clientes, com o intuito exclusivo de as mesmas serem jogadas nos casinos da Requerente aí melhor identificados. (Artigo 4º)
- A utilização das fichas de jogo acima referidas realizava-se a pedido das YY e ZZ, junto da Requerente, por meio de avisos de saque (em inglês, denominados “drawdown notices” ou “markers”), nos termos dos quais se definia a quantia mutuada e o respectivo período de pagamento. (Artigo 5º)
- A falta de pagamento de qualquer das quantias mutuadas nos termos supra descritos, implica o vencimento de juros convencionados à taxa mensal de 1,5%, calculados sobre o montante em dívida, desde a data de vencimento até integral e efectivo pagamento. (Artigo 6º)
- Em garantia de todas as importâncias que as YY e ZZ devessem ou viessem a dever por via dos contratos acima referidos, o Requerido outorgou uma garantia, datada de 3 de Março de 2016, pela qual se constituiu fiador, solidariamente responsável e principal pagador perante a Requerente, desde logo renunciando ao benefício da excussão prévia (doravante, a “Garantia”). (Artigo 7º)
- Ainda nessa data, o Requerido entregou à Requerente, para garantia do pagamento das obrigações por si assumidas ao abrigo dos Contratos de Promoção de Jogo e dos Contratos de Crédito para Jogo:
* o cheque nº HF3XXXXX, por si subscrito, sacado sobre o Bank of China, Sucursal de Macau, e uma declaração por si assinada segundo a qual expressamente autorizava a Requerente a preencher os elementos que estivessem em falta, in casu, a data da emissão do cheque e a quantia em dívida, em caso de incumprimento das obrigações assumidas; e,
* uma livrança por si subscrita, bem como o correspondente pacto de preenchimento. (Artigo 8º)
- Em 3 de Março de 2016, a requerente, previamente à emissão da declaração de compromisso, extraiu informações prediais referentes aos imóveis, verificou a sua situação jurídica e confirmou os direitos que o requerido detinha sobre os mesmos. (Artigo 10º)
- Nos termos do Contrato A, a YY utilizou a linha de crédito concedida pela Requerente e foi efectuando pagamentos parciais ao longo da relação; todavia, estão ainda em dívida, a título de capital, as quantias mutuadas melhor discriminadas na tabela infra, no valor global de HKD$112.000.000,00:
Aviso de saque n.º
Quantia mutuada em dívida
Data de emissão
CMK006628
HKD10.000.000,00
07-07-2016
CMK006724+1
HKD5.000.000,00
07-07-2016
CMK006726
HKD10.000.000,00
08-07-2016
CMK006727
HKD12.000.000,00
08-07-2016
CMK006630
HKD10.000.000,00
09-07-2016
CMK006914
HKD10.000.000,00
01-08-2016
CMK007020
HKD10.000.000,00
04-08-2016
CMK007119
HKD10.000.000,00
04-08-2016
CMK007025
HKD5.000.000,00
10-08-2016
CMK007027
HKD5.000.000,00
10-08-2016
CMK007029
HKD5.000.000,00
11-08-2016
CMK007216
HKD5.000.000,00
12-08-2016
CMK007030
HKD5.000.000,00
13-08-2016
CMK007217
HKD5.000.000,00
14-08-2016
CMK007031
HKD5.000.000,00
16-08-2016
(Artigo 12º)
- Nos termos do Contrato B, a ZZ utilizou a linha de crédito concedida pela Requerente e foi efectuando pagamentos parciais ao longo da relação; todavia, estão ainda em dívida, a título de capital, as quantias mutuadas melhor discriminadas na tabela infra, no valor global de HKD$200.000.000,00:
Aviso de saque n.º
Quantia mutuada em dívida
Data de emissão
GCMK057774
HKD10.000.000,00
08-07-2016
GCMK057886
HKD10.000.000,00
09-07-2016
GCMK057994
HKD10.000.000,00
09-07-2016
GCMK057995
HKD10.000.000,00
10-07-2016
GCMK057889
HKD10.000.000,00
11-07-2016
GCMK058144
HKD10.000.000,00
12-07-2016
GCMK058146
HKD10.000.000,00
13-07-2016
GCMK058057
HKD10.000.000,00
15-07-2016
GCMK058347
HKD10.000.000,00
15-07-2016
GCMK058245
HKD10.000.000,00
15-07-2016
GCMK058147
HKD10.000.000,00
15-07-2016
GCMK058058
HKD10.000.000,00
15-07-2016
GCMK058460
HKD10.000.000,00
09-08-2016
GCMK058561
HKD5.000.000,00
11-08-2016
GCMK058463
HKD5.000.000,00
11-08-2016
GCMK058769
HKD5.000.000,00
12-08-2016
GCMK058677
HKD5.000.000,00
12-08-2016
GCMK058563
HKD5.000.000,00
12-08-2016
GCMK058565
HKD5.000.000,00
12-08-2016
GCMK058770
HKD5.000.000,00
12-08-2016
GCMK058465
HKD5.000.000,00
13-08-2016
GCMK058772
HKD5.000.000,00
13-08-2016
GCMK058568
HKD5.000.000,00
13-08-2016
GCMK058685
HKD5.000.000,00
13-08-2016
GCMK058466
HKD5.000.000,00
13-08-2016
GCMK058686
HKD5.000.000,00
13-08-2016
GCMK058773
HKD5.000.000,00
14-08-2016
(Artigo 13º)
- As quantias mutuadas acima descritas correspondem aos valores das fichas de jogo, não negociáveis, que as YY e ZZ sacaram nos dias referidos para serem utilizadas por estas ou pelos seus clientes nos casinos da Requerente, constando de cada um dos avisos de saque o valor, o recibo de entrega das fichas e o respectivo prazo de pagamento das quantias assim mutuadas. (Artigo 14º)
- Nos termos dos contratos de promoção de jogo concedeu às YY e ZZ o acesso a determinados equipamentos e estabelecimentos dentro dos estabelecimentos da Requerente, para uso dos clientes das YY e ZZ, procedendo as partes a um acerto mensal entre a remuneração paga pela requerente e as despesas incorridas por aquelas. (Artigo 15º)
- Durante os meses de Agosto e Setembro de 2016 tal acerto não foi realizado, sendo que as despesas incorridas pela Requerente a este respeito e ainda por pagar, nomeadamente, quanto a alojamento, restauração, entretenimento, ascendem ao montante total de HKD1.451.132,00. (Artigo 16º)
- A Requerente levou a cabo diligências para ressarcimento das dívidas junto das YY e ZZ e dos garantes, ou de D e do requerido, tendo sido realizadas várias reuniões para tentar encontrar uma solução amigável, nomeadamente, em 5 de Setembro de 2016, sem que, todavia, tenham as partes logrado obter um plano de pagamento. (Artigo 18º)
- A requerente enviou missivas às partes, incluindo o requerido, exigindo o cumprimento pontual e integral das obrigações assumidas por este. (Artigo 19º)
- No dia 8 de Setembro de 2016, a Requerente enviou uma carta de interpelação às YY e ZZ, entregue e recebida em mãos no mesmo dia, denominada Plano de Reembolso (em inglês “Repayment Plan”) e relativa às dívidas assumidas nos termos do Contrato A e do Contrato B, nos termos da qual informa aquelas sobre o valor global em dívida (HKD312.000.000,00), faz cessar as linhas de crédito concedidas e exige o seu pagamento, bem como, concede prazo até 9 de Setembro de 2016 para a conclusão de quaisquer negociações entre as partes, sob pena de a ora Requerente levar a cabo todas as diligências legais tidas por necessárias para a recuperação do seu crédito. (Artigo 20º)
- As Mutuárias nada disseram sobre o assunto. (Artigo 21º)
- No dia 12, 13 e 14 de Setembro de 2016, a Requerente remeteu, por intermédio da sua mandatária constituída, cartas de interpelação às YY e ZZ, bem como ao ora Requerido e a D (D), enquanto garantes, informando-os do incumprimento das obrigações contratualmente assumidas, do montante em dívida e exigindo pagamento integral do mesmo no prazo máximo aí fixado, sob pena de levar a cabo todas as diligências legais tidas por necessárias para a recuperação do seu crédito. (Artigo 22º)
- No dia 12 de Setembro de 2016, foi ainda enviada mensagem telefónica, via Whatsapp, para o número telefónico do Requerido, que a recebeu e leu, com o conteúdo da carta. (Artigo 23º)
- De entre os interpelados apenas o Requerido reagiu à interpelação da Requerente, tendo-se limitado a responder “OK, 謝謝!”. (Artigo 24º)
- A Requerente interpelou o ora Requerido, por carta datada de 9 de Setembro de 2016, por via da qual requereu esclarecimentos no que concerne aos Imóveis e quanto às transacções que este, ao arrepio do acordado com aquela, efectuou sobre os mesmos, sem conhecimento ou autorização da Requerente, tendo-lhe concedido o prazo máximo de 5 dias para depositar o produto líquido recebido, sob pena de esta levar a cabo todas as diligências legais tidas por necessárias para a recuperação do seu crédito. (Artigo 25º)
- Na sequência desta missiva, o Requerido nada disse, esclareceu, alegou ou depositou, o que, atendendo à importância do compromisso por ele assumido e ao valor presumível dos Imóveis. (Artigo 26º)
- Uma vez que a Requerente não recebeu qualquer pagamento até 21 de Setembro de 2016, ainda nesse dia preencheu a data de emissão e o valor do cheque emitido pelo Requerido nos termos acordados na Garantia e respectivo pacto de preenchimento, no valor de HKD312.000.000,00 e apresentou-o a pagamento, junto do Banco OCBC Wing Hang Bank Limited. (Artigo 27º)
- Cheque esse que foi, no dia 22 de Setembro de 2016, devolvido pela instituição financeira sacada com a menção “Insuficiência de Fundos”. (Artigo 28º)
- O que deu origem à apresentação, no dia 23 de Setembro de 2016, de queixa-crime, junto da Polícia Judiciária, autuada sob o n.º3376/2016. (Artigo 29º)
- A Requerente, em 28 de Setembro de 2016, preencheu e apresentou a pagamento a livrança subscrita pelo Requerente (no valor de HKD317.819.132,00), tendo sido lavrado o competente instrumento de protesto em 7 de Outubro de 2016. (Artigo 30º)
- Não obstante as diversas diligências acima descritas, até à presente data, a Requerente não obteve ressarcimento dos seus créditos. (Artigo 31º)
- A liquidação das quantias em dívida, com referência a 7 de Outubro de 2016, ascende aos montante de:
* HKD203.687.580,65, correspondente a HKD200.000.000,00, a título de capital e a HKD3.687.580,65, a título de juros vencidos, calculados à taxa mensal acordado de 1,5% desde 1 de Setembro até 7 de Outubro de 2016, ao qual acrescem juros vincendos até integral pagamento;
* HK$114.065.045,16, equivalente a HKD112.000.000,00, a título de capital e a HKD2.065.045,16, a título de juros vencidos, calculados à taxa mensal acordada de 1,5% desde 1 de Setembro até 7 de Outubro de 2016, ao qual acrescem juros vincendos até integral pagamento; e
* HKD1.451.132,00, a título de capital. (Artigo 33º)
- A 19 de Agosto de 2016, os direito que o Requerido detinha sobre os 26 imóveis referidos no doc. 66, foram por ele cancelados junto da Conservatória do Registo Predial, sem autorização ou conhecimento prévio da Requerente, indicando este meramente não ter mais interesse na manutenção dos mesmos. (Artigos 36º e 37º)
- No fim de Agosto de 2016, a ZZ chegou a informar a requerente que iria cessar a sua actividade na sala VIP do casino B a partir de 13 de Setembro de 2016. (Artigo 19º da resposta)
Bom, perante estes factos materiais, essenciais e instrumentais, na parte por nós sublinhada, cremos que podemos tirar, com razoável segurança, mediante presunção judicial, a conclusão de que o passivo do declarado insolvente, ora recorrente, é bem superior ao seu activo.
Senão vejamos.
Ora, enquanto fiador que garante, perante a requerente, a satisfação do direito aos créditos resultantes das obrigações assumidas pelas sociedades YY e ZZ, no âmbito do contrato de promoção de jogos celebrado com a requerente embargada B Casino, S.A., que consiste na exploração das duas salas de jogo pertencentes à B, se não fosse a insuficiência do activo do património para satisfazer os tais créditos cujo pagamento se obriga a garantir, nomeadamente para saldar as dívidas contraídas para com a B nos termos descritos na matéria de facto assente, não poderíamos imaginar outra razão para justificar a comprovada inércia total do requerido, ora recorrido, face às sucessivas interpelações, ao longo do tempo feitas pela B, para o pagamento das dívidas ou para acordar um plano de pagamento com a credora B, ora recorrente.
Na verdade, tal como vimos na matéria de facto assente, essencialmente temos presente que:
* Em 03MAR2016, momento em que se constituiu fiador perante a requerente, o requerido detinha os direitos de aquisição sobre 26 imóveis;
* Em 19AGO2016, quando as duas sociedades deixaram acumuladas as volumosas dívidas que o requerido garante e já depois de o requerido ter emitido a declaração de compromisso, reconhecendo a existências das tais dívidas de que era garante e comprometendo-se perante a requerente a alienar, mais cedo possível e a preços razoáveis os direitos sobre imóveis e com os preços a obter para saldar as dívidas e a não alienar os direitos a determinadas pessoas sem consentimento prévio da requerente – vide as fls. 80 e s.s. dos presentes autos, o requerido cancelou os direitos de aquisição sobre os imóveis junto da Conservatória competente, sem autorização da requerente;
* Não foi pago e devolvido, por insuficiência de fundos, quando apresentado a pagamento em 22SET2016, o cheque subscrito pelo requerido, sacado sobre o Banco da China e preenchido pela requerente conforme o pacto de preenchimento, para garantia do pagamento das obrigações por ele assumidas ao abrigo dos contratos de promoção de jogo e dos contratos de crédito para jogo, celebrados com a requerente; e
* Perante as interpelações sucessivas por parte da credora B, ora recorrente, o requerido remeteu-se ao silêncio, não tendo invocado quaisquer causas de exceptio non adimpleti contractus para justificar o não cumprimento das obrigações cuja existência e vencimento foram demonstrados pela requerente;
Ora, ante estas vicissitudes acima descritas, cremos que já foram demonstrados suficientes factos-índice da incapacidade financeira de o requerido de cumprir as suas obrigações enquanto garante, bem reveladores da inferioridade do activo do patrimonial do requerido em relação ao seu passivo.
Chegamos aqui, já não se torna necessário apreciar os restantes fundamentos subsidiários invocados pela recorrente, nomeadamente os relacionados com o ónus de prova, os valores do mercado dos direitos sobre as restantes três lojas e se os direitos sobre todos os imóveis se encontram efectivamente ainda na esfera de disponibilidade do requerido.
E assim, sem necessidade de mais considerações, é de proceder o presente recurso de mérito, em consequência, revogar a sentença recorrida e em substituição, declarar a insolvência do requerido.
Em conclusão:
5. Em regra, da nulidade processual cabe arguição perante o Tribunal a que se imputa a inobservância de regras processuais, geradora da nulidade; e da decisão judicial cabe recurso ordinário para o Tribunal superior;
6. Todavia, se a nulidade processual só puder vir a ser detectada numa altura em que já se tenha esgotado o poder de julgar do autor da inobservância de regras processuais, nomeadamente na situação em que a nulidade só é detectável ou cognoscível com a publicação da sentença final de uma determinada instância, a nossa lei permitirá excepcionalmente a sua arguição, por via de recurso ordinário, perante o Tribunal superior, desde que seja recorrível a decisão judicial que contém a nulidade processual ou em que é detectada a nulidade processual. E neste último caso, o Tribunal superior conhece directamente da nulidade em sede de recurso;
7. Não se mostra violado o princípio do contraditório, se o Tribunal fundamentar a sua decisão sobre as questões concretamente suscitadas pelas partes nas razões de facto e de direito, não expectáveis portanto não trazidas pelas partes, mas extraíveis da lógica das coisas, de doutrinas jurídicas e dos normativos reguladores da matéria controvertida, desde que as tais razões sejam invocadas pelo Tribunal para justificar uma das soluções juridicamente plausíveis do pleito que as partes podiam perfeitamente contar; e
8. A expressão “quando o activo do seu património seja inferior ao passivo”, utilizada no artº 1185º do CPC, como requisito de cuja verificação depende a declaração de um devedor no estado de insolvência, em si não é um facto material, directamente susceptível de constituir o thema probandum, mas sim um juízo conclusivo que carece de ser sustentado pelos factos materiais concretos. Para formular este juízo, pode o Tribunal fazer ilação dos factos materiais índice, essenciais e/ou instrumentais, capazes de sustentar tal juízo conclusivo da carência dos meios financeiros para pagar as dívidas.
Tudo visto resta decidir.
III
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em:
* Anular o despacho proferido pelo Tribunal a quo que recaiu sobre a arguição da nulidade da sentença;
* Fazer integrar a arguição da nulidade de sentença no recurso interposto da sentença;
* Julgar improcedente a arguição da nulidade da sentença;
* Julgar procedente o recurso de mérito da sentença, revogando a sentença recorrida e passando a declarar a insolvência do requerido C.
Custas do recurso pela recorrente e pelo recorrido, na proporção de decaimento.
Registe e notifique.
RAEM, 25OUT2018
(Relator)
Lai Kin Hong
(Primeiro Juiz-Adjunto)
Fong Man Chong
(Segundo Juiz-Adjunto)
Ho Wai Neng
990/2017-49