Processo n.º 1046/2018 Data do acórdão: 2018-11-29 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– erro notório na apreciação da prova
– art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal
S U M Á R I O
Não ocorre o vício de erro notório na apreciação da prova de que se fala no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal, quando após vistos todos os elementos probatórios referidos na fundamentação probatória da decisão recorrida, não se vislumbra ao tribunal de recurso que o tribunal recorrido, aquando da formação da sua convicção sobre os factos, tenha violado quaisquer regras da experiência da vida humana em normalidade de situações, quaisquer normas jurídicas sobre o valor legal da prova, ou quaisquer leges artis vigentes no julgamento de factos.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 1046/2018
(Recurso em processo penal)
Recorrente (arguido): A
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA
REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por acórdão proferido a fls. 281 a 286v do subjacente Processo Comum Colectivo n.o CR4-16-0173-PCC do 4.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, ficou condenado o arguido A, aí já melhor identificado, como autor material, na forma consumada, de um crime de abuso de confiança (em valor consideravelmente elevado), p. e p. pelos art.os 199.o, n.o 4, alínea b), e 196.o, alínea b), do Código Penal (CP), na pena de três anos e três meses de prisão, e na obrigação de pagar a quantia indemnizatória de HKD6.060.600,00 a favor da ofendida, com juros legais desde a data desse acórdão até integral e efectivo pagamento.
Inconformado, veio o arguido recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI) para rogar – cf. em mais detalhes, a motivação de fls. 306 a 332 dos presentes autos correspondentes:
– o reenvio do processo para novo julgamento, para efeitos de indagação qual o montante de indemnização a caber no caso, já que o acórdão recorrido padeceu do erro notório na apreciação da prova como vício referido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal (CPP), devido à falta de prova suficiente para se dar por provado o montante de indemnização;
– e fosse como fosse, a redução da sua pena, devendo ser ele condenado em dois anos e seis meses de prisão, com suspensão da execução da pena por cinco anos.
Outrossim, na mesma motivação do recurso, o arguido insurgiu-se também contra o despacho proferido (a fl. 293 e seguinte) pelo M.mo Juiz titular do processo em primeira instância que lhe veio aplicar prisão preventiva.
À pretensão recursória do arguido, respondeu o Digno Procurador-Adjunto a fls. 335 a 341v, no sentido de manutenção do julgado.
Subidos os autos, opinou a Digna Procuradora-Adjunta a fls. 355 a 357, pugnando pelo não provimento do recurso final do arguido, e, como tal, pela inutilidade superveniente do conhecimento do recurso sobre a medida de coacção (e, subsidiariamente falando, sempre pela improcedência deste recurso).
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se que o acórdão ora recorrido se encontra proferido a fls. 281 a 286v, cujo teor integral se dá por aqui integralmente reproduzido.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cabe notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver apenas as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
É nesses parâmetros que vai ser decidida a presente lide recursória.
O arguido ora recorrente começou por apontar à decisão recorrida o vício de erro notório na apreciação da prova.
Entretanto, para o presente Tribunal de recurso, vistos todos os elementos probatórios referidos na fundamentação probatória da decisão recorrida, não se vislumbra que o Tribunal recorrido, aquando da formação da sua convicção sobre os factos, tenha violado quaisquer regras da experiência da vida humana em normalidade de situações, quaisquer normas jurídicas sobre o valor legal da prova, ou quaisquer leges artis vigentes no julgamento de factos.
Não pode, pois, o recorrente aproveitar o mecanismo de recurso para sindicar gratuitamente, ao arrepio do art.o 114.o do CPP, do resultado do julgamento de factos feito pelo Tribunal sentenciador.
Na verdade, existem já nos autos provas suficientes comprovativas de que:
– o arguido, então trabalhando como motorista por uma sala de jogos do Casino B, fez sua, contra o acordo entre ele e a ofendida como gerente dessa sala de jogos, a quantia total de RMB5.000.000,00 (RMB3.000.000,00 mais RMB2.000.000,00), inicialmente depositada por dois clientes jogadores da mesma sala de jogos, na conta bancária do próprio arguido para ser entregue em Macau à ofendida em valor equivalente a HKD;
– o arguido fugiu depois para a província de Hubei da China. .
Assim, pelas regras da experiência da vida humana em normalidade de situações, tal conduta do arguido causou naturalmente à ofendida um prejuízo patrimonial equivalente àquela soma pecuniária convertida em HKD, sensivelmente no valor total de HKD6.060.600,00.
É que para qualquer homem médio colocado na situação concreta dos autos, é razoável o seguinte facto dado por provado pelo Tribunal recorrido: a conduta acima descrita do arguido causou à ofendida o prejuízo patrimonial sensivelmente de HKD6.060.600,00.
Com efeito, sendo a ofendida gerente daquela sala de jogos, tendo sido ela quem sugeriu ao arguido tal maneira de “transferência” de dinheiro, para Macau, dos clientes jogadores oriundos do Interior da China, seria à ofendida que se imputaria a responsabilidade pela “falha” dessa transferência de dinheiro.
E a forma de a ofendida responder concretamente por essa “falha” perante a sala de jogos em causa (por exemplo, qual o montante concreto de prémios do trabalho da ofendida? e chegou ela a ver descontada pela sala de jogos, nos seus prémios do trabalho, a referida quantia total de RMB inicialmente depositada por aqueles dois jogadores na conta do arguido?) já é outra história, que nada tem a ver com o julgamento do tema probando já traçado pela matéria fáctica descrita no libelo acusatório em tudo que fosse desfavorável ao arguido.
Daí que fica prejudicada a tese tecida pelo arguido na motivação do recurso segundo a qual o Tribunal não pôde acreditar, ao arrepio do art.o 116.o (ou até do art.o 117.o) do CPP, no depoimento da contabilista da sala de jogos (que disse ouvir dizer que a sala de jogos descontou os prémios do trabalho da ofendida para compensar o prejuízo patrimonial sofrido).
Não pode, pois, ter existido erro notório na apreciação da prova (como vício referido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP) por parte do Tribunal recorrido no julgamento dos factos já descritos como provados na fundamentação fáctica do acórdão recorrido.
Sendo de respeitar assim o resultado do julgamento dos factos feito pelo Tribunal recorrido, tem que improceder também o pedido do arguido de redução da pena.
É que vistas todas as circunstâncias fácticas já apuradas em primeira instância com pertinência à medida da pena aos padrões dos art.os 40.o, n.os 1 e 2, e 65.o, n.os 1 e 2, do CP, dentro da moldura penal de um a oito anos de prisão aplicável ao crime de abuso de confiança em valor consideravelmente elevado, com consideração também das prementes exigências da prevenção geral deste tipo legal de crime, a pena de três anos e três meses de prisão concretamente achada no aresto recorrido já não admite mais margem para redução, o que prejudica também, a priori, a tese de possível suspensão da execução da pena nos termos do art.o 48.o do CP.
Com a improcedência total do recurso final do arguido, este tem que cumprir a sua pena de prisão (já que a sua condenação penal é insusceptível de recurso ordinário para o Venerando Tribunal de Última Instância – art.o 390.o, n.o 1, alínea f), do CPP), pelo que já não é mister conhecer do recurso da aplicação da prisão preventiva, a ele imposta pelo M.mo Juiz titular do processo em primeira instância.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em negar provimento ao recurso final do arguido, e em não conhecer do recurso dele respeitante à aplicação da medida coactiva de prisão preventiva.
Custas do recurso final do arguido a cargo deste, com cinco UC de taxa de justiça.
Comunique à ofendida.
Macau, 29 de Novembro de 2018.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Chou Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)
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