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Processo nº 908/2018
(Autos de recurso cível)

Data: 18/Dezembro/2018

Assuntos: Restituição provisória de posse
Esbulho violento

SUMÁRIO
Como decorre do artigo 338.º do Código de Processo Civil, para que a providência cautelar de restituição provisória de posse possa ser decretada, para além da prova do esbulho possessório, é ainda necessário haver violência no esbulho.
A tal violência tanto pode exercer-se sobre as pessoas, como sobre as coisas; é esbulho violento o que se consegue mediante o uso da força contra a pessoa do possuidor; mas é igualmente violento o que se leva a cabo por meio de arrombamento ou escalamento, embora não haja luta alguma entre o esbulhador e o possuidor.
O esbulho é violento quando se verifica que entraram no imóvel do possuidor dezenas de pessoas, tendo estas ordenado aos guardas de segurança ali existentes para não resistirem nem utilizarem telemóveis, procedido à mudança de fechaduras e colocado cadeados em diversas portas do imóvel, instalado um portão à entrada e vedações em todas as entradas com vista a controlar o acesso de outros indivíduos ao imóvel, logrando produzir, assim, um efeito intimidatório sobre o possuidor, coagindo-o a suportar o desapossamento.


O Relator,

________________
Tong Hio Fong
       


Processo nº 908/2018
(Autos de recurso cível)

Data: 18/Dezembro/2018

Recorrente:
- A Holdings Limited (requerida do procedimento cautelar)

Recorrida:
- Empresa B, Limitada (requerente do procedimento cautelar)

Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:

I) RELATÓRIO
Empresa B, Limitada, com sinais nos autos (doravante designada por “requerente” ou “recorrida”), deduziu procedimento cautelar de restituição provisória de posse junto do Tribunal Judicial de Base da RAEM contra A Holdings Limited (doravante designada por “requerida” ou “recorrente”), pedindo que fosse restituída provisoriamente à posse do imóvel identificado nos autos.
Notificada do despacho que decretou a providência, a requerida veio deduzir oposição à providência decretada nos termos previstos na alínea b) do artigo 333.º do Código de Processo Civil.
Realizadas as diligências requeridas, foi julgada improcedente a oposição e, em consequência, mantida a providência decretada.
Inconformada, interpôs a requerida recurso jurisdicional para este TSI, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
“A. Dão-se por integralmente reproduzidos, e reafirmam-se, os articulados e requerimentos apresentados pela ora Recorrente nos autos.
B. A decisão recorrida julgou, com o devido respeito, sem suficiente fundamento, e por presunção, verificado o pressuposto da violência, para o decretamento da providência de restituição de posse.
C. Impunha-se, ao invés, dar por provada a inverificação do pressuposto da violência, em face dos depoimentos das testemunhas arroladas pela Requerente (cfr. passagens da prova gravada supra referenciadas e transcrição de depoimento).
D. Com efeito, dos depoimentos produzidos na audiência, sem contraditório da Recorrente, não resulta que alguém tenha sido física ou verbalmente agredido, sequer agarrado ou impedido de se movimentar, ou sujeito a qualquer tipo de ameaças com qualquer mal.
E. Nenhum facto concreto foi descrito de onde pudesse resultar ter sido utilizada a força física, ou qualquer comportamento gerador de coacção moral sobre os funcionários da Requerente.
F. Não se verifica, portanto, qualquer suporte factual para a conclusão produzida na decisão recorrida de que houve violência, não sendo esta susceptível de se consubstanciar meramente na mudança de cadeados ou fechaduras – o que pode relevar tão só e apenas para preencher o pressuposto do esbulho.
G. Não se verificando violência, o procedimento próprio seria o comum ou inominado e não o procedimento nominado de restituição provisória de posse, pois a tal procedimento não cabe acorrer sempre que haja privação não consentida da posse, mas somente quando ela se dê mediante violência.
H. A posse da Recorrida está destituída de conteúdo útil ou função económica e social, provado que foi que o imóvel dos autos está abandonado, pelo que não é merecedora da tutela cautelar,
I. sendo certo que não afirmou a Recorrida pretender fazer fosse o que fosse com o imóvel dos autos, donde resultasse o seu aproveitamento económico; nenhuma função ou finalidade alegou pretender atribuir ao imóvel.
J. Bem pelo contrário o que se sabe, e foi demonstrado nos autos por via dos documentos juntos pela própria, é que a Recorrida requereu o cancelamento da licença para exploração de estabelecimento hoteleiro, e quanto ao casino que no mesmo imóvel existiu, não era (nem podia ser) pela mesma explorado.
K. Nem o imóvel está em condições para nele ser instalada qualquer actividade legal, de natureza comercial ou outra, - razão pela qual, foi objecto de ordem de encerramento, como é público e documentado nos autos, - e as obras que o mesmo demanda para que possa estar em condições de ser explorado, não podem pela Recorrida ser executadas, porquanto, não sendo dele proprietária, não detém legitimidade para requerer a obter a necessária licença.
L. Pelas mesmas razões nenhuma urgência se verifica tal como não existe prejuízo dificilmente reparável – cuja prova, ónus da Recorrida, deveria ser completa, - que justifique a pretensão da Requerente da providência, pressupostos que devem preexistir para o efeito do decretamento de qualquer providência, seja nominada seja inominada.
M. A Recorrida não correspondeu com a exigência de individualização dos efeitos previsíveis da sentença de mérito decorrente do princípio da instrumentalidade do procedimento relativamente à acção principal.
N. A decisão recorrida está inquinada por excesso de pronúncia, na parte em que sufraga o interesse e relevância da posse da Requerente para os possíveis efeitos da usucapião.
O. A decisão recorrida incorreu no vício de alguma jurisprudência que vem baralhando esbulho com violência e afirmando que a segunda se encontra presente sempre que o primeiro sucede. O que é, porém, manifestamente contrário ao conceito – até intuitivo – de violência.
P. O simples facto de o possuidor ter sido esbulhado não implica, automática e necessariamente que a espoliação haja sido efectuada mediante o emprego de coacção física ou moral. A própria lei faz eco desta separação. A começar pela necessidade que se sentiu de introduzir uma providência cautelar específica para o caso em que o esbulhador tenha recorrido a violência. Se todo o esbulho a acarretar, quando é que a ele não pode o possuidor acudir?
Q. A Requerente da providência agiu com abuso de direito e litigou de má fé.
R. A decisão recorrida ofende o princípio da ingerência mínima, e deveria decidir segundo o instituto da colisão de direitos, dando prevalência àquele que maior protecção jurídica merece, e que, evidentemente, é o direito da Recorrente.
S. A decisão recorrida violou, mormente, as disposições dos artigos 1204º do Código Civil e 326º, n.º 1, 332º, n.º 1, 563º, n.º 3 e 571º, n.º 1, al. d) do Código de Processo Civil.
Termos em que, e nos mais de Direito aplicáveis, de proceder o presente recurso e, por conseguinte, ser revogada a decisão recorrida com as legais consequências, assim se fazendo JUSTIÇA!”
*
Devidamente notificada, a requerente respondeu ao recurso, formulando as seguintes conclusões alegatórias:
“A. A Recorrente alega que não se verificava o requisito da urgência, e por conseguinte, da necessidade de tutela cautelar, pelo vários motivos então invocados, designadamente, porque a posse alegada pela Recorrente é destituída se qualquer conteúdo útil, - os quais são comuns a todas e quaisquer providências, sejam elas inominadas ou nominadas.
B. A Recorrente pretensamente adquiriu, em 22 de Outubro de 2015, o Imóvel em causa através de escritura pública de dação em cumprimento, logrando assim que o direito de propriedade fosse registado a seu favor em 27 de Outubro de 2015.
C. A titularidade do direito de propriedade sobre o Imóvel em causa está totalmente dependente da decisão que venha a ser tomada no processo n.º CV2-16-0008-CAO o qual corre os seus termos junto do 2º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Base.
D. A Recorrente em sede de oposição desmente todos estes factos já enunciados no Requerimento inicial, baseando-se em argumentos com pouco ou nenhum valor jurídico.
E. Acusa ainda a Recorrida de não ter pago a contribuição predial do imóvel em causa entre 2015 e 2018 e, por conseguinte, alega que a Recorrida não goza de qualquer posse sobre o Imóvel.
F. Como se sabe, a Recorrente goza da presunção registral de propriedade desde Outubro de 2015, o que significa que, a partir de tal data, a Recorrida deixou de ter legitimidade administrativa, nomeadamente em sede fiscal: daí que a contribuição predial e a renda da concessão do terreno passassem a ser endereçados à Recorrente, no domicílio fiscal por esta escolhido.
G. Pelo que carece a Recorrente de razão quando conclui que “(…) em face dos factos dados por provados, certo é que a posse da Requerente, Recorrida, nenhum conteúdo ou função económica e social contém, pelo não merece a tutela do direito. Donde decorre, por inerência e por argumento de necessidade, que nenhuma urgência tinha ou tem a Recorrente na providência decretada, porque a nada lhe serve, nem prejuízo algum lhe adviria do seu indeferimento”.
H. A Recorrente considera que a Recorrida não tinha ou tem qualquer urgência na providência decretada, por esta não lhe servir e porque o seu indeferimento não lhe traria qualquer prejuízo.
I. Em 28 de Dezembro de 2017, após pedido feito pela Recorrente para aprovação de projecto de alteração da obra de demolição e emissão da respectiva licença de construção, o Chefe de Departamento de Urbanização da DSSOPT, ao abrigo das competências em si delegadas pelo Director da DSSOPT, emitiu Despacho favorável.
J. Independentemente da sua extensão, uma obra de demolição não pode deixar de representar um acto negativo sobre um imóvel e que, necessariamente, implica prejuízos.
K. Com a procedência do pedido do processo n.º CV2-16-0008-CAO do 2º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Base, o registo da propriedade a favor da Recorrida será reconstituído e,
L. A obra entretanto licenciada, a favor da Recorrente, terá de ser assumida pela Recorrida,
M. Isto é, a Recorrida passará, assim, a assumir uma obra sobre a qual nada decidiu, na qual não teve qualquer intervenção, nomeadamente na escolha do seu executor, dos materiais utilizados, etc., podendo ficar com uma obra mal executada ou até inacabada (caso a decisão final do processo n.º CV2-16-0008-CAO ocorra antes do termo das obras).
N. Assim, carece a Recorrente de razão ao afirmar que “Não se verifica(rá) qualquer prejuízo, muito menos de difícil reparação para a posição jurídica da Recorrida.”
O. Com o procedimento cautelar visa-se evitar um prejuízo grave, que ameace um direito subjectivo e cujo perigo seja iminente. Razão pela qual, esta hipotética situação da vida real não pode esperar pela resolução final de uma acção declarativa ou executiva que, em regra, não é tão célere quanto as necessidades concretas da vida social, o que justifica prevenir-se e acautelar-se a forte possibilidade da dissipação dos bens materiais que garantam os interesses do requerente por parte do requerido.
P. A Recorrente considera ainda que a Recorrida não fez qualquer prova da existência da violência em que se sustentou a decisão recorrida. Ora, tal como descrito no Requerimento Inicial, no dia 8 de Abril de 2018, pelas 23 horas, cerca de quarenta indivíduos afectos à Recorrente e a mando desta invadiram o Imóvel.
Q. Terminadas estas operações, permanecerem no local cerca de uma dezena de indivíduos, até às 12 horas do dia seguinte (9 de Abril).
R. No dia 16 de Abril de 2018, a Recorrente afixou na vedação e à entrada do Imóvel diversos avisos que indicavam que, para além das obras já realizadas no seu perímetro, as obras de demolição iriam começar no dia 25 de Abril de 2018.
S. Face a todos os factos descritos pela Recorrida, alegou a Recorrente em sede de Oposição que os acontecimentos que ocorreram entre os dias 8 e 10 de Abril, eram apenas e só para demolir as obras não licenciadas do imóvel e para a remoção da parte do edifício com risco de cair devido de cair devido à má conservação.
T. Porém, isso não foi suficiente para alterar a convicção do douto Tribunal a quo pois que, como bem concluiu na Sentença recorrida “(…) depois da audição dos depoimentos das testemunhas oferecidas pela Requerida, especialmente os do Sr. C e do Sr. D, o Tribunal pensa que as razões alegadas pela Requerida são puramente um pretexto para retomar obrigatoriamente ao controlo do hotel.” (tradução da Sentença recorrida da responsabilidade da Recorrida)
U. A Recorrente privou a Recorrida da sua posse, sendo esta colocada numa situação em que não pôde continuar a exercê-la.
V. Considera-se que o esbulho foi violento quando, sendo exercido de forma directa e imediata sobre uma coisa, atinja de algum modo, ainda que por via indirecta ou reflexa, designadamente pelo seu cariz ameaçador ou intimidatório, a pessoa do possuidor.
W. A Recorrente, ao justificar o seu ponto de vista, recorre a doutrina e jurisprudência que seguem uma linha mais restritiva, ao considerarem que a violência relevante é aquela que é exercida contra a pessoa do possuidor, ou seja, que só é violenta a posse obtida através de um constrangimento físico ou moral sobre a pessoa, não sendo susceptível de verificar-se quando o acto de desapossamento for praticado na sua ausência.
X. Porém, não é essa, actualmente, a opinião maioritária, nem a que tem vindo a ser seguida pelos Tribunais em Macau nem pelos Tribunais Superiores em Portugal.
Y. Efectivamente, a colocação de uma vedação ao redor do Imóvel e a construção de um portão impedem a livre entrada de pessoas, as quais se sentem assim constrangidas, física ou moralmente, com aquelas construções.
Z. Tendo sido nesse sentido que se pronunciou e bem o douto Tribunal na sentença recorrida afirmando que “O Tribunal já explicou na primitiva sentença sobre a compreensão ao esbulho violento, pode rever aqui: (…) A compreensão tradicional entende que é apenas realizada à pessoa da coacção física e moral. No entanto, aparece uma nova compreensão sobre a definição de violência exercida sobre as coisas, que não se refere à coacção física ou moral, mas que também constitui violência. A prática de violência sobre as coisas significa que desocupa e demole, por força, os obstáculos que previnem o esbulho, tais como, portas, portões, muros, quadros, vedações, fechaduras, etc.” (negritos e tradução da Sentença recorrida da responsabilidade da Recorrida)
AA. No caso sub judice, a ocupação para iniciar um trabalho de obras de demolição alheio à sua vontade obsta à posse da Recorrida.
BB. Conforme descrito no Requerimento Inicial, a entrada e ocupação por parte de indivíduos afectos à Recorrida foi levada a cabo com o recurso à violência.
CC. Sendo que, o facto de se encontrarem no Imóvel mais de quarenta homens, tem o efeito de uma ameaça velada que provoca uma inibição da capacidade de reacção através de um processo psicológico.
DD. Também o Professor José Alberto dos Reis sustentava que a violência pode exercer-se sobre as coisas ou sobre as pessoas e pode ser física ou moral (in Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, p. 670).
EE. Tudo o que se expôs justifica que tenha sido decretada a presente Providência Cautelar de restituição provisória da posse, como forma de prevenir-se a futura e continuada violação de tal direito, nos termos dos artigos 326º, 332º e 338º do CPC e dos artigos 1203º e 1204º do Código Civil.
FF. A Recorrente, tal como fez em sede de Oposição, volta a acusar a Recorrida de litigar de má fé e em abuso de direito.
GG. A Recorrente volta a alegar ainda, como fundamento para o pedido de condenação em litigância de má fé, que a Recorrida mantém o prédio encerrado e ali não exerce ou explora qualquer actividade social ou comercial.
HH. Como referido, a Recorrente goza da presunção registral de propriedade desde Outubro de 2015.
II. Se o hotel se encontra hoje encerrado ao público e a Recorrida não pode ali explorar qualquer actividade comercial hoteleira, tal deve-se unicamente ao imbróglio jurídico em que a Recorrente a meteu e cujos contornos serão apreciados em sede própria.
JJ. E, se é verdade que a DSSOPT emitiu uma licença de obras de demolição a favor da Recorrente – crê-se unicamente face à sua legitimidade registral -, não é menos verdade, como refere o TUI, que “a licença é concedida sob reserva de direitos de terceiros”. Foi precisamente isso que a Recorrida aqui fez, acautelando os seus interesses, pelo que não se vê como possa a mesma estar a litigar com má fé ou em abuso de direito.
KK. Os factos invocados pela Recorrida nos presentes autos de providência cautelar (e em quaisquer outros) são todos fundamentados e correspondem à verdade. A Recorrida apenas recorreu aos meios processuais disponíveis para reaver a posse do seu Imóvel, pelo que a sua pretensão em nada excede os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim económico do direito que exerce.
Nestes termos, e nos melhores de Direito que Vossas Excelências doutamente suprirão, deverá o presente recurso ser julgado improcedente, confirmando-se as doutas Decisões proferidas pelo Tribunal a quo.
Mais deverá ser corrigido o efeito atribuído ao presente recurso, passando o mesmo a ter efeito meramente devolutivo ao abrigo do disposto na alínea b) do artigo 605º e do artigo 607º, ambos do Código de Processo Civil,
Assim realizando Vossas Excelências, uma vez mais, a boa e sã JUSTIÇA!”
*
Corridos os vistos, cumpre decidir.
***
II) FUNDAMENTAÇÃO
Foi indiciariamente dada como provada a seguinte factualidade:
1. O prédio que se discute nos presentes autos se situa em Macau, no Caminho das Hortas, n.ºs 554 a 668 e Avenida Padre Tomás Pereira, n.º 889, Taipa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o número 21366, o qual esteve registado a favor da requerente até 27 de Outubro de 2015.
2. Em 22 de Outubro de 2015, a requerida adquiriu o imóvel, através de escritura pública de dação em cumprimento, assim que o direito de propriedade foi registado a seu favor na referida data de 27 de Outubro de 2015.
3. O sócio da requerente, E, intentou uma acção judicial pedindo a nulidade da referida escritura de dação em cumprimento, a qual corre os seus termos sob o n.º CV2-16-0008-CAO junto do 2.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Base e se encontra devidamente registada junto da Conservatória do Registo Predial.
4. A requerida intentou uma acção de despejo contra a requerente, acção essa que se encontra suspensa até ao trânsito em julgado da decisão que vier a ser proferida no processo n.º CV2-16-0008-CAO.
5. Na sequência da outorga da escritura de dação em cumprimento, o sócio da requerente, E, intentou uma acção ordinária que correu termos no 3.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Base sob o n.º CV3-16-0070-CAO.
6. Pedindo que “…seja a deliberação alegadamente tomada no dia 25 de Setembro de 2015 declarada nula ou até inexistente, nos termos supra expostos e, em consequência, sejam igualmente declarados nulos todos e quaisquer actos que tenham sido tomados na consequência e/ou em execução da deliberação em crise, incluindo a dação em cumprimento mencionada supra celebrada por escritura pública em 22 de Outubro de 2015, relegando-se para fase ulterior a liquidação dos prejuízos causados”.
7. Foi proferida sentença nos referidos autos em 8 de Março de 2018 - cfr. Documento a fls. 56 a 70 e que aqui se dá por reproduzido e integrado para todos os efeitos legais).
8. E, conforme resulta da referida sentença, já transitada em julgado, o Tribunal considerou provado que o então representante da aqui requerente forjou a convocação da respectiva Assembleia Geral.
9. A tradição do imóvel nunca teve lugar e a requerida nunca tomou posse do imóvel, o qual permaneceu ininterruptamente, desde 22 de Outubro de 2015 até ao passado dia 10 de Abril de 2018, no controle da Requerente.
10. Mantendo esta ali, não só a sua sede social, mas também a guarda da escrituração mercantil e demais documentação societária e comercial.
11. Sucede que, no passado dia 26 de Fevereiro de 2018, a requerente tomou conhecimento de que representantes da requerida se deslocaram ao imóvel, com o intuito de ali afixar a licença de obra n.º 1024/2017 emitida pela Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes – sobre o teor da licença de obra vide fls. 75 e que aqui se dá por integralmente reproduzido parda todos os efeitos legais.
12. No passado dia 20 de Março p.p., operários da construção civil orientados por um representante da requerida, ou ao seu serviço, tentaram entrar no imóvel, visando dar início à dita obra.
13. Por instruções recebidas de representantes da requerente, foi negada a entrada a esses mesmos operários, com a justificação de que as obras violariam a providência cautelar que foi decretada em 10 de Dezembro de 2015 nos autos do processo n.º CV2-16-0008-CAO-A , e, bem assim, a decisão de suspensão tomada na acção de despejo supra referida.
14. As autoridades policiais foram então chamadas ao local e ordenaram que os referidos operários se retirassem do local, decisão essa que foi acatada pelo representante da requerida.
15. Com a ocorrência deste episódio, a requerente ficou a saber que a licença n.º 1024/2017, que a requerida solicitou à DSSOPT, se destina à demolição das obras ilegais que se encontram dentro do imóvel.
16. No dia 8 de Abril de 2018, pelas 23 horas, cerca de quarenta indivíduos afectos à requerida e a mando desta invadiram o imóvel.
17. E ameaçaram os guardas da sociedade de segurança privada contratada pela requerente que se encontravam no local, para que não resistissem nem utilizassem telemóveis a fim de alertar a PSP.
18. Para além disso, os referidos indivíduos afectos à requerida procederam à mudança de fechaduras, bem como à colocação de cadeados em diversas portas do imóvel.
19. Terminadas estas operações, permaneceram no local cerca de uma dezena de indivíduos, até às 12 horas do dia seguinte (9 de Abril).
20. Na manhã do dia seguinte, 10 de Abril de 2018, trabalhadores da construção civil afectos à requerida entraram no imóvel com um camião, munido de uma grua.
21. Os ditos trabalhadores começaram a construir um portão à entrada do imóvel, bem como uma vedação à volta do perímetro do imóvel.
22. Em pouco mais de 24 horas, os operários ao serviço da requerida conseguiram concluir a instalação do portão e cercaram por completo o imóvel com uma vedação.
23. Acto contínuo, a requerida ordenou que quatro funcionários de uma empresa de segurança privada por si contratada para o efeito passassem a controlar o portão de acesso ao imóvel.
24. Desde então, a requerida não permite a entrada no imóvel de qualquer pessoa que não esteja por si previamente autorizada.
25. No dia 16 de Abril de 2018, a requerida afixou na vedação e à entrada do imóvel diversos avisos - cfr. fotografia de fls. 88 e que aqui se dá por reproduzida e integrada para todos os efeitos legais.
26. É a requerente responsável pela segurança do imóvel.
27. Sendo, também, a requerente quem realiza os pagamentos das despesas referentes ao imóvel, tais como água, luz e gás.
28. A requerente tem vindo a praticar todos os actos acima referidos em nome próprio, mesmo depois da escritura de dação em cumprimento.
29. A requerente está convencida que é a legítima proprietária do imóvel.
30. Fazendo-o sempre publicamente, à vista de toda a gente e sem violência.

Feita a apreciação da oposição deduzida pela requerida, ora recorrente, o Tribunal não considerou provado que as diligências referidas nos pontos 16 a 24 supra visavam exclusivamente a demolição das obras ilegais encontradas no imóvel e remoção das estruturas que se apresentavam risco de desprendimento.
Mais considerou provados os seguintes factos:
A. Em 22 de Julho de 2016, a Direcção de Serviços de Turismo determinou o encerramento do estabelecimento hoteleiro sito no prédio em causa.
B. Em Maio de 2018, a requerida pagou a contribuição predial de 2015 e 2016 do terreno onde está implantado o imóvel.
C. Bem como e renda pela concessão por arrendamento de 2015 a 2018.
D. O imóvel dos autos encontra-se em estado de abandono.
E. No imóvel existem obras não licenciadas, as quais se apresentam em estado ruinoso ou degradado, algumas mesmo em risco de cair.
F. Existem diversas estruturas metálicas degradadas instaladas no imóvel que se apresentam risco de desprendimento e de cair.
G. Provado apenas que a vedação referida nos itens 21 e 22 dos factos provados foi apenas realizada em todas as entradas do imóvel e não cerca por completo o imóvel.
*
Vejamos as questões suscitadas pela recorrente.
Da alegada inutilidade da posse da requerida
Alega a recorrente que, na medida em que a requerente do procedimento cautelar não afirmou pretender atribuir ao imóvel qualquer função ou finalidade, isto é, não afectando o imóvel a qualquer actividade de natureza comercial ou actividade de outra natureza, a posse da requerente não contém nenhum conteúdo ou função económica e social.
Como decorre do artigo 338.º do Código de Processo Civil, são pressupostos ou requisitos do decretamento daquela providência cautelar a posse, o esbulho e a violência.
Daí que a questão de saber se a posse da requerente tem ou não utilidade para a mesma não reveste relevância para o caso concreto, por não consubstanciar um dos pressupostos de que depende o decretamento da providência de restituição provisória de posse.
Improcede, pois, o recurso nesta parte.
*
Da alegada inexistência de qualquer prejuízo para a requerente e falta de verificação do carácter de urgência
Conforme dito acima, o decretamento da providência cautelar de restituição provisória de posse depende da verificação efectiva dos pressupostos legais da posse, do esbulho e da violência.
Isto significa que, ao contrário do que entende a recorrente, o carácter da urgência e a prova do prejuízo grave e irreparável exigidos nos procedimentos cautelares comuns, não constituem pressupostos necessários para o decretamento daquela providência cautelar especificada.
Nestes termos, improcede o recurso quanto a esta parte.
*
Da verificação do pressuposto legal ― a violência do esbulho
A recorrente não questiona em sede de recurso nem a posse da recorrida nem o facto do esbulho, sustentando apenas que da factualidade indiciada não resulta verificada a violência a que se refere o artigo 338.º do CPC.
Entende o Professor Alberto dos Reis1 que “a violência tanto pode exercer-se sobre as pessoas, como sobre as coisas; é esbulho violento o que se consegue mediante o uso da força contra a pessoa do possuidor; mas é igualmente violento o que se leva a cabo por meio de arrombamento ou escalamento, embora não haja luta alguma entre o esbulhador e o possuidor”.
No mesmo sentido, observa Manuel Rodrigues2 que “a violência, porém, há-de exercer-se sobre as pessoas que defendem a posse, ou sobre as coisas que constituem um obstáculo ao esbulho, e não sobre quaisquer outras”, sendo que “a violência tanto pode consistir no emprego de força física, como em ameaças”.
No caso vertente, provado está que no dia 8.4.2018, pelas 23 horas, apareceram no local cerca de quarenta e tal pessoas afectas à recorrente, e a mando desta entraram e ocuparam o imóvel.
Nessa altura, apenas se encontravam lá algumas guardas de segurança contratadas pela recorrida a prestarem serviço de vigilância, tendo tais pessoas dito aos mesmos guardas para não resistirem nem utilizarem telemóveis evitando despertar a atenção da PSP. Ao mesmo tempo, aqueles mesmos indivíduos procederam à mudança de fechaduras e colocaram cadeados em diversas portas do imóvel, tendo permanecido cerca de dez pessoas no local até ao dia seguinte.
No dia 10.4.2018, alguns trabalhadores da construção civil afectos à recorrente entraram no imóvel com um camião munido de uma grua, tendo instalado um portão à entrada e vedações em todas as entradas do imóvel.
Acto contínuo, a recorrente colocou junto do portão quatro guardas de segurança para controlar o acesso de pessoas ao imóvel.
Ora bem, perante os factos acima descritos, dúvidas não restam de que os actos cometidos pela recorrente consubstanciam actos de esbulho com violência, apesar de não visarem directamente a pessoa da recorrida, antes tiveram como alvo imediato o bem possuído, sendo verdade que os comportamentos violentos foram exercidos sobre coisas que serviriam como obstáculo ao esbulho.
Conforme se decidiu no Acórdão deste TSI, no âmbito do Processo n.º 136/2005: “O acto de colocação de uma corrente e um grande cadeado, sem o conhecimento do possuidor, trata-se não só de um mero acto de impedir o acesso no objecto da posse, como de um acto de apropriar, para a sua esfera jurídica, o objecto da posse do possuidor. Como é óbvio, verifica aqui o esbulho violento.”
Ademais, face ao circunstancialismo em que o esbulho foi praticado, a saber, entraram no imóvel dezenas de pessoas afectas à recorrente, mandaram os guardas de segurança contratadas pela recorrida para não resistirem nem utilizarem telemóveis, procederam à mudança de fechaduras e colocaram cadeados em diversas portas do imóvel, instalaram um portão à entrada e vedações em todas as entradas com vista a controlar o acesso de outros indivíduos ao imóvel, somos a concluir que a recorrente logrou produzir um efeito intimidatório sobre a possuidora, ora recorrida, como se fosse uma ameaça levada a cabo por uma seita coagindo-a a suportar o desapossamento.
Considerando que os factos provados nos autos consubstanciam uma situação de esbulho violento, justificam que a requerente ora recorrida seja restituída provisoriamente à sua posse, improcedendo, assim, as conclusões das alegações da recorrente.
*
    Do alegado abuso de direito e litigância de má fé
    Alega a recorrente que a recorrida requereu procedimento cautelar bem sabendo não existir para tanto fundamento, alterou a verdade dos factos e omitiu outros relevantes, violando o dever de agir segundo os ditames da boa fé e, bem assim, o dever de cooperação.
    Por uma razão de economia e celeridade, transcrevemos aqui parte da decisão recorrida, com a qual concordamos inteiramente, para valer nos termos do artigo 631.º, n.º 5 do Código de Processo Civil:
“權利濫用
被聲請人又提出聲請人要求臨時返還對涉案物業的占有是構成權利濫用,理由是原本在涉案物業經營的酒店已被勒令停業,無任何其他商業活動在該物業內進行,所以聲請人的占有行為只會為被聲請人帶來損害,而不會為其創造任何利益。
對此觀點,法庭並不贊同。
事實上,在我們的法律制度內從來沒有為占有的保護設下以占有須為占有人帶來商業上的利益之前提,正如早前的判決中所述﹕“保護占有原因有﹕遏止暴力、維護社會安寧、保護占有背後的權利人、維護占有的公示效力、強化占有通往權利的可能”,占有的利益可以體現於由占有通往權利(例如取得時效)的可能性。現在被聲請人提出的情況與物的所有權人不使用其擁有的物的情況相類似,難道我們又可以以權利濫用為由侵奪他人之物?答案顯然是否定的。
我們認為行使占有的保護並不取決占有人實際利用占有的標的物來產生經濟或商業上的利益,單純維持對一物的占有,即使是閒置,已滿足了占有人的利益。
有見及此,被聲請人提出的這一理由無道理。
(…)
*
惡意訴訟
被聲請人提出聲請人在提起本保全程序時,清楚知道其屬明顯無理據,陳述了扭曲事實的內容,隱瞞對案件審理屬重要的事實,以及違反善意原則和合作原則。
為支持上述指控,被聲請人提出以下理由﹕
- 聲請人在最初聲請第23條提到涉案物業是聲請人經營酒店業務的地方,但實際上酒店當時已經被勒令停業;
- 聲請人在最初聲請第26條的陳述與事實不符;
- 聲請人故意隱瞞其沒有支付涉案物業的房屋稅和地租;
- 聲請人在提起本保全程序時沒有指出主訴訟為何。
根據《民事訴訟法典》第385條的規定﹕
“一、當事人出於惡意進行訴訟者,須判處罰款。
二、因故意或嚴重過失而作出下列行為者,為惡意訴訟人:
a)提出無依據之主張或反對,而其不應不知該主張或反對並無依據;
b)歪曲對案件裁判屬重要之事實之真相,或隱瞞對案件裁判屬重要之事實;
c)嚴重不履行合作義務;
d)以明顯可受非議之方式採用訴訟程序或訴訟手段,以達致違法目的,或妨礙發現事實真相、阻礙法院工作,或無充分理由而拖延裁判之確定。
三、…………。”
首先,根據早前作出的判決,以及上述作出的理由說明,明確顯示聲請人提起本保全程序並非無道理,相反,應裁定理由成立。
另外,關於聲請人在最初聲請第23條提到涉案物業是聲請人經營酒店業務的地方的陳述有否扭曲事實真相的問題,法庭認為聲請人原來所經營的酒店是否已停業不屬對案件的審理屬重要的事實,另一方面,卷宗內無資料顯示相關停業是確定性停業,還是臨時性停業,不排除聲請人在陳述有關內容時,覺得酒店的業務屬暫時性處於休克狀態,企業仍然存在,所以不能單憑有關表述裁定構成惡意訴訟人。
至於最初聲請第26條所陳述的內容,只是涉及於2018年3月20日聲請人拒絕被聲請人的人員進入酒店時所提出的解釋,認為進行清拆工程是違反卷宗CV2-16-0008-CAO-A內作出的禁令,純屬聲請人的個人理解,法庭看不到相關事實如何影響本案的審理。
關於聲請人故意隱瞞其沒有支付涉案物業的房屋稅和地租的指控,事實上,在最初聲請第69條內,聲請人是沒有表明過其有支付相關房屋稅和地租,而是籠統地指出其有支付關於涉案物業的費用,在此,不能明顯得出具有隱瞞事實的故意。
最後,聲請人在提起本保全程序時沒有即時指出相對應的主訴訟,這做法是否構成違反合作原則?除了對相反見解給予應有尊重外,法庭未見出現違反合作原則,一方面,法律無要求當事人在提起保全程序時須即時表明主訴訟的類型,只不過適時提起主訴訟是能避免保全措施失效;另一面,聲請人亦從來沒有被任何人(包括法庭)要求指出主訴訟類型,難以認定聲請人有違反合作的義務。另外,雖然在聲請人提起本保全程序時,已出現若干宗聲請人與被聲請人的案件,又或是聲請人的股東與被聲請人之間的案件,但無任何情節反映本案與該等案件有直接的牽連關係而須以附文方式併附於已提起的訴訟,相反,不妨礙聲請人日後提起的主訴訟是返還或維持占有的訴訟,因此,無法得出被聲請人指稱的結論。
有見及此,裁定針對聲請人構成惡意訴訟人的指控不成立。”
A nosso ver, louvamos a acertada decisão acabada de descrever e com a qual concordamos, pelo que não merecendo censura a decisão recorrida, o recurso tem que soçobrar.
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III) DECISÃO
Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso interposto pela recorrente/requerida A Holdings Limited, mantendo a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
Registe e notifique.
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RAEM, 18 de Dezembro de 2018
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong
Fong Man Chong
1 Código de Processo Civil Anotado, Volume I, página 670
2 A Posse - Estudo de Direito Civil Português, página 366
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Recurso cível 908/2018 Página 26