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ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório
A interpôs recurso contencioso de anulação do despacho do Secretário para a Economia e Finanças, de 26 de Setembro de 2005, que lhe indeferiu o pedido de residência temporária em Macau.
Por acórdão de 20 de Julho de 2006, o Tribunal de Segunda Instância, (TSI) deu provimento ao recurso, anulando o acto administrativo, com o fundamento de que o Regulamento Administrativo n.º 17/2004, de 14.6, com base no qual foi praticado o acto recorrido, é ilegal uma vez que nenhuma lei ordinária autorizou a sua emissão.
Inconformado, interpõe o Secretário para a Economia e Finanças, recurso jurisdicional para o Tribunal de Última Instância (TUI) formulando as seguintes conclusões:
1. Os tribunais não podem declarar a ilegalidade de todo um regulamento, apenas podendo recusar, com fundamento em ilegalidade, a aplicação de normas certas e determinadas;
2. Da Lei n.º 4/98/M resulta para o Governo o dever de criar regulamentação que permita concretizar as directivas de política laboral contidas naquele diploma;
3. A ratio de todas as normas do Regulamento Administrativo n.º 17/2004 é precisamente a prossecução dos objectivos de política laboral assinados ao Governo pela Lei n.º 4/98/M;
4. Ainda que assim não se entenda, ao abrigo da Lei Básica sempre o Chefe do Executivo poderá, por meio de regulamentos independentes, criar normas em todos as áreas que não estejam reservadas à Assembleia Legislativa nem reguladas em lei em sentido formal;
5. As normas dos artigos 3.°, n.° 1, e 9.°, n.° 1, al. 1), do Regulamento Administrativo n.º 17/2004 não se incluem entre as matérias reservadas à Assembleia Legislativa nem estavam (ou estão) reguladas por lei;
6. O acórdão recorrido interpretou erradamente as normas do artigo 10.° da Lei n.º 4/98/M e dos artigos 50.°, n.° 5, 67.°, e 71.°, n.° 1, da Lei Básica.

A Ex. ma Procuradora-Adjunta emitiu douto parecer em que sustenta o seguinte:
Quanto à questão prévia suscitada pela entidade recorrente:
- Deve entender-se que o Tribunal pode conhecer oficiosamente da questão da legalidade de um Regulamento;
-Quanto à questão de fundo:
- De acordo com o Direito Constitucional chinês o poder de emitir regulamentos administrativos cabe ao Conselho de Estado, enquanto o poder legislativo cabe à Assembleia Nacional Popular e à sua Comissão Permanente;
- No Direito chinês o poder de decretar regulamentos não depende necessariamente da existência de uma lei no sentido formal, sendo aceite na doutrina a figura do regulamento autónomo;
- Também no Direito português a figura do regulamento autónomo ou independente é aceite;
- A Lei Básica não afasta a possibilidade de regulamentos autónomos;
- Os regulamentos administrativos devem observar o princípio da legalidade, no sentido de que não podem contrariar normas legais (princípio da precedência de lei) e no sentido de que a prática de um acto pela Administração tem de corresponder à sua previsão em lei vigente (princípio da reserva de lei);
- Deve entender-se que o Chefe do Executivo tem o poder regulamentar originário sobre matérias que caibam na sua competência e que não estejam reservadas à Assembleia Legislativa.

II - Os Factos
O Acórdão recorrido considerou provados os seguintes factos:
A) A requereu a fixação de residência em Macau;
B) O Instituto de Promoção do Comércio e do Investimento de Macau, emitiu o seguinte parecer:
“1. A requerente A, casada, comerciante, residente no Interior da China, nascida no Interior da China, de nacionalidade chinesa, portadora do passaporte n.º G ......, emitido no dia ...... de ...... de 2003 pela República Popular da China, válido até dia 18 de Dezembro de 2008; também portadora do bilhete de residência permanente n.º ...... emitido no dia ...... de ...... de 2002 pelo Governo de Nauru, válido até dia 4 de Setembro de 2012, pede, nos termos do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 14/95/M, de 27 de Março, com a redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 22/97/M, de 11 de Junho, o direito de residência temporária em Macau.
Nos termos do artigo 1.º, n.º 2 do referido Decreto-Lei, o pedido do direito de residência temporária da recorrente habilita:
B, cônjuge da recorrente, nascido no Interior da China, de nacionalidade chinesa, portador do passaporte n.º G ......, emitido no dia ...... de ...... de 2001 pela República Popular da China, válido até dia 21 de Maio de 2006; também portador do bilhete de residência permanente n.º ...... emitido no dia ...... de ...... de 2002 pelo Governo de Nauru, válido até dia 4 de Setembro de 2012
C, descendente menor da requerente, nascido em ...... de ...... de 1994 no Interior da China, de nacionalidade chinesa, portador do passaporte n.º G ......, emitido no dia ...... de ...... de 2001 pela República Popular da China, válido até dia 21 de Maio de 2006, anexado ao Bilhete de residência Permanente de Nauru da requerente.
D, descendente menor da requerente, nascido em ...... de ...... de 1999 no Interior da China, de nacionalidade chinesa, portador do passaporte n.º G ......, emitido no dia ...... de ...... de 2001 pela República Popular da China, válido até dia 21 de Maio de 2006, anexado ao Bilhete de residência Permanente de Nauru da requerente.
2. De acordo com o despacho n.º 120-I/GM/97 do Governador de Macau, o Corpo de Polícia de Segurança Pública emitiu um parecer sobre os documentos de viagem da recorrente e das referidas pessoas do agregado familiar da mesma, e notificou este Instituto de que os documentos de identificação entregues pelos interessados reúnem as condições para pedir residência pelo investimento (v. Documentos a fls. 159-169).
3. A recorrente pede o direito de residência temporária em Macau, tendo como base um investimento em bens imóveis de valor superior a um milhão de patacas:
(1) Número da propriedade predial: ......
Rua........, n.º ......., Edifício........., Andar ......, Bloco......., Macau
O preço do prédio no relatório da Conservatória do Registo Predial: 1.146.513,00 patacas
Data do Registo: dia 2 de Julho de 2004 (125)
(2) Número da propriedade predial: ......
Avenida........, n.º ......, Edifício........., Andar.........., Bloco .........., Macau
O preço do Edifício no relatório escrito da Conservatória do Registo Predial: 1.052.130,00 patacas.
Data do Registo: dia 19 de Setembro de 2002 (34)
Dia 2 de Julho de 2004, por seu prédio (1), a recorrente pediu um empréstimo de 500.000,00 dólares de Hong Kong à companhia do Banco ...... , Limitada, e em 5 de Agosto de 2004, apresentou o certidão da prestação pecuniária emitida pelo referido banco (v. Documento a fls. 148), comprovando que até dia 3 de Agosto de 2004, do referido empréstimo, ainda restam 492.009,88 dólares de Hong Kong e o montante realmente investido superou a casa de um milhão de patacas, chegando ao valor legal de investimento estipulado no Decreto-Lei n.º 14/95/M; e a recorrente promete manter a propriedade predial equivalente ao valor legal de investimento (v. Documento a fls.171).
4. Dia 31 de Janeiro de 2005, este Instituto recebeu um ofício da Direcção dos Serviços para os Assuntos Laborais a que se juntando dois autos de notícia feitos pelo CPSP. Nestes autos de noticia, assinala-se que a requerente A e o seu cônjuge B prestavam trabalho em Macau, sem autorização, na Av. ...... n.º ..... Garden..... Bloco.....Rés do Chão, Macau, e foram descobertos pelo CPSP no dia 23 de Julho de 2004, pelo que foram punidos por sanção administrativa (v. Documentos constantes de fls. 152 e 158).
Justamente por isso, nos termos do artigo 2.º, n.º 4, do Regulamento Administrativo n.º 17/2004, a Direcção dos Serviços para os Assuntos Laborais considera que a requerente A e o seu cônjuge B prestavam trabalhos ilegais, pois como não residentes, exercem actividade em proveito próprio, sem observância do regulamento. Segundo o artigo 9.º do mesmo Regulamento Administrativo, a não observação da referida norma é punida com multa de 5.000.00 a 20.000,00 patacas. Segundo o ofício da Direcção dos Serviços para os Assuntos Laborais e os documentos da Repartição das Execuções Fiscais, apresentados pela requerente, a requerente e o seu cônjuge foram punidos cada um com multa de 20.000,00 patacas, sem se referir a outras sanções acessórias (v. Documentos a fls. 152 e 169).
Como a recorrente A e o seu cônjuge B envolveram-se no trabalho ilegal em Macau, este Instituto notificou-os verbalmente sobre a questão, pedindo-lhes que apresentassem contestação escrita e explicassem os factos de infracção, e a requerente entregou contestação escrita respectivamente nos dias 22 de Abril de 2005 e 27 de Julho do mesmo ano (v. Documentos a fls. 164 e 165).
Na contestação do dia 22 de Abril de 2005, a recorrente A e o seu cônjuge B defenderam-se da sua infracção, salientando ser evidente que ambos sabiam que não podiam trabalhar em Macau, mas que, como eram patrões do estabelecimento comercial, eles frequentemente apareciam no mesmo, ajudando os pais a deslocar algumas mercadorias, sem saber que isso constituísse trabalho ilegal, violando assim a norma. E esperavam que se considere o seu caso e se dê uma oportunidade a eles (v. Documento a fls. 164 ).
Como ainda não recebeu ofício ou certificado emitido pela organismo concernente para saber se a recorrente interpôs recurso ou formulou reclamação da referida sanção, este Instituto comunicou a recorrente de que este Instituto só trataria mais o caso depois de ter recebido os referidos documentos comprovativos.
Dia 27 de Julho de 2005, a recorrente A veio mais uma vez a este Instituto, afirmando que ela própria e o seu cônjuge não tinham interposto recurso ou reclamação da sanção a eles aplicada pela Direcção dos Serviços para os Assuntos Laborais e que eles já pagaram, cada um, uma multa de 20.000.00 patacas e apresentaram os respectivos documentos comprovativos. Eles esperam que este Instituto deferisse o seu pedido (v. Documentos a fls. 165 e 170).
Como todos sabem, durante longo tempo, a questão de trabalho ilegal tem suscitado influências negativas à normalidade da vida social e ao mercado de mão-de-obra de Macau. Mediante medidas adequadas, o Governo da Região Administrativa Especial empenhava-se em solucionar tal fenómeno. A promulgação do Regulamento Administrativo n.º 17/2004, sobretudo, visa combater o trabalho ilegal através de norma jurídica, a fim de garantir a oportunidade normal de emprego dos residentes locais.
Antes da entrada em vigência do Regulamento Administrativo n.º 17/2004 (Regulamento sobre a Proibição do Trabalho Ilegal), as personalidades dedicadas ao trabalho ilegal em Macau só apareciam no tribunal na qualidade de testemunhas, pois na altura não haviam legislação que previsse sanção a tais personalidades.
Após a entrada em vigência do Regulamento Administrativo n.º 17/2004 (Regulamento sobre a Proibição do Trabalho Ilegal) no dia 15 de Junho de 2004, a pessoa que exerce actividade laboral em Macau sem qualidade para tal é punida com multa de 5.000,00 a 20.000,00 patacas e a sanção acessória de ser impedido de exercer qualquer actividade laboral em Macau por um período de dois anos.
Além disso, o artigo 11 da Lei n.º 6/2004 ( Lei da Imigração Ilegal e da Expulsão) também regula o fenómeno do trabalho ilegal, estipulando que, quando a pessoa não residente for descoberta no exercício de trabalho ilegal, a autorização de sua permanência na REAM pode ser revogada mediante despacho do Chefe do Executivo e ela própria também pode ser expulsa...
Da legislação acima referida, pode-se ver que, apesar da actual questão de certa carência de mão-de-obra, a produção das respectivas leis não foi adiada, pelo contrário, sob a condição da salvaguarda dos interesses públicos, vem se fortalecendo paulatinamente a legislação destinada a combater o fenómeno de trabalho ilegal e proteger dos trabalhadores legais, e ao mesmo tempo, já existe um determinado sistema para solucionar a carência de mão-de-obra, por exemplo, pode-se, nos termos da lei, pedir o Título de Identificação de Trabalhador não Residente à Direcção dos Serviços para os Assuntos Laborais, a fim de contribuir para o mercado de mão-de-obra de Macau, em vez de permanecer ilegalmente em Macau, exercendo actividades de trabalho ilegal.
Nos termos do artigo 9.º, n.º 2, alínea 1), da Lei 4/2003, ao conceder autorização de residência na Região Administrativa Especial de Macau, o Chefe do Executivo deve atender ao cumprimento ou não, pelo recorrente, das leis da REAM, e a outros elementos. Segundo o parecer deste Instituto n.º XXX/XXXX/XXX/XXXX, relativo aos requerentes de residência pelo investimento e ao problema de “trabalhador ilegal”, aprovado pelo despacho proferido pelo Secretário para a Economia e Finanças no dia 12 de Agosto de 2004, a referida recorrente A, apesar do seu investimento formal não inferior a um milhão de patacas em bens imóveis de Macau, foi denunciada de envolvimento no “trabalho ilegal”, e este facto revela que, durante a sua permanência em Macau, a recorrente não cumpriu as leis da Região Administrativa Especial de Macau, e pode-se propor que seja indeferido o pedido do direito de residência temporária.
Com base nos referidos factos e atentos aos argumentos jurídicos, para assegurar a estabilidade de Macau, é difícil dar uma proposta positiva ao pedido de residência temporária formulado pela recorrente A.
Proponho que, nos termos do artigo 9.º, n.º 2, alínea 1) da Lei n.º 4/2003, subsidiariamente aplicável segundo o artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 14/95/M, seja indeferido o pedido de residência temporária da recorrente A”;
C) O Secretário para a Economia e Finanças proferiu, em 31 de Agosto de 2005, despacho concordante com o parecer que antecede.
Este é o acto recorrido.

III – O Direito
1. As questões a apreciar
  a) Se o Acórdão recorrido violou os seus poderes de cognição ao ter declarado ilegal todo o Regulamento n.º 17/2004, não cuidando de aquilatar da legalidade da norma concretamente ao caso em apreciação;
  b) Se o acto administrativo recorrido aplicou o Regulamento n.º 17/2004.


2. Não aplicação do Regulamento Administrativo n.º 17/2004
A apreciação da segunda questão precede a apreciação da primeira, por razões de lógica formal.
O ora recorrente, Secretário para a Economia e Finanças, entende que o Chefe do Executivo tem o poder regulamentar originário sobre matérias que caibam na sua competência e que não estejam reservadas à Assembleia Legislativa; e que, portanto, o Acórdão recorrido, ao decidir que o Chefe do Executivo não podia ter elaborado o Regulamento Administrativo n.º 17/2004, violou os artigos 50.°, n.° 5, 67.°, e 71.°, n.° 1, da Lei Básica.
Salvo melhor opinião, antes de entrar na apreciação de tal questão, há outra, que lhe subjaz.
É que, ao contrário do que se diz no Acórdão recorrido, o acto administrativo não aplicou nem deixou de aplicar este Regulamento. As coisas passaram-se de forma diversa.
No dia 23 de Julho de 2004, a recorrente e o marido foram encontrados a trabalhar, pelo que, não o podendo fazer, por não serem residentes de Macau, foram punidos pela Direcção dos Serviços para os Assuntos Laborais, com uma sanção administrativa, ao abrigo do Regulamento Administrativo n.º 17/2004.
A recorrente e o marido pagaram a multa e não impugnaram o acto punitivo, que se consolidou na Ordem Jurídica.
E, por anteriormente terem praticado uma infracção administrativa e sido sancionados com a tal multa, mais tarde, por meio do acto administrativo recorrido foi-lhes recusada a fixação de residência em Macau.
Ora, como se vê, o acto administrativo não aplicou nem deixou de aplicar o Regulamento Administrativo n.º 17/2004. Quem o fez foi o acto sancionatório da Direcção dos Serviços para os Assuntos Laborais, que não foi impugnado.
  O que o acto administrativo aplicou foi o art. 9.º, n.º 2, alínea 1) da Lei n.º 4/2003, que estatui que “Para efeitos de concessão da autorização referida no número anterior deve atender-se, nomeadamente, aos seguintes aspectos:
  1) Antecedentes criminais, comprovado incumprimento das leis da RAEM ou qualquer das circunstâncias referidas no artigo 4.º da presente lei”.
   Norma essa aplicável, como se diz no próprio despacho, por força do art. 11.º do Decreto-Lei n.º 14/95/M1, de 27 de Março, que criou incentivos à captação de investimentos e à fixação de quadros dirigentes e técnicos especializados. E dispunha aquele art. 11.º que “Aos indivíduos que solicitem fixação de residência ao abrigo deste diploma é subsidiariamente aplicável o regime geral de entrada, permanência e fixação de residência em Macau”.
Logo, o acto administrativo não aplicou o Regulamento Administrativo n.º 17/2004. Limitou-se a constatar, como um dado de facto, que a requerente havia sido punida ao abrigo de tal Regulamento, punição essa que se consolidou por não ter sido impugnada e que constituía “comprovado incumprimento das leis da RAEM”.
Assim, mesmo que o Regulamento Administrativo n.º 17/2004 contivesse qualquer vício, o Acórdão recorrido não se podia basear nele para anular o acto administrativo, pela simples razão de que o acto administrativo não o aplicou.
Decidindo em sentido contrário, fez o Acórdão recorrido má aplicação da lei e só por isso tem de ser revogado.

IV - Decisão
Face ao expendido, revogam o Acórdão recorrido, devendo o TSI apreciar as questões suscitadas pela recorrente do recurso contencioso, se outro motivo a tal não obstar.
Sem custas.

Macau, 30 de Abril de 2008.

Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Sam Hou Fai – Chu Kin
A Magistrada do Ministério Público
presente na conferência: Song Man Lei

1 Entretanto, substituído pelo Regulamento Administrativo n.º 3/2005.
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Processo n.º 46/2006