Processo n.º 73/2018
Recurso Penal
Recorrente: A
Recorrido: Ministério Público
Data da conferência: 28 de Novembro de 2018
Juízes: Song Man Lei (Relatora), Sam Hou Fai e Viriato Manuel Pinheiro de Lima
Assuntos: - Crime de homicídio
- Erro notório na apreciação da prova
- Medida concreta da pena
SUMÁRIO
1. Existe erro notório na apreciação da prova quando se retira de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada ou tarifada, ou quando se violam as regras da experiência ou as legis artis na apreciação da prova. E tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passe despercebido ao comum dos observadores.
2. Nos termos do art.º 65.º do Código Penal de Macau, a determinação da medida da pena é feita “dentro dos limites definidos na lei” e “em função da culpa do agente e das exigências de prevenção criminal”, tanto de prevenção geral como de prevenção especial, atendendo a todos os elementos pertinentes apurados nos autos, nomeadamente os elencados no n.º 2 do mesmo artigo.
3. Ao Tribunal de Última Instância, como Tribunal especialmente vocacionado para controlar a boa aplicação do Direito, não cabe imiscuir-se na fixação da medida concreta da pena, desde que não tenham sido violadas vinculações legais – como por exemplo, a dos limites da penalidade – ou regras da experiência, nem a medida da pena encontrada se revele completamente desproporcionada.
A Relatora,
Song Man Lei
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:
1. Relatório
Por Acórdão proferido pelo Tribunal Colectivo do Tribunal Judicial de Base em 24 de Abril de 2018, A, arguido nos presentes autos, foi condenado, pela prática de um crime de homicídio p.p. pelo art.º 128.º do Código Penal, com circunstância agravante prevista no art.º 22.º da Lei n.º 6/2004, na pena de 16 anos de prisão.
Inconformado com a decisão, recorreu o arguido para o Tribunal de Segunda Instância, que julgou improcedente o recurso, mantendo a decisão recorrida.
Vem agora o arguido recorrer para o Tribunal de Última Instância, formulando na sua motivação do recurso as seguintes conclusões:
1. No caso em apreço, o TJB deu como provados todos os factos descritos na acusação, condenando o recorrente, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de homicídio previsto e punido pelo artigo 128.º do CP, com circunstância agravante prevista no artigo 22.º da Lei n.º 6/2004, na pena de 16 anos de prisão. O recorrente interpôs recurso para o TSI, que por seu lado negou provimento ao seu recurso e manteve a sentença do TJB.
2. No entender do recorrente, a respectiva decisão deve ser anulada por incorrer no erro notório na apreciação da prova referido no artigo 400.º, n.º 2, al. c) do CPP e violar o princípio in dubio pro reo, bem como infringir o disposto nos artigos 40.º e 65.º do CP ao determinar uma pena demasiado pesada.
3. Quanto ao dolo do recorrente, o TSI refere no seu acórdão do seguinte modo: “Pode-se saber de acordo com as regras da experiência que a vítima não podia sufocar-se a si mesma, quer estava deitada de barriga para cima quer para baixo, mas há que existir uma força externa que a asfixiou, isto é, o recorrente que na altura estava no mesmo quarto e tapou a sua boca e nariz, tolhendo a sua respiração. Quando a sua boca e nariz foram tapadas pelo recorrente, a ofendida resistiu com certeza. Logo, o recorrente precisou de fazer grandes esforços para a manter sob controlo.” (sublinhados nossos). Salvo o devido respeito, o recorrente discorda deste entendimento.
4. A conclusão acerca do modus operandi a que o TSI chegou só com base nas regras da experiência excede claramente o âmbito que as “regras da experiência” podem razoavelmente cobrir.
5. Acresce que, o TSI presume, com base nas regras da experiência, que “a ofendida resistiu com certeza”, inferindo assim o processo do homicídio doloso. Presunções essas não só carecem de prova mas se revelam inequivocamente incompatível com as provas existentes.
6. Mesmo que a perícia tenha revelado a existência de vestígios de DNA do recorrente na unha da mão direita da ofendida, conforme o ponto 6 dos factos provados, o recorrente e a ofendida foram naquela altura parceiros sexuais e residiram no mesmo quarto durante algum tempo. Logo, a mera existência dos vestígios de DNA sem qualquer indício de resistência no corpo da ofendida não basta para fazer crer, indubitavelmente, a dita versão do homicídio doloso.
7. Logo, na ausência de outras provas, as regras da experiência ou o senso comum não bastam, por si só, para nos levar a acreditar firmemente a versão do TSI, ou seja, o processo de homicídio supra presumido já afasta a possibilidade de o recorrente ter praticado o facto com falta de consciência ou por negligência.
8. Por outro lado, a ver do TSI, a calma mostrada pelo recorrente após o facto revela-se incompatível com o homicídio por negligência por ele sustentado e contraria o senso comum. O mesmo Tribunal ainda indica que, conforme decorre do senso comum, se o agente tivesse cometido o crime só por negligência, não teria fugido com a tranquilidade, mas se teria entregue à polícia e tentado salvar a morta.
9. Com o devido respeito, não entendemos que isso é o senso comum. Caso contrário, não existiria o crime de fuga à responsabilidade previsto e punido pelo artigo 89.º da Lei n.º 3/2007 (Lei do Trânsito Rodoviário). A lei não permite a qualificação automática do facto como crime doloso só por causa da fuga do responsável pelo acidente de viação.
10. Portanto, a fuga e o dolo são duas coisas diferentes. Fugir do local por “sentir culpa” só pode servir de elemento comprovativo da existência do dolo, mas, na falta de outras provas, não se pode dar como provado o dolo do recorrente dependendo só disso e do senso comum. Contudo, a decisão em crise concluiu no sentido de o recorrente ter agido com dolo de matar. Assim sendo, a mesma deve ser anulada por incorrer no erro notório na apreciação da prova consagrado no artigo 400.º, n.º 2, al. c) do CPP.
11. Por um lado, após a ocorrência do facto, não podemos presumir, mediante pura imaginação e senso comum, os motivos que determinaram o cometimento do facto, o modus operandi e o estado mental do agente, etc. Por outro lado, o recorrente admitiu ter a ver com o facto e disse não existir mais ninguém no local da ocorrência. Nesta circunstância e de acordo com o princípio in dubio pro reo, não se deve dar como provado o dolo de matar e a respectiva condenação deve ser convolada para a de homicídio por negligência previsto e punido pelo artigo 134.º do CP.
12. Além disso, o recorrente ainda entende que a pena aplicada é excessiva.
13. O recorrente confessou a maioria dos factos constantes da acusação e, devido ao sentimento de culpa, voltou a Macau a entregar-se às autoridades policiais por sua iniciativa, depois de ter decorrido 4 anos desde a ocorrência do facto e a sua fuga. Daí que, o circunstancialismo que milita a favor dele não só compreende a delinquência primária, mas também deve incluir a sua confissão e o facto de ele entregar-se voluntariamente. Porém, tais elementos não foram considerados pelo tribunal, o que viola o disposto no artigo 65.º do CP.
14. Além disso, não se apuram, até agora, os factores a considerar na determinação da medida da pena indicados na pág. 16 da sentença do TJB, designadamente o modo de execução do facto, a intensidade do dolo, os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram. Nem sequer sabemos se o recorrente premeditou o crime, se ele tem uma personalidade altamente violenta e se usou qualquer objecto para cometer o facto.
15. Face à falta de clareza acerca dos muitos elementos, a pena deve ser fixada mais próximo do limite mínimo da moldura penal, tal como se refere na declaração de voto vencido junta ao acórdão do TSI.
16. É certo que o recorrente fez com que a ofendida perdesse a vida. O seu acto é absolutamente abominável e deve ser punido, só que a pena aplicada deve corresponder à medida da culpa.
17. Atenta a jurisprudência de Macau, nomeadamente a do TUI, no acórdão do processo n.º 18/2018 e a do TSI, no acórdão do processo n.º 285/2003, pode-se saber que a conduta do recorrente é claramente distinta das descritas nos últimos casos, que por seu lado são mais graves e violentas. Apesar duma circunstância agravante de permanência ilegal no caso vertente, tem que haver uma diferença da medida da pena entre o delito em causa e os mais graves.
18. Portanto, deve haver uma redução da medida da pena por a decisão em crise violar o princípio da proporcionalidade entre a pena e a culpa bem como o disposto no artigo 40.º do CP.
19. Ultimamente, o recorrente é delinquente primário, já tem 52 anos de idade. Ele tem como as suas habilitações literárias o ensino secundário complementar e foi um trabalhador assalariado antes de ser preso. Tal como se refere nas várias cartas escritas por ele juntas em anexo aos autos, o recorrente sabe que cometeu um grande erro, já fiz uma introspecção profunda e pretende conduzir uma nova vida após ter cumprido a pena. No entanto, o recorrente terá mais de 60 anos após a libertação, sendo quase impossível a realização da finalidade da sua reintegração social.
20. Daí que uma pena demasiado pesada não se revela favorável ao recorrente. Por isso, a ver dele, tendo em conta a prevenção geral e especial, a medida da pena deve ser reduzida. No nosso entender, mesmo que se mantenha a condenação, há claramente espaço para a redução da pena, que deve ser reduzida para medida não superior a 12 anos de prisão.
Respondeu o Ministério público, entendendo que não merece o acórdão recorrido a censura que lhe vem dirigida, pelo que deve ser mantido, rejeitando-se o recurso ou negando-se-lhe provimento.
Nesta instância, a Digna Magistrada do Ministério Público emitiu o douto parecer, mantendo a posição já exposta na resposta à motivação do recurso.
Foram corridos vistos.
Cumpra decidir.
2. Os Factos
Nos autos foram dados como provados os seguintes factos:
1. O recorrente A é residente sul-coreano.
2. Em 4 de Agosto de 2013, o recorrente entrou em Macau pelo Posto Fronteiriço do Porto Exterior com o passaporte sul-coreano n.º MXXXXXXXX, e foi-lhe concedida autorização de permanência até 24 de Agosto de 2013. Seguidamente, o CPSP revogou a referida autorização de permanência e facultou-lhe um novo período de permanência autorizado até 19 de Agosto de 2013. (vide 174 e 627 dos autos)
3. O recorrente não saiu de Macau após findo o supra aludido período autorizado.
4. Em 24 de Agosto de 2013, o recorrente celebrou um contrato de arrendamento com o representante do [Fomento Predial Limitada], arrendando, pela prestação mensal de HKD4.600,00, o quarto X2 da fracção X no [Endereço], com o prazo de arrendamento compreendido entre 26 de Agosto de 2013 e 25 de Fevereiro de 2014. A partir de 26 de Agosto de 2013, o mesmo começou a residir no quarto X2 da referida fracção. (a cópia do contrato de arrendamento consta de fls. 10 e v dos autos)
5. A atrás mencionada fracção foi remodelada em três quartos independentes (o quarto localizado no meio do corredor que leva à porta da fracção é denominado quarto X1, o quarto situado no final do corredor designa-se quarto X2, e o primeiro quarto à direita da porta X3), todos com casa de banho e lavatório independente.
6. Por volta de Dezembro de 2013, o recorrente conheceu B, ou seja, a ofendida, em estabelecimento de jogo em Macau. Mais tarde os dois tornaram-se parceiros sexuais, e B começou a morar na fracção X2 em causa com o consentimento do recorrente, e deslocou-se, juntamente com este, ao [Fomento Predial Limitada] para pagar as rendas da fracção.
7. Na manhã do dia 6 de Janeiro de 2014, cerca das 11h18, B saiu da fracção em apreço para ir trabalhar na [Farmácia Chinesa]. Cerca de 9 minutos mais tarde, ou seja, por volta das 11h27, o recorrente também saiu da fracção. Cerca das 12h53 do mesmo dia, o recorrente voltou à fracção e permaneceu no quarto X2. Por volta das 22h15 daquela noite, B voltou à fracção. No momento ela estava vestida com um casaco de manga comprida de cor vermelha, roupa de cor vermelha (com uma sequência de palavras no peito) no interior do casaco, calças compridas de cor escura, sapatos de cor escura, trazendo ao ombro uma bolsa de cores branca e preta e na mão um saco de plástico de cor vermelha contendo objectos. A partir de então, B nunca saiu da fracção em crise. (disco (objecto apreendido n.º 1) mostrando as entradas e saídas do recorrente e de B do referido prédio de fls. 516, auto de visionamento e fotos retiradas de fls. 382 a 407)
8. Após B ter regressado ao quarto X2, o recorrente, em hora desconhecida e por motivos não apurados, tapou a zona da boca e nariz daquela com objecto não identificado, sufocando-a.
9. A conduta supra descrita do recorrente causou directa e necessariamente a morte por asfixia de B (por causa da oclusão da boca e narinas). (certidão de óbito de fls. 152 a 153)
10. A fim de impedir a descoberta da morte da ofendida por outrem, o recorrente cobriu o corpo da ofendida com o edredão no quarto em apreço.
11. Após ter matado B, o recorrente, no período compreendido entre 7 e 9 de Janeiro de 2014, entrou e saiu do aludido prédio como se nada tivesse acontecido, e continuou a permanecer no quarto X2. Acresce que, o recorrente usou o telemóvel da ofendida (n.º XXXXXXXX) como o seu meio de contacto com o exterior. (objecto apreendido n.º 1 mostrando as entradas e saídas do recorrente e de B do referido prédio de fls. 516, auto de visionamento e fotos retiradas de fls. 382 a 384 e 392 a 407)
12. Cerca das 14h00 de 9 de Janeiro de 2014, o recorrente, com o objectivo de abandonar Macau o quanto antes, deslocou-se à [Agência de Viagem] sita na Rua da Tribuna pretendendo comprar um bilhete de avião de ida para Coreia do Sul da mesma noite. O trabalhador da agência, C, disse-lhe que o voo mais cedo partiu às 2h00 de 10 de Janeiro de 2014 e o preço do bilhete foi de MOP2.440,00.
13. O recorrente concordou e imediatamente tirou do bolso das calças o referido montante em numerário, em conjunto com o passaporte sul-coreano n.º MXXXXXXXX, entregando-os a C para a compra do bilhete. (disco (objecto apreendido n.º 6) mostrando o decurso como o recorrente adquiriu o bilhete de avião de fls. 516, auto de visionamento e fotos retiradas de fls. 291 e 295; factura de compra de bilhete de fls. 208 a 209)
14. Feita a referida transacção, o recorrente regressou à fracção X2 por volta das 17h54 do dia 9 de Janeiro de 2014, visando arrumar as bagagens e limpar o local. (vide o objecto apreendido n.º 1 de fls. 516, auto de visionamento e fotos retiradas de fls. 382 a 384 e 405)
15. No quarto X2, o recorrente limpou o corpo da ofendida com toalha e, com a finalidade de adiar a descoberta do corpo, cobriu-o com o edredão no quarto. Também colocou uma bolsa da ofendida (contendo no seu interior um telemóvel, uma caderneta de depósito bancário e um documento de identificação) num saco de plástico vermelho.
16. Em 9 de Janeiro de 2014, pelas 19h19, o recorrente saiu do prédio em causa com a bagagem de mão, trazendo também o atrás mencionado saco de plástico vermelho contendo a bolsa da ofendida. (vide o objecto apreendido n.º 1 de fls. 516, auto de visionamento e fotos retiradas de fls. 382 a 384 e 406 a 407)
17. Em 9 de Janeiro de 2014, cerca das 22h04, e na paragem de autocarro junto ao Edf. Nam Fai, Bloco II, sito na Rua da Tribuna, o recorrente entrou no autocarro n.º AP1, com matrícula n.º MP-60-20, da Transmac, rumo ao Aeroporto Internacional de Macau. Antes da entrada no autocarro, ele descartou em local não apurado o supra referido saco de plástico vermelho contendo a bolsa da ofendida. (disco (objecto apreendido n.º 4) mostrando os momentos de entrada e saída do recorrente do autocarro de fls. 516, auto de visionamento e fotos retiradas de fls. 416 a 419 e 426 a 427)
18. Em 9 de Janeiro de 2014, cerca das 22h33, o recorrente chegou ao Aeroporto Internacional de Macau. De seguida, em 00h36 do dia seguinte, dirigiu-se ao balcão para fazer o check-in, e embarcou no voo n.º XXXXX que partiu de Macau com destino a Seul do Coreia do Sul. (disco (objecto apreendido n.º 3) mostrando os seus movimentos no aeroporto de fls. 516, auto de visionamento e fotos retiradas de fls. 305 a 381)
19. Na manhã de 20 de Janeiro de 2014, D, ou seja, arrendatária do quarto X1 da fracção em crise, chamou a polícia devido ao mau odor vindo constantemente do quarto X2 e aos vermes brancos saindo das bordas da porta do quarto.
20. Em 20 de Janeiro de 2014, cerca das 11h30, o pessoal dos bombeiros e do CPSP chegaram à fracção e descobriram que a porta do quarto X2 foi trancada por dentro e havia vermes no chão junto da porta. Os bombeiros viram para o interior do quarto através das janelas e descobriram que B, coberta por edredão, estava deitada numa cama de madeira, pelo que comunicaram à PJ para o acompanhamento do caso no local.
21. O pessoal da PJ chegou ao quarto X2 e descobriu que o corpo de B já se tinha encontrado em estado de apodrecimento grave, inchação e infectado por larvas, com o rosto preto e as costas para baixo, a aderir firmemente ao colchão; no chão havia algum líquido exsudado em virtude do apodrecimento do corpo. No momento, B estava vestida com uma camisola de manga curta vermelha, um par de calças de ganga, cuecas e um par de meias de cor de pele, com um relógio de cor prateada, da marca GOODEGOMAN, no seu pulso esquerdo.
22. As supra referidas camisola vermelha (com um cordão de palavras no peito) e calças foram idênticas às que B vinha vestidas quando ela tinha regressado à fracção em causa pela última vez, por volta das 23h18 do dia 6 de Janeiro de 2014.
23. Realizada a autópsia, verificou-se que a causa de morte da ofendida foi asfixia. (vide o relatório de autópsia a fls. 512 a 515 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido)
24. O pessoal da PJ encontrou na gaveta inferior dum armário baixo junto da cama no quarto X2 um boletim de entrada (objecto apreendido n.º 8 de fls. 516) com o nome A.
25. No período compreendido entre 7 e 9 de Janeiro de 2014, o recorrente por várias vezes usou o telemóvel de B (n.º XXXXXXXX) para ligar a E, homem sul-coreano que tinha conhecido em Macau. (registo das chamadas telefónicas de fls. 256 dos autos)
26. Após o exame laboratório, verificaram-se nas unhas da mão direita de B vestígios de DNA do recorrente. E, não se verificou no fígado dela medicamentos e venenos comuns. (relatório pericial de fls. 635 a 641 e relatório do exame laboratório de fls. 492 a 494)
27. O recorrente praticou as atrás descritas condutas de forma livre, voluntária e consciente.
28. O recorrente, bem sabendo que tapar a zona da boca e nariz da ofendida com objecto causar-lhe-ia asfixia, resolveu fazê-lo por motivos não apurados, fazendo com que a ofendida perdesse a vida por asfixia.
29. O mesmo sabia perfeitamente que os seus actos são legalmente proibidos e punidos.
30. Ao praticar tais condutas, o recorrente encontrava-se em Macau em situação de permanência ilegal.
31. O recorrente A disse ter como as suas habilitações literárias o ensino secundário complementar, ter sido um trabalhador assalariado antes de ser preso e ter um filho que vive com a ex-mulher.
32. Segundo o certificado do registo criminal mais actualizado do recorrente, ele é delinquente primário.
3. O direito
As questões suscitadas pelo recorrente prendem-se respectivamente com o vício do erro notório na apreciação da prova e a medida concreta da pena.
3.1. Erro notório na apreciação da prova
Alega o recorrente que não se deve dar como provado o dolo de matar a vítima, pretendendo a convolação do crime pelo qual foi condenado para o de homicídio por negligência p.p. pelo art.º 134.º do Código Penal.
Como se sabe, há erro notório na apreciação da prova “quando se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável, ou viola as regras sobre o valor da prova vinculada, da experiência ou as legis artis”. E “tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores.”1
No caso vertente, constata-se no acórdão de 1.ª instância que o Tribunal Colectivo indicou devidamente as provas que serviram para formar a sua convicção sobre a matéria de facto provada, destacando as declarações prestadas pelo próprio recorrente, com exame crítico dessa prova, donde decorre que o recorrente confessou a maior parte dos factos que lhe foram imputados, sem que tenha admitido, no entanto, que a sua conduta tinha a ver com a morte, pois declarou que durante a ocorrência dos factos em causa ele se encontrava, conjuntamente com a falecida, no quarto e tinha consumido bebidas alcoólicas, que no dia seguinte descobriu que a mesma não tinha reacções, mas sem conhecimento de que ela já tinha morrido e que só veio a descobrir, um dia mais tarde, que a falecida estava sem sinais de vida. E alegou que não sabia da causa da morte da vítima.
Ora, nega o recorrente que a sua conduta tem alguma coisa a ver com a morte da vítima.
No entanto, analisadas todas as provas produzidas, incluindo os depoimentos das testemunhas, o auto de visionamento dos discos através do qual se revela que o recorrente saiu e entrou na fracção onde morreu a vítima nos dias seguintes ao falecimento desta, e o relatório da autópsia que demonstra a causa da morte, a asfixia resultante da oclusão da zona da boca e do nariz da vítima, provocada pela força externa de natureza contundente, conjugando as com as condutas do recorrente depois da morte da vítima, concluiu o Tribunal que o recorrente agiu dolosamente, tendo tapado com objecto a boca e o nariz da vítima, o que causou directamente a morte daquela.
O Tribunal não acredita na alegação de que o recorrente estava bêbado na altura de ocorrência de morte, porque não há qualquer prova que sustenta tal alegação.
Já no acórdão ora recorrido, o Tribunal de Segunda Instância transcreveu a fundamentação fáctica exposta pelo Tribunal de 1.ª instância, chamando atenção para o relatório da autópsia, que indica a asfixia como causa da morte da vítima, no corpo da qual não foram encontrados vestígios dos comuns venenos e drogas, e as condutas do recorrente após o falecimento da vítima, que demonstram uma atitude de ignorância, de frieza e de tranquilidade, fora do âmbito das reacções normais, revelando assim e em conjugação com as regras da experiência comum o seu raciocínio e o processo lógico para chegar à conclusão de se afastar a hipótese de o recorrente ter praticado os factos com falta de consciência ou por negligência (fls. 811 e verso dos autos).
Ora, é verdade que não foi apurado o circunstancialismo concreto em que ocorreu a morte da vítima, faltando alguns elementos pormenores, tais como os motivos do crime, se houve discussão, violentas ou não, entre o recorrente e a vítima antes da morte, qual será objecto utilizado pelo recorrente para tapar a boca e o nariz da vítima, etc..
Tais elementos, com os quais ficaria completo todo o processo criminoso que conduziu à morte da vítima, não se revelam determinantes nem decisivos no sentido de a sua falta implicar necessariamente a absolvição do recorrente ou a sua condenação pelo crime de homicídio por negligência, afastando sem mais nada o crime de homicídio.
O que se importa é que o recorrente matou, dolosamente, a vítima, mesmo sem saber aqueles elementos e ainda outros pormenores.
Na realidade, decorre das conclusões médico-legais constantes do relatório da autópsia realizada à vítima o seguinte:
- Os exames toxicológicos feitos revela que não foram encontrados vestígios dos comuns venenos e drogas;
- Apesar da putrefacção e pela desigualdade da mesma e marcada infiltração hemoglobínica dos músculos da face, em particular nas regiões peribucal e perinasal é provável acção de natureza contundente a esse nível; e
- Embora não apresentando, dada a putrefacção, os sinais mais característicos de asfixia, pelos dados autópticos e compulsada a informação policial bem como os resultados dos exames toxicológicos a causa da morte da vítima pode ter sido devida a asfixia por sufocação (obstrução dos orifícios nasais e bucal).
Ora, não obstante a utilização das expressões “provável” e “pode ter sido” para indicar a causa da morte, certo é que, face à falta de vestígios dos venenos e drogas no corpo da vítima e a não menção de quaisquer outras causas de morte possíveis, a “asfixia por sufocação (obstrução dos orifícios nasais e bucal)” afigura-se como única causa possível.
Tendo em consideração a causa da morte indicada, a vítima não pode matar-se a si própria, daí que permite tirar ilação de que o recorrente tenha praticado alguma conduta ofensiva, fazendo com que causou a morte da vítima.
Quanto à negligência invocada pelo recorrente, não foi dado como provado o alegado estado de embriaguez do recorrente e resulta da factualidade assente que após a morte da vítima, o recorrente cobriu o corpo dela com o edredão existente no quarto em apreço; durante o período compreendido entre 7 e 9 de Janeiro de 2014, ele entrou e saiu do aludido prédio como se nada tivesse acontecido, e continuou a permanecer no quarto; usou o telemóvel da ofendida como o seu meio de contacto com o exterior; comprou o bilhete de avião e abandonou Macau; limpou o corpo da vítima com toalha; e antes de sair de Macau, ele descartou em local não apurado os objectos pertencentes à vítima.
As condutas do recorrente posteriores ao falecimento da vítima demonstram que ele apresentava uma atitude de ignorância, de frieza e de tranquilidade, que não é normal no caso de homicídio por negligência.
O comportamento posterior acima referido revela uma total desconformidade com o homicídio por negligência sustentado pelo recorrente e contraria o senso comum, tal como se frisa no acórdão recorrido.
É verdade que, conforme o que revela o relatório da autópsia, no cadáver da vítima “não se identificam sinais de defesa”, com “ausência de lesões traumáticas externas recentes”.
Tal indicação não se demonstra relevante para a pretensão do recorrente, de condená-lo pelo crime de homicídio por negligência, pois a ausência de lesões traumáticas e sinais de defesa é indiferente para homicídio doloso e homicídio por negligência, não distinguindo um do outro.
A exposição feita no acórdão recorrido afigura-se lógica e congruente, que permite concluir pela prática do crime de homicídio.
Acrescentando, tal como afirma o Magistrado do ministério Público no seu douto parecer, “sendo admissíveis em processo penal todas as provas que não forem vedadas por lei – artigo 112.º do Código de Processo Penal – é lícito ao julgador, neste âmbito, recorrer a presunções judiciais para firmar um facto desconhecido a partir de um facto conhecido. Se, como sucedeu, a razoabilidade, as máximas da experiência e a liberdade de apreciação da prova conduziram ao convencimento da verdade da acusação, não há que fazer intervir o princípio in dubio pro reo, que só tem cabimento ante uma dúvida razoável sobre os factos, dúvida que, no caso, não se divisa”.
Improcede o vício do erro no tório na apreciação invocado pelo recorrente, pois não se verifica no caso concreto qualquer das situações acima indicadas que constituem o vício. O que se revela é apenas a discordância com a valoração das provas produzidas em audiência de julgamento por parte do recorrente, que questiona a convicção do Tribunal.
3.2. Medida concreta da pena
Pretende o recorrente a aplicação de uma pena não superior a 12 anos de prisão.
Nos termos do art.º 40.º n.º 1 do Código Penal de Macau, a aplicação de penas visa não só a reintegração do agente na sociedade mas também a protecção de bens jurídicos.
E ao abrigo do art.º 65.º do Código Penal de Macau, a determinação da medida da pena é feita “dentro dos limites definidos na lei” e “em função da culpa do agente e das exigências de prevenção criminal”, tanto de prevenção geral como de prevenção especial, atendendo a todos os elementos pertinentes apurados nos autos, nomeadamente os elencados no n.º 2 do artigo.
No caso ora em escrutínio, afigura-se-nos justa e adequada a pena de 16 anos de prisão, face à moldura penal aplicável e ao circunstancialismo apurado nos autos.
O crime pelo qual foi condenado o recorrente, de homicídio, é punível com a pena de 10 a 20 anos de prisão.
Resulta dos autos que o recorrente é delinquente primário.
Confessou a maioria dos factos imputados, sem que tenha admitido que matou a vítima.
Embora a factualidade assente não ajude muito em apurar a intensidade do dolo do recorrente, certo é que são muito graves os factos ilícitos.
As condutas do recorrente posteriores ao falecimento da vítima revelam de certo modo a personalidade do recorrente, com uma atitude de ignorância e de frieza para com a vida de outrem.
No que tange às finalidades da pena, são prementes as exigências de prevenção geral, impondo-se prevenir a prática do crime em causa, que viola frontalmente o direito à vida.
Contra o recorrente milita ainda a circunstância agravante prevista no art.º 22.º da Lei n.º 6/2004, que se refere ao “facto de o agente ser um indivíduo em situação de imigrante ilegal” aquando da prática dos crimes previstos na legislação comum, que é exactamente o caso do recorrente.
Na sua motivação do recurso, invoca o recorrente que, 4 anos após a ocorrência dos factos e por sentir-se culpado, ele voltou a Macau e se apresentou por sua iniciativa às autoridades policiais.
No entanto, não se constata nos autos a alegação de tal facto na fase de julgamento, sendo que o recorrente não apresentou contestação, embora tenha indicado testemunhas (fls. 681 dos autos).
Tudo ponderado, não se afigura excessiva a pena de 16 anos de prisão.
E tal como tem entendido este Tribunal, “Ao Tribunal de Última Instância, como Tribunal especialmente vocacionado para controlar a boa aplicação do Direito, não cabe imiscuir-se na fixação da medida concreta da pena, desde que não tenham sido violadas vinculações legais – como por exemplo, a dos limites da penalidade – ou regras da experiência, nem a medida da pena encontrada se revele completamente desproporcionada”2, pelo que se não se estiver perante essas situações, como é no caso vertente, o Tribunal de Última Instância não deve intervir na fixação da dosimetria concreta da pena.
É de concluir pela improcedência da pretensão do recorrente.
4. Decisão
Pelo exposto, acordam em negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, com a taxa de justiça fixada em 6 UC.
Fixam os honorários ao Ilustre Defensor do recorrente no montante de 2500 patacas.
Macau, 28 de Novembro de 2018
Juízes: Song Man Lei (Relatora) – Sam Hou Fai –
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
1 Cfr. Ac.s do TUI de 30/1/2003, de 15/10/2003 e de 16/2/2004, nos Processos n.ºs 18/2002, 16/2003, e 3/2004, entre muitos outros.
2 Cfr. Ac. do TUI, de 23-1-2008, 19-9-2008, 29-04-2009 e 28-9-2011, nos Processos n.ºs 57/2007, 29/2008, 11/2009 e 35/2011, respectivamente.
---------------
------------------------------------------------------------
---------------
------------------------------------------------------------
1
Processo n.º 73/2018