Processo n.º 65/2014
Recurso jurisdicional em matéria administrativa
Recorrente: A
Recorrido: Chefe do Executivo da RAEM
Data da conferência: 19 de Dezembro de 2018
Juízes: Song Man Lei (Relatora), Sam Hou Fai e Viriato Manuel Pinheiro de Lima
Assuntos: - Violação da Lei Básica
- Princípio da igualdade
- Contrato individual de trabalho
- Remuneração
- Retroactivos
SUMÁRIO
1. Nos casos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas constantes de leis ou regulamentos administrativos que infrinjam o disposto na Lei Básica ou os princípios nela consagrados, ainda que nenhuma parte suscite a questão da ilegalidade, sem prejuízo do disposto no art.º 143.º daquela Lei.
2. O âmbito de protecção do princípio da igualdade constante da norma da Lei Básica, abrange, além do mais, a proibição do arbítrio, sendo inadmissíveis diferenciações de tratamento sem qualquer justificação razoável.
3. A teoria da proibição do arbítrio não é um critério definidor do conteúdo do princípio da igualdade, mas antes expressa e limita a competência do controlo judicial, pelo que, perante este critério essencialmente negativo, são censurados apenas os casos de flagrante e intolerável desigualdade, o que só ocorrerá quando as diferenças instituídas pelo legislador forem não fundamentadas, não objectivas, não razoáveis.
4. A Lei n.º 18/2009, que estabelece o regime jurídico da carreira de enfermagem e que entrou em vigor em 18 de Agosto de 2009, faz retroagir a 1 de Julho de 2007 as valorizações indiciárias dos vencimentos previstos para os enfermeiros do quadro, dos contratados além do quadro e dos assalariados (art.º 40.º n.º 2, da Lei), não estendendo tal retroacção aos enfermeiros no regime de contrato individual de trabalho.
5. O art.º 40.º da Lei n.º 18/2009 não viola o princípio da igualdade.
A Relatora,
Song Man Lei
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:
1. Relatório
A, enfermeiro-graduado dos Serviços de Saúde de Macau, interpôs recurso contencioso de anulação do despacho do Exmo. Senhor Chefe do Executivo da RAEM proferido em 22 de Fevereiro de 2010 na parte que recusou, por exclusão, a actualização salarial ou produção de efeitos retroactivos no período compreendido entre 1 de Julho de 2007 e 17 de Agosto de 2009.
Por Acórdão proferido pelo Tribunal de Segunda Instância, este negou provimento ao recurso, confirmando o acto administrativo impugnado.
Inconformado com a decisão, vem A recorrer para o Tribunal de Última Instância, formulando nas suas alegações as seguintes conclusões:
I. A sistematização do artigo 74.º do CPCA impõe o conhecimento de todos os fundamentos suscitados pelo recorrente, não sendo admissível decisão desfavorável à parte sem que o tribunal aprecie cada um desses fundamentos;
II. Assim, o não conhecimento das questões suscitadas – de tutela das legítimas expectativas do Recorrente; violação da clásula contratual de equiparação remuneratória e do princípio da boa fé (na interpretação e integração contratual); violação do princípio da paridade salarial entre os funcionários públicos; violação do princípio constitucional-juslaboral de trabalho igual – salário igual; e, ainda, violação do princípio da não discriminação em matéria de emprego e profissão – configura uma nulidade, por omissão de pronúncia, atento o disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 571.º do CPC de Macau;
III. Cabe aos tribunais, nos casos concretos submetidos à sua apreciação, conhecer – mesmo que oficiosamente – da desconformidade e/ou inconstitucionalidade de normas e resolver eventuais contradições entre as Convenções Internacionais vigentes na RAEM e normas jurídicas de outros diplomas vigentes, com fundamento no princípio da hierarquia das normas;
IV. A posição hierárquica entre as convenções internacionais mencionadas no artigo 138.º da Lei Básica – nomeadamente a Convenção n.º 111 da OIT e o Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais – e as fontes de direito internas da RAEM (leis, regulamentos, etc.), é a de supremacia das primeiras relativamente a estas últimas;
V. O princípio da legalidade consagrado no artigo 3.º do CPA «aparece aqui na sua acepção mais ampla, abrangendo quer poderes discricionários quer vinculados, e implicando não a mera submissão à lei em sentido formal ou material, mas a todo o direito. (...) a submissão ao direito vai muito além de um entendimento positivista da ordem jurídica, implicando a submissão a princípios gerais de direito, à Constituição, a normas internacionais, a disposições de carácter regulamentar, a actos constitutivos de direito, etc.»;
VI. Mesmo que se admitisse, à primeira vista, que a Lei n.º 18/2009 não permitia a satisfação da pretensão do Recorrente e que a actividade do Chefe do Executivo se encontrava vinculada (obviamente que ao princípio da legalidade, que não à dita Lei n.º 18/2009), sempre importaria levar em conta que, nos termos do artigo 40.º da Lei Básica da RAEM, «as disposições, que sejam aplicáveis a Macau, (...) do Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais, bem como de convenções internacionais de trabalho, continuam a vigorar e são aplicadas mediante leis da Região Administrativa Especial de Macau»;
VII. Nos termos do artigo 11.º da Lei Básica, «nenhuma lei, decreto-lei, regulamento administrativo ou acto normativo da Região Administrativa Especial de Macau pode contrariar esta lei.», incluindo naturalmente o referido artigo 40.º;
VIII. O Chefe do Executivo não estava cegamente vinculado ao cumprimento da Lei n.º 18/2009, antes se impondo que a sua conduta, atento o disposto no artigo 3.º do CPA de Macau, fôsse conforme ao disposto no Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais e nas convenções internacionais de trabalho (mormente da OIT), mesmo que tal implicasse violar o disposto na Lei n.º 18/2009, face à hierarquia das normas no Ordenamento Jurídico;
IX. A interpretação e orientação seguida pelo Tribunal a quo, relativamente ao princípio da legalidade administrativa a que alude o artigo 3.º do CPA de Macau, foi manifestamente positivista e redutóra, implicando a mera submissão à lei em sentido formal ou material, que não aos princípios gerais de direito e às normas internacionais vigentes na RAEM, com o que incorreu na violação do disposto nos artigos 40.º e 11.º da LBRAEM;
X. O Tribunal a quo ignorou as normas internacionais vigentes na RAEM – especificamente os artigos 2.º e 3.º da Convenção n.º 111 da OIT e o artigo 7.º do Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais –, e os princípios gerais de direito ali consagrados, da paridade salarial e da não discriminação em matéria de emprego e profissão;
XI. Como bem refere o legislador, não basta o quadro de vinculação em que o Recorrente se relaciona com a Administração ser diferente do quadro de vinculação a que respeitam outras situações (como as dos funcionários do quadro, além quadro ou assalariados), para justificar uma discrepância na remuneração salarial. É preciso que de tal quadro resulte efectivamente uma diferença que justifique tal discrepância;
XII. No caso concreto, a Administração não contratualizou direitos substancialmente diferentes nem sequer superiores, como decorre do respectivo contrato individual de trabalho constante do processo administrativo instrutor;
XIII. Tendo o Recorrente tempestivamente alegado essa factualidade nos pontos 120 a 133 das suas alegações, mais formulando as respectivas conclusões XXII e XXIII, e estando a mesma e os direitos laborais atribuídos ao Recorrente devidamente documentados no seu contrato individual de trabalho, junto aos autos, impunha-se que o Tribunal a quo tivesse conhecido a questão da violação das normas de direito internacional, por aplicação ao caso concreto sub judice;
XIV. Se as condições contratuais reflectirem fielmente os termos previstos para o pessoal além do quadro e assalariado, então não há uma fundamentação razoável para tratar estes trabalhadores de forma diferente;
XV. O disposto no n.º 2 do artigo 40.º da Lei n.º 18/2009 viola os artigos 2.º e 3.º da Convenção n.º 111 da OIT e no artigo 7.º do Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais e os princípios da paridade salarial e da não discriminação em matéria de emprego e profissão, se da sua aplicação, no caso concreto, resulta um regime legal contraditório para os enfermeiros funcionários públicos, de onde decorra o efectivo pagamento de uma remuneração diferente para um trabalho de valor igual, no mesmo período de tempo;
XVI. O acórdão recorrido, ao escamotear os princípios da paridade salarial e da não discriminação em matéria de emprego e profissão, incorreu na violação dos artigos 2.º e 3.º da Convenção n.º 111 da OIT; do artigo 7.º do Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais; dos artigos 11.º e 40.º da Lei Básica; dos artigos 174.º e 175.º do ETAPM (aplicáveis ex vi do disposto no n.º 3 do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 60/92/M, de 24 de Agosto, e da cláusula 18.ª do contrato individual de trabalho); do n.º 2 do artigo 57.º da Lei n.º 7/2008, de 18 de Agosto; e, do artigo 4.º do contrato individual de trabalho celebrado entre a Recorrente e os SSM.
A entidade recorrida apresentou contra-alegações, formulando as seguintes conclusões:
i. As questões em apreço no presente recurso já foram objecto de apreciação por parte deste Venerando Tribunal em diversas demandas e em todas elas a decisão foi a mesma – Improcedência do recurso e, consequente, manutenção do acto recorrido, pelo que face à unanimidade de todas aquelas decisões a Entidade Recorrida não pode deixar de manifestar surpresa com a interposição do presente recurso.
ii. O Recorrente trás à colação o disposto no artigo 152.º do CPAC para afirmar que o Acórdão do Tribunal de Segunda Instância viola ou faz uma interpretação errada de lei processual e de lei substantiva. Mais alega que o Tribunal a quo faz uma interpretação generalista e redutora dos princípios da legalidade administrativa e da igualdade.
iii. Nenhuma razão assiste ao Recorrente e andou bem o Tribunal de Segunda Instância ao negar provimento ao recurso, como se pretende demonstrar.
iv. o Acórdão respeitou integralmente o disposto na alínea b) do n.º 3 do artigo 74.º do CPAC, relativo à “Ordem do conhecimento das questões”, por ter conhecido em primeiro lugar o vício de violação de lei que a verificar-se impediria a mera renovação do acto, para só depois conhecer o outro vício, o de forma, assacado ao acto administrativo e que apenas contende com a legalidade externa, relativo à falta de fundamentação.
v. O artigo 74.º do CPAC não impõe o conhecimento de todos os vícios pelo Tribunal a quo, mas, ao invés, visa tão só obstar, em regra, ao conhecimento prioritário de vícios de forma, através do estabelecimento da prioridade dos vícios cuja procedência determine, segundo o prudente arbítrio dos julgadores, mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos, na consecução dos princípios da tutela jurisdicional efectiva e da economia processual.
vi. Não poderá vingar a ideia de que deverão ser conhecidos todos os vícios imputados ao acto, mesmo que de violação de lei, sendo pois a especificidade de cada caso, em aplicação do referido critério, que será relevante, podendo multiplicar-se os exemplos de manifesta desrazoabilidade a que a solução contrária levaria.
vii. Aquilo que o Recorrente alega ser “questões autónomas” não são mais que “argumentos”, “razões” ou “motivações” aduzidos por si em prol da precedência da questão propriamente dita a apreciar, de modo a fazer valer as suas pretensões.
viii. Como é jurisprudência corrente em Portugal, há que distinguir entre questões – as matérias respeitantes ao pedido e à causa de pedir – e meros argumentos – razões invocadas pelas partes em defesa dos seus pontos de vista, em relação aos quais o Juiz não está vinculado a tomar posição.
ix. O Tribunal de Segunda Instância, para proferir a sua decisão de negar provimento ao recurso, não só apreciou de forma exaustiva e minuciosa a alegada violação do princípio da igualdade pela norma do n.º 2 do artigo 40.º da Lei n.º 18/2009, como também fez a correspondente análise da matéria respeitante à alegada violação do princípio da legalidade.
x. O Acórdão posto em crise cumpre integralmente o disposto no artigo 76.º do CPAC.
xi. O Tribunal a quo respeitou, sem qualquer dúvida, a ordem legalmente imposta de conhecimento dos vícios/fundamentos imputados pelo Recorrente ao acto administrativo.
xii. Não há falta de conhecimento de nenhum dos vícios invocados, nem de violação de lei, nem de falta de fundamentação, nem tão pouco o Acórdão recorrido enferma da alegada nulidade por omissão de pronúncia sobre questões suscitadas pelo Recorrente, nos termos do disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 571.º do CPC.
xiii. O Acórdão recorrido não padece, tout court, de qualquer vício.
xiv. O alegado ónus judicial de fiscalização da conformidade das leis com a Lei Básica é uma questão controvertida há já largos anos em Macau.
xv. Há uma corrente doutrinária que defende que da interpretação conjugada das várias normas da própria Lei Básica, em especial, das previstas nos parágrafos 2, do artigo 11.º e do artigo 19.º e, bem assim, do artigo 143.º, não se pode concluir, necessariamente, que os Tribunais de Macau gozam do poder de fiscalização da constitucionalidade das leis aprovadas pela Assembleia Legislativa de Macau.
xvi. As práticas judiciais contidas, quer no Acórdão do Tribunal de Última Instância, citado nos parágrafos 49 a 67 das alegações de recurso do Recorrente, quer em outros Acórdãos proferidos pelo Tribunal de Segunda Instância, não evidenciam, nem determinam o reconhecimento absoluto de um sistema de fiscalização pelos Tribunais de Macau da conformidade das leis em geral com a Lei Básica.
xvii. Assim não se entendendo, o que de todo não se concede e apenas se admite por mera cautela e dever de bom patrocínio, na hipótese de se considerar que é aos órgãos judiciais de Macau a quem compete, efectivamente, fiscalizar da “constitucionalidade” do n.º 2 do artigo 40.º da Lei n.º 18/2009 (i.e. da sua conformidade com a Lei Básica), certo é que o recurso contencioso de anulação não pode ser considerado o meio jurisdicional adequado para o efeito.
xviii. Andou bem o Tribunal a quo ao determinar o seguinte: “Em todo o caso, mesmo que estivéssemos perante um caso de desigualdade na criação do direito, então este não seria o meio próprio para contra ela reagir por se tratar de um meio contencioso orientado para a anulação de um acto administrativo.” .
xix. Se o n.º 2 do artigo 88.º do CPAC exclui, expressamente, do regime de impugnabilidade, as normas contidas em regulamento administrativo que violem normas constantes de lei fundamental (i.e., Lei Básica), por maioria de razão, parece ser correcto o entendimento perfilhado pelo Tribunal de Segunda Instância que, no âmbito do recurso contencioso de anulação, se absteve de analisar a eventual violação da Lei Básica por parte de uma norma contida numa lei (neste caso, o n.º 2 do artigo 40.º da Lei n.º 18/2009).
xx. Acresce que, salvo melhor entendimento, recaía sobre o Recorrente o ónus de suscitar ab initio esta questão, o que no presente caso não se verificou.
xxi. Visando o recurso a modificação da decisão proferida pelo Tribunal de Segunda Instância, e não a criação de soluções sobre matéria nova, não parece correcto o Recorrente vir agora invocar nele questões que não havia suscitado perante o Tribunal recorrido.
xxii. Tendo em conta que os recursos não visam a pronúncia do Tribunal ad quem sobre questões novas, o que se afigura ser a questão só agora suscitada no ponto IV. das alegações de recurso, a Entidade Recorrida entende, com o devido respeito, que o Tribunal de Última Instância não pode, pois, vir nesta sede apreciar tal matéria.
xxiii. Até porque, nada resultou assente em termos de matéria de facto que pudesse levar a concluir pela violação da Lei Básica, do princípio da igualdade e da violação de convenções internacionais vigentes na RAEM, quer do Despacho do Chefe do Executivo, quer da Lei n.º 18/2009.
xxiv. Não se pode sufragar a tese de que há um verdadeiro “ónus judicial” sobre o Tribunal de Segunda Instância de fiscalizar a conformidade da disposição normativa ora em discussão com a Lei Básica, não se verificando qualquer violação da obrigação de julgar.
xxv. O contrato individual de trabalho celebrado entre o Recorrente e a RAEM configura uma relação de trabalho de direito privado e não de direito público, não atribuindo ao ora Recorrente qualquer “estatuto” específico, sem prejuízo das referências ao ETAPM.
xxvi. É inegável que a relação contratual entre a RAEM e o Recorrente, celebrada ao abrigo do disposto no artigo 99.º da Lei Básica, é excepcional e distinta da relação dos trabalhadores que integram, ou podem integrar, o regime das carreiras dos trabalhadores dos serviços públicos, ou seja, os trabalhadores providos em regime de nomeação provisória ou definitiva, nomeação em comissão de serviço, contrato além do quadro ou contrato de assalariamento.
xxvii. Neste contexto, vide, por exemplo, as regalias contratuais acordadas com o Recorrente na cláusula 13.ª, no n.º 2 da cláusula 14.ª e na cláusula 15.ª do seu contrato individual de trabalho, bem como a necessidade de justificar a contratação do Recorrente para colaborar na “formação dos quadros locais” e devido à “insuficiência de recursos na RAEM para a prestação de actividade médica na área de Unidade de Cuidados Intensivos”.
xxviii. Os regimes geral e especial de carreiras não são aplicáveis aos trabalhadores contratados para servirem como consultores ou em funções técnicas especializadas, como é o caso do aqui Recorrente.
xxix. À semelhança do que é estabelecido no n.º 2 do artigo 81.º do Regime de carreiras dos trabalhadores dos serviços públicos, aprovado pela Lei n.º 14/2009, o n.º 2 do artigo 40.º da Lei n.º 18/2009, prevê a aplicação de valorizações indiciárias retroactivas apenas aos trabalhadores que tenham direito à carreira.
xxx. Algo que não se verifica no caso do Recorrente, porque ao ter celebrado com a Administração um contrato individual de trabalho não tinha, efectivamente, direito à carreira, o que vai ao encontro do que estava previsto no artigo 3.º do antecedente regime geral e especial das carreiras da Administração Pública de Macau, que se encontrava em vigor na data em que a Recorrente iniciou as suas funções.
xxxi. A privatização da relação jurídica de emprego na Administração Pública é uma realidade incontornável.
xxxii. Actualmente, a Administração Pública de Macau emprega distintos tipos de trabalhadores, aos quais são aplicáveis diferentes regimes jurídicos.
xxxiii. E é, precisamente, neste contexto, que deve ser visto e analisado o artigo 99.º da Lei Básica, à luz do qual o Recorrente foi contratado a título meramente pessoal, sem referência a qualquer “estatuto” específico.
xxxiv. Reitera-se que o Recorrente por ter celebrado um contrato individual de trabalho não estava, nem está sujeito, quer ao regime das carreiras dos trabalhadores dos serviços públicos, reguladas na Lei n.º 14/2009, quer ao regime da carreira de enfermagem, estabelecida na Lei n.º 18/2009.
xxxv. Nos termos da Lei n.º 18/2009 não se permite a retroactividade dos seus efeitos a data anterior à sua entrada em vigor para o trabalhador provido com um contrato individual de trabalho, seja este celebrado anterior ou posteriormente a essa data.
xxxvi. E o legislador quis ser claro neste sentido especificando no n.º 2 do artigo 40.º da referida Lei o âmbito de aplicação da excepção aos direitos retroactivos aí consagrada.
xxxvii. Logo, do ponto de vista legal, ao Recorrente não assistia –nem assiste – o direito a retroactivos, ou mesmo à revisão do seu contrato de trabalho, no que concerne à categoria-escalão-vencimento com base na Lei n.º 18/2009.
xxxviii. A aquisição do direito à retroactividade, estipulado no n.º 2 do artigo 40.º da Lei n.º 18/2009, resulta da “transição”, ou seja, é com a transição que se constitui, na esfera jurídica do interessado, o direito às valorizações indiciárias correspondente ao escalão e categoria em que o trabalhador se encontraria caso tivesse sido posicionado na carreira nessa mesma data.
xxxix. O Recorrente, por o seu contrato de trabalho não lhe conferir o direito à carreira de enfermagem, não cumpre, por razões óbvias, o tal requisito formal da transição.
xl. Não assiste, portanto, ao Recorrente qualquer direito ao recurso à norma do n.º 2 do artigo 40.º da Lei n.º 18/2009, que legitima o direito de receber as valorizações indiciárias retroactivamente a 1 de Julho de 2007, devendo, pois, manter-se o Acórdão que negou provimento ao recurso contencioso de anulação.
xli. A Entidade Recorrida defende que o Tribunal a quo não fez no seu douto Acórdão uma interpretação generalista e redutora do princípio da legalidade administrativa e do princípio da igualdade, nem ignorou as normas internacionais vigentes na RAEM e os consagrados princípios da paridade salarial e da não discriminação em matéria de emprego e profissão.
xlii. Não há qualquer desigualdade, quer na aplicação do direito pela Entidade Recorrida, quer na criação do direito por parte do legislador.
xliii. O Chefe do Executivo proferiu o seu Despacho em estrito cumprimento do princípio da legalidade administrativa em conformidade com o disposto no artigo 3.º do CPA.
xliv. O princípio da igualdade, acolhido no artigo 25.º da Lei Básica (e o princípio da justiça material, que lhe está inerente), funciona como um dos limites da discricionariedade, só neste domínio encontrando a sua justificação.
xlv. A par disso, a obrigação da igualdade de tratamento exige apenas que aquilo que é igual seja tratado igualmente, de acordo com o critério da sua igualdade, e aquilo que é desigual seja tratado desigualmente, segundo o critério da sua desigualdade.
xlvi. Ademais, não veda à lei a realização de distinções, antes lhe proíbe a adopção de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, ou seja, desigualdades de tratamento materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável ou sem qualquer justificação objectiva e racional.
xlvii. Fora dos casos expressamente proibidos de discriminação, só existe violação do princípio da igualdade quando estivermos perante descriminações arbitrárias ou manifestamente injustificadas, conforme defendido na doutrina e jurisprudência supra citada.
xlviii. Não é arbitrário, nem é manifestamente injustificado estabelecer soluções distintas para situações jurídicas igualmente distintas, como sucede no caso em discussão nos presentes autos.
xlix. É exactamente o carácter privativo da relação jurídico-laboral estabelecida entre o Recorrente e a Administração (e os benefícios e regalias a ela inerentes) que constitui fundamento e justificação para a existência de um tratamento diferenciado.
l. Não pode ser comparada a situação do Recorrente – enquanto trabalhador no âmbito do regime jurídico do contrato individual de trabalho, contrato este sem natureza administrativa, inapto para incluir os trabalhadores num qualquer estatuto público e insusceptível de gerar, ainda que longinquamente, quaisquer expectativas de acesso às respectivas carreiras – à de outros colegas providos em regime de nomeação provisória ou definitiva, nomeação em comissão de serviço, contrato além do quadro e contrato de assalariamento.
li. Esta situação, por ser material e objectivamente diferente da dos outros a quem do ponto de vista dos “retroactivos” o Recorrente agora se quer comparar, é suficiente para merecer diferente tratamento no plano jurídico, sem que isso represente uma discriminação manifestamente injustificada.
lii. A norma do artigo 36.º da Lei n.º 18/2009 demonstra, também, de forma muito clara e objectiva, a intenção do legislador de acautelar a situação destes trabalhadores que já se encontravam abrangidos por um outro regime.
liii. Não pode, por isso, a Entidade Recorrida concordar com a afirmação de que o Tribunal a quo ignorou ainda as normas internacionais vigentes na RAEM e os princípios ali consagrados da paridade social e da não discriminação em matéria de emprego e profissão “ao arrepio da própria vontade e intenção do legislador”, intenção essa que no Parecer n.º 4/2010 não parece ser de todo contrária à da não aplicação dos retroactivos aos trabalhadores contratados por contrato individual de trabalho.
liv. O mencionado Parecer abstém-se de fazer qualquer tipo de comentário sobre a existência de uma eventual violação do princípio da igualdade.
lv. E estranho é que se não fosse a intenção do legislador de estabelecer a existência de uma diferença de tratamento e tal tivesse ficado plasmado no referido Parecer, vir depois a Assembleia Legislativa aprovar mais seis regimes especiais das carreiras na área da saúde onde se consagram exactamente as mesmas regras relativas à retroactividade das valorizações indiciárias.
lvi. Neste sentido, só se pode concluir, uma vez mais, que ao Recorrente não assiste qualquer direito aos retroactivos estipulados no n.º 2 do artigo 40.º da Lei que estabelece o regime jurídico da carreira de enfermagem.
lvii. No caso sub judice não se verifica a violação do princípio da igualdade, nem das normas internacionais vigentes na RAEM, nem, consequentemente, do princípio da legalidade administrativa.
O Digno Magistrado do Ministério Público emitiu o douto parecer, pugnado pela improcedência do recurso.
Foram corridos os vistos.
2. Os Factos Provados
Foi considerada provada a seguinte matéria de facto com pertinência para a decisão da causa:
- O recorrente é enfermeiro, tendo sido contratado para exercer funções nos Serviços de Saúde de Macau com efeitos a partir de 1 de Agosto de 1995.
- Foi contratado em regime de contrato individual de trabalho, como enfermeiro graduado, 3º escalão, tendo-lhe sido atribuído o índice 405 da tabela de vencimentos, afecto à Unidade de Cuidados Intensivos do Centro Hospitalar do Conde de São Januário.
- Em anexo ao referido contrato foram conferidos outros direitos e regalias ao recorrente, como direito a alojamento a expensas da RAEM, passagem de regresso ao local de recrutamento para si e família, bem como transporte de bagagem pessoal para si e agregado familiar, bagagem técnica, compensações por cessação definitiva de funções, etc.
- O seu contrato foi sucessivamente renovado por períodos de um ano.
- Em 18 de Agosto de 2009, o recorrente requereu ao Director dos Serviços de Saúde se dignasse “…autorizar a sua colocação no 4º escalão de enfermeiro graduado conforme previsto na Lei nº 18/2009”.
- Em 22.02.2010 o Exmº Chefe do Executivo, na sequência do parecer do Exmº Director dos Serviços, lavrou o seguinte despacho:
“Concordo a ratificação.” (fls. 2 do processo administrativo)
- O referido despacho tinha recaído sobre a proposta nº XXX/PP/DP/2010, de 09.02.2010, que propunha a actualização salarial (índice 505, escalão 4º) por averbamento ao contrato com referência à nova carreira de enfermagem. (fls. 2 a 4 do p.a.)
- O recorrente foi notificado por ofício de 26.02.2010 para, caso não tivesse nada a opor à revisão decorrente do despacho de 22.02.2010, manifestar a sua vontade à Divisão de Pessoal até ao dia 10.03.2010, com vista aos trâmites posteriores. (fls. 22 do p.a.)
- Por ofício de 04.03.2010 foi o recorrente notificado dando-lhe conhecimento de que o regime das carreiras não é aplicável aos trabalhadores recrutados ao exterior que tenham sido contratados ao abrigo do artigo 99º da Lei Básica, ou seja, a Lei nº 18/2009, dando-lhe ainda conta da alteração da cláusula 4ª do seu contrato individual de trabalho e do momento do início da produção de efeitos. (fls. 27 a 31 do p.a.)
- Com esta notificação foi junta a alteração contratual, ficando ainda definido que a produção de efeitos se reportava a 18 de Agosto de 2009.
- O Exmº Chefe do Executivo autorizou em 27.04.2010 a alteração das cláusulas do averbamento ao contrato nos termos propostos na proposta nº XXX/PP/DP/2010. (fls. 33 a 35 do p.a.)
- O recorrente foi notificado por ofício de 07.05.2010 dos despacho e propostas atrás referidos. (fls. 97 do p.a.)
- O averbamento foi efectuado, tendo ficado estabelecido na cláusula 4ª que a remuneração corresponderia à categoria de enfermeiro-graduado, 4º escalão, índice 505, segundo o disposto no Anexo I da Lei nº 18/2009 de 17 de Agosto. (fls. 109 do p.a.)
- E na cláusula 19ª ficou definido que os efeitos decorrentes do índice referido na cláusula 4ª do averbamento retroagiriam a 18 de Agosto de 2009 e incidiam sobre o vencimento. (fls. 111 do p.a.)
- Contudo, após a assinatura do averbamento, o recorrente incluiu uma declaração do seguinte teor: “Assino o presente averbamento ao meu contrato individual de trabalho com a reserva dos direitos que me assistam de fazer retroagir a actualização da minha remuneração a 1 de Julho de 2007.” (fls. 111 verso do p.a.)
3. O Direito
São as seguintes questões fundamentais para resolver:
- O não conhecimento dos fundamentos alegados pelo recorrente; e
- O erro de julgamento, aplicação e interpretação da lei, que se traduz essencialmente na violação do princípio da igualdade.
3.1. Omissão de pronúncia
Alega o recorrente que o Tribunal de Segunda Instância não tomou conhecimento de todos os fundamentos por si deduzidos, indicados na parte III das suas alegações apresentadas, o que configura uma nulidade, por omissão de pronúncia, atento o disposto na al. d) do n.º 1 do art.º 571.º do CPC de Macau.
No entanto, não se nos afigura assistir razão ao recorrente, pois se constata no Acórdão ora posto em causa que as questões suscitadas pelo recorrente foram já apreciadas pelo Tribunal recorrido.
Ora, todas as questões reconduzem-se, numa ou noutra vertente, à violação do princípio da igualdade que foi conhecida por aquele Acórdão (violação da cláusula contratual de equiparação remuneratória; a violação do princípio da paridade-igualdade salarial entre os funcionários públicos; a violação do princípio constitucional-juslaboral de trabalho igual - salário igual; e, ainda, a violação do princípio da não discriminação em matéria de emprego e profissão, etc.).
Mesmo quanto à questão da violação do princípio da boa fé, na interpretação e integração contratual, o recorrente reconduziu a questão, na petição do recurso contencioso, a uma vertente do princípio da igualdade.
Tal como resulta do Acórdão recorrido, que dá por integralmente reproduzida a fundamentação jurídica consignada no processo n.º 520/2010 do mesmo Tribunal, o Tribunal de Segunda Instância considera que “nenhum dos fundamentos com que o recorrente ilustra a violação do princípio da igualdade – como seja a invocação da violação do art. 25º da Lei Básica da RAEM, do art. 57º nº 2 da Lei das Relações de Trabalho, dos arts. 2º e 3º da Convenção nº 111 da OIT sobre a Discriminação em matéria de emprego e profissão, do art. 7º do Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais – ou o da legalidade (ainda que sem expressamente assim o qualificar – como a cláusula 4º do seu contrato individual de trabalho de fls. 68 do penso ou os arts. 174º e 175º do ETAPM – serve para sustentar a procedência do recurso no qual tanto denodo e brilho depositou”.
E depois da transição das mais considerações tecidas no processo n.º 520/2010, conclui o Tribunal recorrido que não se verifica o vício de violação do princípio da igualdade.
Quanto à tutela das legítimas expectativas do interessado, o recorrente, embora abordando a questão (em termos manifestamente irrelevantes, invocando compromissos assumidos pelo Governo perante os trabalhadores da Administração Pública), não fundamentou aí nenhuma violação de lei, não a integrou como fundamento específico de vício de acto administrativo, pelo que o Tribunal recorrido não estava obrigado a pronunciar-se sobre a mesma.
Improcede assim a questão suscitada.
3.2. Princípio da igualdade
A questão de fundo suscitada no presente recurso reside em saber se o acto recorrido – e, portanto, o Acórdão recorrido – violou ou não o princípio da igualdade nas suas várias vertentes, como atrás já referidas.
Desde logo, é de reafirmar a posição já tomada por este Tribunal, também conhecida pelo recorrente que citou as respectivas considerações, no sentido de o Tribunal poder, mesmo oficiosamente, conhecer de violação da Lei Básica por parte da lei ordinária bem como anular o acto administrativo com fundamento em violação do princípio da igualdade.
《A Lei Básica é a lei fundamental da Região Administrativa Especial de Macau, constituindo como que o seu estatuto básico, previsto expressamente no artigo 31.º da Constituição da República Popular da China. Consagra direitos fundamentais dos residentes e de outras pessoas, a estrutura política da Região e as políticas a desenvolver.
A revisão da Lei Básica, como lei fundamental, obedece a um procedimento rígido1: as propostas de revisão só podem ser apresentadas pelo Comité Permanente da Assembleia Popular Nacional, pelo Conselho de Estado ou pela Região Administrativa Especial de Macau, tendo sempre de ser ouvida a Comissão da Lei Básica da Região (artigo 144.º).
Por outro lado, a Lei Básica está no vértice da pirâmide normativa da Região: de acordo com o 2.º parágrafo do artigo 11.º da Lei Básica nenhuma lei, decreto-lei, regulamento administrativo ou acto normativo a pode contrariar.
Ao referir-se à relação entre a Lei Básica da RAEM e a Constituição chinesa, o Professor XIAO WEIYUN2 afirma expressamente que “A Lei Básica da RAEM é a concretização e positivação da Constituição. Esta dispõe apenas no artigo 31.°, como princípio, a política de ‘um país, dois sistemas’, sem prescrever sobre as questões mais concretas. Por seu lado, a Lei Básica da RAEM dispõe com pormenor, através de um preâmbulo, nove capítulos, 145 artigos e três anexos, sobre a matéria de contexto histórico do seu nascimento, as políticas e directivas essenciais do País em relação a Macau, o relacionamento entre as Autoridades Centrais e a RAEM, os direitos e deveres fundamentais de cidadãos de Macau, o sistema político, a economia e a cultura. Torna-se concretizada e positivada na Constituição a política de ‘um país, dois sistemas’, permitindo a concretização e a viabilidade efectiva do artigo 31.° da Constituição”.
O mesmo Professor salienta ainda, “Ela (a Lei Básica) determina claramente as competências das Autoridades Centrais, a fim de assegurar a unificação do país e a integridade da soberania e do território nacional, e ao mesmo tempo o poder de alto grau de autonomia da RAEM, ... permitindo estabelecer, no pressuposto de velar ‘um país’, certas disposições da Lei Básica diferentes da Constituição e das Leis3.
A Lei Básica comunga, portanto, das características normalmente associadas às constituições políticas dos Estados, embora formalmente não o seja já que a Região Administrativa Especial de Macau não é um Estado.
Nenhuma norma da Lei Básica, em concreto, atribui aos tribunais, de forma expressa, a possibilidade de conhecer de violações da Lei Básica por normas jurídicas hierarquicamente inferiores, constantes de leis, regulamentos ou de outros actos normativas.4
Não obstante, esse poder dos tribunais extrai-se por interpretação conjugada de várias normas da Lei Básica.
Na verdade, nos termos do 2.º parágrafo do artigo 19.º da Lei Básica, “Os tribunais da Região Administrativa Especial de Macau têm jurisdição sobre todas as causas judiciais na Região, salvo as restrições à sua jurisdição que se devam manter, impostas pelo ordenamento jurídico e pelos princípios anteriormente vigentes em Macau”.
Como se viu, nos termos do 2.º parágrafo do artigo 11.º da Lei Básica “Nenhuma lei, decreto-lei, regulamento administrativo ou acto normativo da Região Administrativa Especial de Macau pode contrariar esta Lei”.
Ora, não tendo a Lei Básica instituído nenhum mecanismo, designadamente de carácter político, para resolver eventuais contradições entre a Lei Básica e normas jurídicas de outros diplomas vigentes que se suscitem em processos judiciais, daqui não pode deixar de decorrer que é aos tribunais, nos casos concretos submetidos à sua apreciação, que cabe conhecer de tais questões.
Tal como ensina o Professor WANG ZHENMIN5 quando aborda o regime de controlo de constitucionalidade da RAEM, “De acordo com as normas das duas Leis Básicas das Regiões Administrativas Especiais de Hong Kong e de Macau, são dois os sujeitos dotados do poder de controlo da constitucionalidade na região administrativa especial, a Assembleia Popular Nacional e o respectivo Comité Permanente, por um lado, e os tribunais da região especial, por outro. Ambas as entidades assumem as funções de fiscalizar a aplicação nas regiões especiais das Leis Básicas das regiões administrativas especiais, são órgãos conjuntos de fiscalização da constitucionalidade das regiões administrativas especiais”.
Relativamente aos fundamentos de proceder ao controlo de constitucionalidade pelos tribunais de região administrativa especial, o mesmo autor considera que “Dispõe o artigo 80.° da Lei Básica (de Hong Kong) (artigo 82.° da Lei Básica de Macau): ‘Os tribunais das diversas instâncias da RAEHK são órgãos judiciais da RAEHK, exercendo o poder judicial da RAEHK.’ Na ‘administração de justiça’ deve incluir, antes de mais, a lei fundamental da região, ou seja, a Lei Básica. Todos os tribunais da região têm as funções de fiscalizar a aplicação da Lei Básica. Mais ainda, o artigo 158.° da Lei Básica (artigo 143.° da Lei Básica de Macau) atribui aos tribunais da Região Especial de Hong Kong o poder de interpretar as disposições da Lei Básica da região especial no julgamento das causas. Torna-se, assim, óbvia a realização autónoma do controlo de constitucionalidade pelos tribunais da região especial. ... Por isso, seja qual for a perspectiva, não há dúvida de que os tribunais da Região Especial de Hong Kong devem continuar a dotar do poder de fiscalização de constitucionalidade após o retorno de Hong Kong. Existem fundamentos suficientes na Lei Básica e fácticos para os tribunais da região especial exercer o poder de controlo de constitucionalidade”6.
É o que também resulta do artigo 143.º da Lei Básica, nos termos de cujo 2.º parágrafo, os tribunais da Região Administrativa Especial de Macau estão autorizados pelo Comité Permanente da Assembleia Popular Nacional a interpretar, por si próprios, no julgamento dos casos, as disposições da Lei Básica que estejam dentro dos limites da autonomia da Região, isto é, que não se refiram a matérias que sejam da responsabilidade do Governo Popular Central (defesa e relações externas) ou do relacionamento entre as Autoridades Centrais e a Região.
Tal como considera o Professor XIAO WEIYUN 7ao tratar do poder de interpretação da Lei Básica de Macau, “Embora os tribunais da RAEM não tenham o poder de interpretar a Lei Básica de Macau, o Comité Permanente da Assembleia Popular Nacional atribui especialmente aos tribunais da RAEM parte do poder de interpretação, isto é, podem interpretar, por si próprios, as disposições da Lei Básica de Macau relativas à autonomia da RAEM. Em relação a interpretação destas normas, já não intervém o Comité Permanente da Assembleia Popular Nacional no julgamento das causas pelos tribunais da RAEM... Assim determina a Lei Básica de Macau é porque, por um lado, a RAEM é dotada de alto grau de autonomia que deve ser respeitado pela Lei Básica de Macau .... Por outro lado, os tribunais da RAEM procedem necessariamente à aplicação das leis no julgamento das causas, incluindo a Lei Básica. Mais ainda, os tribunais da RAEM têm o poder de julgar em última instância, também necessitam de interpretar as leis. Sem a interpretação e aplicação das leis não é possível julgar as causas”.
Ora, se os tribunais, no julgamento dos casos, podem interpretar a Lei Básica, necessariamente que podem concluir que disposições legais ou regulamentares a contrariam e, nesse caso, têm de cumprir o disposto no artigo 11.º da Lei Básica: donde, não podem aplicar normas que infrinjam o disposto na Lei Básica ou os princípios nela consagrados, sem prejuízo do disposto no artigo 143.º daquela Lei.
Como explica GOMES CANOTILHO 8 “em caso de conflito entre duas leis a aplicar a um caso concreto, o juiz deve preferir a lei superior (= lei constitucional) e rejeitar, desaplicando-a, a lei inferior”.
Do que ficou dito já se vê que este poder-dever dos tribunais não pode ser deixado à disponibilidade das partes. Tal poder tem de ser exercido oficiosamente, mesmo que nenhuma das partes do processo suscite a questão9, como sucede em todas as Ordens Jurídicas em que os juízes têm acesso directo à Constituição, o que acontece, actualmente, na maioria dos Sistemas Jurídicos.》10
Por outro lado, também é de relembrar as seguintes considerações expendida no Acórdão de 12 de Maio de 2010, no Processo n.º 5/2010, onde o Tribunal de Última Instância chegou a pronunciar-se, num caso semelhante ao presente em que está em causa um tratamento diferenciado de dois grupos de funcionários público, sobre a violação do princípio da igualdade estabelecido na Lei Básica:
《Ora, de acordo com o artigo 25.º da Lei Básica, os residentes são iguais perante a lei, não sendo admissíveis discriminações em razão da nacionalidade, ascendência, raça, sexo, língua, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução e situação económica ou condição social.
O princípio da igualdade postula que a lei – é a actuação legislativa que neste momento está em causa e não outras vertentes da actuação dos poderes públicos, como a da Administração Pública – trate igualmente o que é igual e que trate desigualmente o que é diferente.
No caso dos autos, a lei trata desigualmente duas situações. O que importa é apurar se estas situações são iguais ou diferentes.
Se as situações forem diferentes não há qualquer violação do princípio da igualdade.
Se as situações forem basicamente iguais, tratadas de modo desigual, temos violação do mesmo princípio, na vertente de proibição do arbítrio.》
Voltamos ao nosso caso em apreciação.
No caso vertente, constata-se que o recorrente iniciou funções como enfermeiro nos Serviços de Saúde de Macau com efeito a partir de 1 de Agosto de 1995, sendo contratado em regime de contrato individual de trabalho, como enfermeiro graduado, 3.º escalão, tendo-lhe sido atribuído o índice 405 da tabela de vencimentos.
Em anexo a tal contrato foram conferidos outros direitos e regalias ao recorrente, como direito a alojamento a expensas da RAEM, passagem de regresso ao local de recrutamento para si e família, bem como transporte de bagagem pessoal para si e agregado familiar, bagagem técnica, compensações por cessação definitiva de funções, etc.
A situação profissional do recorrente na RAEM faz-se assim por meio dum contrato individual de trabalho.
E em consequência do seu requerimento, foi autorizada, em Abril de 2010, a actualização salarial (índice 505, escalão 4.º) por averbamento ao contrato com referência à nova carreira de enfermagem.
Ao recorrente foi dado conhecimento de que o regime das carreiras não é aplicável aos trabalhadores recrutados ao exterior que tenham sido contratados ao abrigo do art.º 99.º da Lei Básica e que a alteração do contrato individual de trabalho produziu efeito a partir de 18 de Agosto de 2009.
Na cláusula 19.ª do averbamento do contrato ficou definido que os efeitos decorrentes do índice referido na cláusula 4.ª do averbamento retroagiram a 18 de Agosto de 2009, e não a 1 de Julho de 2007, como pretendeu o recorrente.
Ora, a Lei n.º 18/2009, que entrou em vigor no referido dia 18 de Agosto de 2009, estabelece o novo regime jurídico da carreira de enfermagem.
No que respeita ao assunto concretamente em causa, que é o efeito retroactivo das valorizações indiciárias dos vencimentos previstos para os enfermeiros, resulta do n.º 2 do art.º 40.º da Lei n.º 18/2009 que a Lei distingue duas situações: enquanto a lei faz retroagir a 1 de Julho de 2007 as valorizações indiciárias dos vencimentos para os enfermeiros do quadro, dos contratos além do quadro e dos assalariados, tal efeito não estende aos enfermeiros que constituam vinculação à Administração por regime de contrato individual de trabalho.
Será que a referida lei, ao estatuir o tratamento diferenciado entre os dois grupos de funcionários público, viola o princípio da igualdade previsto no art.º 25.º da Lei Básica da RAEM?
Se forem diferentes as situações dos dois grupos, não se verifica qualquer violação do princípio; caso contrário, é violado o princípio da igualdade.
Vamos ver se há justificação para o tratamento diferente estabelecido na Lei n.º 18/2009, que não concede a mesma retroactividade das valorizações de vencimentos para os enfermeiros que se encontram ligado à Administração por contrato individual de trabalho.
Sobre a mesma matéria, recorde-se que este Tribunal de Última Instância teve já oportunidade para se pronunciar em várias ocasiões, em que se abordam situações idênticas ou semelhantes.
Nos acórdãos proferidos nos Processos n.º 9/2012 e n.º 19/2012, de 9 de Maio de 2012 e no Processo n.º 33/2012, de 4 de Julho de 2012, o Tribunal de Última Instância expendeu as seguintes considerações (também reafirmadas nos acórdãos proferidos nos Processos n.ºs 10/2012, 24/2012 e 29/2012), cujo teor essencial se transcreve:
《Para tal, temos de descrever os regimes de provimento aplicáveis a estes grupos de funcionários.
O recorrente iniciou funções como enfermeiro nos Serviços de Saúde de Macau no dia 1 de Agosto de 1995, dia em que entrou em vigor (artigo 33.º) a Lei n.º 9/95/M, de 31 de Julho, que estabeleceu o regime da carreira de enfermagem.
Celebrou contrato além do quadro, tendo sido recrutado ao exterior ao abrigo do artigo 69.º, n.º1, do Estatuto Orgânico de Macau, na redacção da Lei n.º 13/90, que dispunha:
“O pessoal dos quadros dependentes dos órgãos de soberania ou das autarquias da República poderá, a seu requerimento ou com sua anuência e com autorização do respectivo ministro ou do órgão competente e concordância do governador, prestar serviço por tempo determinado ao território de Macau, contando-se, para todos os efeitos legais, como efectivo serviço no seu quadro e categoria o tempo de serviço prestado nessa situação”.
Recorde-se que vigorava o Decreto-Lei n.º 60/92/M, de 24 de Agosto, que estabelecia normas que regiam o recrutamento de pessoal ao abrigo do artigo 69.º, n.º 1, do Estatuto Orgânico de Macau, para exercer funções nos serviços e organismos públicos, incluindo as autarquias, os serviços e fundos autónomos, bem como nas empresas públicas e demais pessoas colectivas de direito público (artigo 1.º, n.º 1).
De acordo com os n. os 2 e 3 do mesmo artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 60/92/M:
“2. Ao restante pessoal recrutado no exterior são aplicáveis as normas constantes do respectivo contrato de trabalho e, subsidiariamente, com as devidas adaptações, o disposto no presente diploma.
3. Ao pessoal referido nos números anteriores aplica-se, supletivamente, o regime da função pública de Macau”.
Ora, nos termos do artigo 7.º deste Decreto-Lei n.º 62/92/M:
“Artigo 7.º
(Modalidades)
1. O pessoal recrutado, nos termos do artigo 1.º, pode exercer funções nos seguintes regimes:
a) Comissão de serviço, quando prevista na lei;
b) Contrato além do quadro e, excepcionalmente, assalariamento;
c) Contrato individual de trabalho.
2. A prestação de serviço no Território tem, em regra, a duração de dois anos ou a que lhe for fixada no despacho de autorização.
3. O contrato além do quadro e o assalariamento obedecem ao regime fixado para a função pública e o contrato individual de trabalho obedece ao regime que for fixado no respectivo contrato.
4. ...”
Portanto, ao tempo, os recrutados ao exterior (isto é, os vinculados à função pública portuguesa) para exercer funções nos serviços e organismos públicos, incluindo as autarquias, os serviços e fundos autónomos, bem como nas empresas públicas e demais pessoas colectivas de direito público, exerciam funções em comissão de serviço, quando prevista na lei, por contrato além do quadro e, excepcionalmente, assalariamento.
O contrato além do quadro era, desta maneira, a forma de provimento regra para os recrutados ao exterior.
O contrato de trabalho era a forma destinada ao pessoal recrutado ao exterior para prestar serviço nas entidades privadas.
Como se sabe, a comissão de serviço era (e é) a forma de provimento prevista em leis especiais, por tempo determinado, para determinadas funções, como os lugares de direcção e chefia, coordenação de equipas de projecto e em regime de estágio para os que já detivessem a qualidade de funcionário [artigo 23.º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau (ETAPM)].
O contrato além do quadro era (e continua a ser) uma forma de provimento por tempo determinado, renovável por iguais períodos ou inferiores, a que se aplicavam os requisitos gerais de provimento, ingresso, progressão e acesso nas carreiras, com excepção do concurso, sendo atribuído ao contratado um índice de vencimento com referência à carreira, categoria e escalão correspondentes às funções a desempenhar, de acordo com as habilitações e experiência profissional (artigos 25.º e 26.º do ETAPM).
O contrato de assalariamento era (e ainda é) é o ajuste feito pela Administração com uma pessoa não integrada nos quadros para, com carácter de subordinação, assegurar a satisfação das necessidades do serviço público mediante o pagamento de um salário correspondente à prestação diária de trabalho. O recurso ao contrato de assalariamento era admitido: para o recrutamento de pessoal operário e auxiliar, ou para outras categorias de pessoal que, pelo tipo de funções ou nível remuneratório, lhe sejam equiparáveis, quando fosse necessário o recrutamento de pessoal para o desempenho de funções específicas ou que revistam carácter de urgência, quando fosse necessário, pela natureza das funções, fazer preceder a celebração de contrato além quadro de um período experimental até 6 meses, para o recrutamento de estagiários, tratando-se de pessoal que não detenha a qualidade de funcionário e em casos previstos em legislação própria e nos termos nela regulamentados (artigo 27.º do ETAPM).
O recorrente manteve-se na situação de recrutado ao exterior, mediante contrato além do quadro, até 31 de Agosto de 2000.
Vigorava, então, o Decreto-Lei n.º 29/92/M, de 8 de Julho, que criou os Serviços de Saúde de Macau, como instituto público, dotado de personalidade jurídica e de autonomia administrativa e financeira, dispondo o seu artigo 45.º, n.º 2, que o regime do pessoal é o previsto na lei para os trabalhadores da Administração Pública.
6. A situação do recorrente na RAEM
Como se extractou na súmula dos factos provados, o recorrente celebrou contrato individual de trabalho por um ano, de 1 de Setembro de 2000 até 31 de Agosto de 2001, para exercer prestação de actividade de enfermagem e colaboração na formação dos quadros locais, com os Serviços de Saúde de Macau, nos termos do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau e do n.º 3 do artigo 48.º do Decreto-Lei n.º 81/99/M, de 15.11, tendo-lhe sido atribuído o índice 385 da tabela de vencimentos, correspondente a enfermeiro do grau 1, 4.º escalão, tendo-se acordado que ficava sujeito ao regime de direitos e deveres previsto na lei, com manutenção de todos os direitos dos contratos anteriores.
Em anexo ao contrato referido no parágrafo anterior foram conferidos outros direitos e regalias ao recorrente, como direito a alojamento a expensas da RAEM, passagem de regresso ao local de recrutamento para si e família, bem como transporte de bagagem pessoal para si e agregado familiar, bagagem técnica, compensações por cessação definitiva de funções, etc.
A situação contratual do recorrente na RAEM passou a fazer-se por meio de um contrato individual de trabalho.
Enquanto que a situação contratual anterior (recrutado ao exterior na situação de contrato além quadro) tinha um paradigma perfeitamente claro na lei, resultando da conjugação das normas do Decreto-Lei n.º 62/92/M e do ETAPM, em função do artigo 69.º do Estatuto Orgânico de Macau (depois artigo 66.º, n.º 1, após a Lei n.º 23-A/96, de 29 de Julho que alterou este Estatuto), complementado pelo artigo 45.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 29/92/M, o suporte legal actual não é tão claro.
Vejamos porquê.
A orgânica dos Serviços de Saúde resulta agora do Decreto-Lei n.º 81/99/M, de 15 de Novembro, que revogou o Decreto-Lei n.º 29/92/M.
Estatuiu o artigo 48.º do Decreto-Lei n.º 81/99/M:
“Artigo 48.º
(Quadro e regime de pessoal)
1. ...
2. Ao pessoal dos SSM aplica-se o regime jurídico geral dos trabalhadores da Administração Pública e a legislação especial aplicável à área da saúde.
3. Os SSM podem contratar pessoal médico, de enfermagem ou outro pessoal técnico, em Macau ou no exterior, em regime de contrato individual de trabalho ou de prestação de serviços para a execução de trabalhos de elevada diferenciação técnica.
4. ....”
O novo diploma veio permitir, assim, a contratação de pessoal em regime de contrato individual de trabalho ou de prestação de serviços, ao lado dos quadros contratuais do ETAPM.
Convém relembrar o que dispõe a Lei Básica sobre contratação de pessoal para a função pública:
“Artigo 97.º
Os funcionários e agentes públicos da Região Administrativa Especial de Macau devem ser residentes permanentes da Região, salvo os funcionários e agentes públicos previstos nos artigos 98.º e 99.º desta Lei, certos técnicos especializados e funcionários e agentes públicos de categorias inferiores contratados pela Região Administrativa Especial de Macau.
Artigo 98.º
À data do estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau, os funcionários e agentes públicos que originalmente exerçam funções em Macau, incluindo os da polícia e os funcionários judiciais, podem manter os seus vínculos funcionais e continuar a trabalhar com vencimento, subsídios e benefícios não inferiores aos anteriores, contando-se, para efeitos de sua antiguidade, o serviço anteriormente prestado.
Aos funcionários e agentes públicos, que mantenham os seus vínculos funcionais e gozem, conforme a lei anteriormente vigente em Macau, do direito às pensões de aposentação e de sobrevivência e que se aposentem depois do estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau, ou aos seus familiares, a Região Administrativa Especial de Macau paga as devidas pensões de aposentação e de sobrevivência em condições não menos favoráveis do que as anteriores, independentemente da sua nacionalidade e do seu local de residência.
Artigo 99.º
A Região Administrativa Especial de Macau pode nomear portugueses e outros estrangeiros de entre os funcionários e agentes públicos que tenham anteriormente trabalhado em Macau, ou que sejam portadores do Bilhete de Identidade de Residente Permanente da Região Administrativa Especial de Macau, para desempenhar funções públicas a diferentes níveis, exceptuando as previstas nesta Lei.
Os respectivos serviços públicos da Região Administrativa Especial de Macau podem ainda contratar portugueses e outros estrangeiros para servirem como consultores ou em funções técnicas especializadas.
Os indivíduos acima referidos são admitidos apenas a título pessoal e respondem perante a Região Administrativa Especial de Macau”.
O regime dos vínculos contratuais previsto no ETAPM continua a vigorar.
Já o Decreto-Lei n.º 60/92/M (diploma dos recrutados ao exterior) não foi adoptado como diploma normativo pela RAEM, por, de acordo com o artigo 3.º, n.º 3, e Anexo II da Lei n.º 1/999, contrariar a Lei Básica. “Todavia, enquanto não for elaborada nova legislação, pode a Região Administrativa Especial de Macau tratar as questões nela reguladas de acordo com os princípios contidos na Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau, tendo por referência as práticas anteriores”.
Como se disse atrás, o provimento por meio de contrato individual de trabalho parece ter sido previsto no Decreto-Lei n.º 60/92/M para os recrutados ao exterior que viessem a ser contratados por entidades privadas. Mas, em bom rigor, o mesmo Decreto-Lei n.º 60/92/M não exclui, de todo, que o contrato individual de trabalho pudesse ser um instrumento contratual para os que viessem a prestar serviço nos serviços e organismos públicos, nos serviços e fundos autónomos, bem como nas empresas públicas e demais pessoas colectivas de direito público.
Mas, enquanto o regime dos contratados além do quadro e dos assalariados obedece ao regime fixado para a função pública, já o contrato individual de trabalho obedece ao regime que for fixado no respectivo contrato (artigo 7.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 60/92/M).
Desta forma, por exemplo, enquanto o regime dos direitos e regalias dos contratados além do quadro, incluindo o montante dos respectivos vencimentos, resulta da lei e demais normativos aplicáveis à função pública, não sendo possível fixar vencimentos diferentes para pessoas que estiverem providas na mesma categoria e escalão de vencimentos, já os providos por contrato individual de trabalho podem beneficiar de direitos e regalias diversos, incluindo vencimentos, desde que seja isso acordado entre as partes, desde que seja isso que resulte do respectivo contrato.
Entretanto, em 2009 foi publicada uma lei que alterou o panorama que ficou descrito. Referimo-nos à Lei n.º 14/2009, de 3 de Agosto, relativa ao regime das carreiras dos trabalhadores dos serviços públicos, que entrou em vigor em 4 de Agosto de 2009 (artigo 82.º), complementada, no que ao pessoal de enfermagem concerne, pela Lei n.º 18/2009, de 17 de Agosto, que estabeleceu o regime da carreira de enfermagem e que entrou em vigor em 18 de Agosto de 2009 (artigo 40.º).
Segundo o n.º 2 do artigo 1.º da Lei n.º 14/2009, “O regime das carreiras é aplicável aos trabalhadores providos em regime de nomeação provisória ou definitiva, nomeação em comissão de serviço, contrato além do quadro, contrato de assalariamento e contrato individual de trabalho nos serviços públicos da RAEM”.
Por conseguinte, a partir da entrada em vigor desta norma, os providos por contrato individual de trabalho nos serviços públicos passam a estar sujeitos ao regime das carreiras.
Contudo, nos termos do artigo 1.º, n.º 4, alínea 3), “O regime das carreiras não é aplicável aos trabalhadores providos para servirem como consultores ou em funções técnicas especializadas”, sendo que a contratação destes trabalhadores “depende da autorização indelegável do Chefe do Executivo” [alínea 5)].
Apesar da obscuridade desta norma, parece ter-se querido11 referir-se ao pessoal mencionado pela mesma expressão, no 2.º parágrafo do artigo 99.º da Lei Básica, que não é a totalidade dos estrangeiros providos em funções públicas, sendo manifesto não se aplicar ao recorrente que, sendo portador de bilhete de identidade de residente permanente [n.º XXXXXXX(X), emitido em 27 de Agosto de 2004, pelos SIM, referido no seu contrato celebrado em 2010], e tendo trabalhado em Macau antes do estabelecimento da RAEM, se lhe aplica antes o 1.º parágrafo do artigo 99.º.
Portanto, ao recorrente nunca seria aplicável o disposto no artigo 1.º, n.º 4, alínea 3), Lei n.º 14/2009.
Porém, há que ter em conta o disposto no artigo 69.º da mesma Lei n.º 14/2009:
“Artigo 69.º
Contratos individuais de trabalho em vigor
1. Os contratos individuais de trabalho celebrados antes da data da entrada em vigor da presente lei e as suas renovações, continuam sujeitos à disciplina emergente desses contratos.
2. As partes, por sua iniciativa e mútuo acordo, podem optar por celebrar um novo contrato individual de trabalho regido pela presente lei.
3. A opção referida no número anterior deve ser exercida no prazo de 180 dias a contar da data da entrada em vigor da presente lei, retroagindo os efeitos do novo contrato a essa data.
4. Os contratos referidos no n.° 2 são celebrados tendo por referência a carreira a que corresponda as funções a desempenhar, tendo em conta as habilitações académicas ou profissionais legalmente exigidas, auferindo o trabalhador um índice de vencimento igual ou imediatamente superior ao que detém, caso não haja coincidência.
5. O tempo de serviço, para efeitos de progressão e acesso, dos contratos celebrados ao abrigo do n.° 2 é contado a partir da data de produção de efeitos do mesmo, não podendo ser anterior a data da entrada em vigor da presente lei.
6. Aos trabalhadores providos por contrato individual de trabalho não se lhes aplica o disposto no artigo anterior, contando-se o tempo de serviço para efeitos de progressão e acesso a partir da data da entrada em vigor da presente lei”.
Disposições similares vieram a constar do artigo 36.º da Lei n.º 18/2009, que regula o regime da carreira de enfermagem, onde se estatui:
“Artigo 36.º
Contratos individuais de trabalho em vigor
1. Os contratos individuais de trabalho celebrados antes da data da entrada em vigor da presente lei e as suas renovações continuam sujeitos à disciplina emergente desses contratos.
2. As partes, por sua iniciativa e mútuo acordo, podem optar por celebrar um novo contrato individual de trabalho regido pela presente lei.
3. A opção referida no número anterior deve ser exercida no prazo de 180 dias a contar da data da entrada em vigor da presente lei, retroagindo os efeitos do novo contrato a essa data.
4. Os contratos referidos no n.º 2 são celebrados tendo por referência o desenvolvimento da carreira constante do anexo I ou no anexo III da presente lei, tendo em conta, respectivamente, as habilitações académicas ou profissionais legalmente exigidas, mantendo os trabalhadores a categoria e escalão anteriormente detidos.
5. Nos casos previstos no n.º 2 o tempo de serviço, para efeitos de progressão e acesso, é contado a partir da data de produção de efeitos dos novos contratos”.
O último contrato individual de trabalho do recorrente foi celebrado em 2004, para vigorar de 1 de Setembro de 2004 até 31 de Agosto de 2005, tendo tido renovações e alterações posteriores, pelo que se lhe aplica o estabelecido no artigo 69.º, n.º 1, da Lei n.º 14/2009 e o artigo 36.º, n.º 1, da Lei n.º 18/2009, uma vez que no prazo de 180 dias a contar da entrada em vigor desta última Lei não foi celebrado novo contrato regido pela mesma Lei.
Daqui resulta que o regime de trabalho do recorrente é o que for fixado no respectivo contrato individual de trabalho, por aplicação dos princípios do Decreto-Lei n.º 60/92/M (designadamente do seu artigo 7.º, n.º 3), por força do artigo 3.º, n.º 3, e Anexo II, da Lei n.º 1/999, não lhe sendo aplicável, em princípio, o regime fixado para a função pública.
E, por isso, é que o contrato do recorrente tem 18 cláusulas, dispondo sobre o objecto do contrato, prazo, horário de trabalho, remuneração, subsídios de férias e de Natal, férias, subsídio de família, assistência médica e medicamentosa, ajudas de custo, cessação do contrato por justa causa, rescisão unilateral por parte do contratado, viagem de regresso a Portugal, alojamento, trasladação de restos mortais, compensações na cessação definitiva de funções e encargos.
É certo que, de acordo com a cláusula 18.ª, nos casos omissos, o contrato se rege pelas regras gerais vigentes para os trabalhadores da Administração Pública e que o recorrente recebe uma remuneração correspondente a uma categoria de enfermeiro e escalão de vencimento previsto no regime jurídico do pessoal de enfermagem, e que, de acordo com o n.º 3 da cláusula 4.ª do seu contrato, a remuneração mensal é actualizada na mesma proporção que o forem os vencimentos da Administração Pública.
Mas trata-se de remuneração contratual, não regida por lei, não estando excluído que a Administração com outros contraentes acorde de maneira diversa.
7. O caso dos autos
Estamos em condições de concluir.
O regime contratual do recorrente é profundamente diverso do regime dos enfermeiros do quadro e dos contratados além do quadro.
Enquanto que o regime dos enfermeiros do quadro, dos contratados além do quadro, dos assalariados e o dos novos contratos individuais de trabalho resulta da lei, o regime do recorrente resulta apenas do contrato que outorgou.
A Lei n.º 18/2009, que estabelece o regime jurídico da carreira de enfermagem e que entrou em vigor em 18 de Agosto de 2009, faz retroagir a 1 de Julho de 2007 as valorizações indiciárias dos vencimentos previstos para os enfermeiros do quadro, dos contratados além do quadro e dos assalariados (artigo 40.º, n.º 2, da Lei), não estendendo tal retroacção aos enfermeiros no regime de contrato individual de trabalho.
Afigura-se de que se trata de uma opção que se encontra dentro da discricionariedade do legislador, não violando o princípio da igualdade.
No caso dos autos, a lei trata desigualmente duas situações. Como referimos atrás, o que importa é se estas situações são iguais ou diferentes. Se as situações forem diferentes não há qualquer violação do princípio da igualdade.
No já mencionado Acórdão de 12 de Maio de 2010 dissemos o seguinte:
Como referem J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA12, “A proibição do arbítrio constitui um limite externo da liberdade de conformação ou de decisão dos poderes públicos, servindo o princípio da igualdade como princípio negativo de controlo: nem aquilo que é fundamentalmente igual deve ser tratado arbitrariamente como desigual, nem aquilo que é essencialmente desigual deve ser arbitrariamente tratado como igual. Nesta perspectiva, o princípio da igualdade exige positivamente um tratamento igual de situações de facto iguais e um tratamento diverso de situações de facto diferentes. Porém, a vinculação jurídico-material do legislador ao princípio da igualdade não elimina a liberdade de conformação legislativa, pois a ele pertence, dentro dos limites constitucionais, definir ou qualificar as situações de facto ou as relações da vida que há-de funcionar como elementos de referência a tratar igual ou desigualmente. Só quando os limites externos da «discricionariedade legislativa» são violados, isto é, quando a medida legislativa não tem adequado suporte material, é que existe uma «infracção» do princípio da igualdade enquanto proibição do arbítrio”.
Por outro lado, de acordo com os mesmos autores, “A proibição do arbítrio é particularmente relevante quando se compara o tratamento jurídico dedicado a grupos normativos de destinatários. Nestes casos, a violação do princípio da igualdade reconduz-se à desigualdade de tratamento de um grupo de destinatários da norma em relação a outros grupo de destinatários, não obstante a inexistência de qualquer diferença justificativa de tratamento desigual”13.
Por vezes, a lei considera desiguais duas situações que o não são por errada qualificação. Aqui haverá violação do princípio da igualdade.
Há, então, que determinar quais os valores segundo os quais se pode afirmar a igualdade ou desigualdade jurídica das situações.
Como as normas são meios de realização de fins, tem-se visto na conexão entre as normas com os respectivos fins o critério aferidor da igualdade ou desigualdade jurídica das situações.
Quando não haja conexão, ou ela seja insuficiente ou falha de razoabilidade para obter o fim visado pela norma, há violação do princípio da igualdade14.
Por outro lado, tal conexão tem de ter um fundamento material bastante.
Quer dizer, sem prejuízo da discricionariedade legislativa que deve ser reconhecida ao legislador, viola o princípio da igualdade a existência de regimes legais contraditórios aplicáveis a funcionários públicos, sem qualquer justificação razoável, ou seja, o arbítrio legislativo, o tratamento diferenciado injustificado.
5. Controlo judicial da legalidade das normas
De outra banda, em sede de controlo de legalidade das normas jurídicas, em face do parâmetro da Lei Básica, importa ponderar que “não cabe aos respectivos órgãos emitir propriamente um juízo ‹positivo› sobre a solução legal: ou seja, um juízo em que o órgão de controlo comece por ponderar a situação como se fora o legislador (e como que “substituindo-se” a este) para depois aferir da racionalidade da solução legislativa pela sua própria ideia do que seria, no caso, a solução ‹razoável›, ‹justa› ou ‹ideal›. Os órgãos de controlo da constitucionalidade não podem ir tão longe: o que lhes cabe é tão somente um juízo ‹negativo›, que afaste aquelas soluções legais de todo o ponto insusceptíveis de credenciar-se racionalmente”15.
Dito de outro modo: “a teoria da proibição do arbítrio não é um critério definidor do conteúdo do princípio da igualdade, mas antes expressa e limita a competência do controlo judicial”, pelo que, perante este “critério essencialmente negativo, são censurados apenas os casos de flagrante e intolerável desigualdade”, o que só ocorrerá quando as diferenças instituídas pelo legislador forem “não fundamentadas, não objectivas, não razoáveis”>16.
No caso dos autos, se bem que o legislador pudesse ter estabelecido o mesmo regime para todos os enfermeiros, considera-se que a diferenciação de remuneração transitória, efectuada entre os vários grupos de funcionários, não constitui flagrante e intolerável desigualdade, por se integrar dentro da discricionariedade do legislador.
Com o que se conclui que não houve violação do princípio da igualdade.》
Não se vê razões para alterar esta posição, uma vez que o presente caso é similar às situações tratadas nos acórdãos citados.
Postas as considerações acima referidas e ponderada a situação concreta do caso em apreço, é de concluir pela improcedência do presente recurso.
4. Decisão
Pelo exposto, acordam em negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, com a taxa de justiça em 4 UC.
Macau, 19 de Dezembro de 2018
Juízes: Song Man Lei (Relatora) – Sam Hou Fai –
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Mai Man Ieng
1 A rigidez consiste em determinadas leis terem um procedimento agravado de revisão.
2 XIAO WEIYUN, Macau e a Lei Básica de Macau, Editora do Diário de Macau, Macau, 1ª ed., 1998, p. 151.
3 XIAO WEIYUN, Macau..., p. 155.
4 Como se sabe, no país berço da judicial review – os Estados Unidos da América – nenhum preceito constitucional expresso confere o poder de fiscalização da constitucionalidade das leis aos tribunais (Cfr. JORGE MIRANDA, Teoria do Estado e da Constituição, Coimbra, Coimbra Editora, 2002, p. 133).
5 WANG ZHENMIN, O Regime da Fiscalização da Constitucionalidade das Leis na China, Pequim, Editora da Universidade de Ciências Políticas e Direito da China, 2004, p. 339.
6 WANG ZHENMIN, O Regime..., p. 356 e 357.
7 XIAO WEIYUN, Macau..., p. 215.
8 J. J. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra, Almedina, 2003, 7.ª edição, p. 893.
9 Desde que seja dada possibilidade às partes de se pronunciarem sobre a matéria.
10 Cfr. Acórdãos do TUI, de 18 de Julho de 2007, Processo n.º 28/2006, de 12 de Maio de 2010, Processo n.º 5/2010 e, mais recentes, de 9 de Maio de 2012, Processos n.º 9/2012 e 19/2012.
11 Embora seja duvidoso que se tivesse obtido o que se pretendia, já que nem todos os consultores ou que exercem funções técnicas especializadas são estrangeiros, nem a norma se refere a estrangeiros.
12 J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, Volume I, 4.ª edição, p. 339.
13 J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição..., Volume I, p. 340.
14 MARIA DA GLÓRIA FERREIRA PINTO, Princípio da Igualdade, Fórmula Vazia ou Fórmula Carregada de Sentido?, separata do Boletim do Ministério da Justiça n.º 358, Lisboa, p. 27.
15 JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, Coimbra, Coimbra Editora, 2005, Tomo I, p. 125, citando parecer da Comissão Constitucional portuguesa.
16 MARIA LÚCIA AMARAL, O princípio da Igualdade na Constituição Portuguesa, em Estudos de Homenagem ao Prof. Doutor Armando M. Marques Guedes, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2004, p. 52.
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Processo n.º 65/2014