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Processo nº 393/2015


Acordam em conferência na Secção Cível e Administrativa no Tribunal de Segunda Instância da RAEM:

I

A, e B, vêm nos termos do disposto no artº 1199º e s.s. do CPC, propor, contra a C Limitada e a D Limitada, a acção especial da revisão de decisões proferidas por tribunais ou árbitros do exterior de Macau.

O que faz nos termos e com fundamentos seguintes:

  A, com sede na Região Administrativa Especial de Hong Kong (doravante “RAEHK”), em XX, n.º XX XX Road, XX, XX,
  e
  B, portador do Bilhete de Identidade de Residente Permanente de Hong Kong n.º XXXXX47(7), com domicílio na RAEHK, em Flat XX, XXnd Floor, Block XX, Phase XX XX, No. XX XX, XX, XX, vêm pela presente requerer
  REVISÃO E CONFIRMAÇÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
  contra:
  C LIMITADA, que também usa a denominação em inglês C. LTD, sociedade comercial registada na Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis sob o n.º XXX81 (SO), com sede em Macau, na Avenida XX, n.º XX, XX Jardim, Xx.º andar XX,
  e
  D LIMITADA, que também usa a denominação em inglês D LIMITED, sociedade comercial registada na Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis sob o n.º XX88 (SO), com sede em Macau, na Avenida XX, n.º XX, XX.º andar XX, o que fazem nos termos e com os fundamentos seguintes:
1.º
  Na sequência de um acidente de trabalho ocorrido em 24 de Junho de 2005 em Macau, foi proferida a 29 de Março de 2011 a sentença judicial de condenação das Requeridas no âmbito do Processo de Compensação Laboral n.º 193 e 750 de 2007 que correu os seus termos no District Court da Região Administrativa Especial de Hong Kong, tribunal competente para o caso, conforme Doc. 1, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, o mesmo se dizendo para todos os documentos juntos ao presente requerimento (doravante, a “Sentença”).
2.º
  Sentença essa cuja revisão e confirmação se vem ora requer, porquanto, não obstante os longos anos volvidos, não ter ainda sido voluntariamente cumprida pelas Requeridas que foram condenadas.
3.º
  A 25 de Julho de 2012 foi proferido ainda, em sede de recurso interposto pelas Requeridas, que correu termos no Court of Appeal da RAEHK sob o n.º 71 de 2011, o Acórdão que se junta como Doc. 2, acompanhado da devida tradução (doravante, o “Acórdão”).
4.º
  Por força do Acórdão, foi negado provimento ao citado recurso, e por conseguinte, a Sentença de 29 de Março de 2011 foi mantida e não foi revogada, contrariamente ao que no âmbito do recurso era pedido e pretendido pelas Requeridas.
5.º
  Mais, julgou o Court of Appeal da RAEHK tratar-se de um recurso "opressivo" e abusivo, conforme consta expressamente do Acórdão.
6.º
  Requer-se igualmente a revisão e confirmação de uma terceira sentença, esta proferida no dia 21 de Novembro de 2012 no âmbito do processo n.º DCEC 750/2007, e que ora se junta devidamente traduzida como Doc. 3, por causa do mesmo acidente laboral, ainda que se trate de decisão meramente intercalar, por produzir efeitos condenatórios próprios da mesma primeira Requerida C, por não ter ainda sido espontaneamente cumprida e ter também já transitado em julgado (doravante, a “Sentença Intercalar”).
7.º
  Esta Sentença Intercalar foi proferida em processo inicialmente proposto por as Requeridas negarem responsabilidade e até a própria qualidade de entidade empregadora, tendo sido mais tarde sido refundido com o processo que deu origem à Sentença, em termos expostos em maior detalhe infra.
8.º
  Com efeito, a Sentença pôs termo ao processo n.º DCEC 193 & 750 de 2007 (Consolidado), um processo que resultou da fusão de dois processos judiciais inicialmente distintos, com as mesmas partes.
9.º
  Assim, requer-se a revisão e confirmação da Sentença e da Sentença Intercalar, pelos motivos expostos e que ora se juntam como Doc. 1 e Doc. 3, respectivamente.
10.º
  Conforme referido, as duas sentenças foram proferidas por tribunal judicial competente da Região Administrativa Especial de Hong Kong e transitaram em julgado.
Da legitimidade activa
11.º
  O primeiro Requerente é um Fundo de Direito Público constituído ao abrigo de uma lei aprovada na Região Administrativa Especial de Hong Kong, a “E”, com o objectivo de garantir o pagamento assistencial e previdêncial a trabalhadores de indemnizações e compensações por acidentes laborais, em caso de inexistência de seguro válido e de as entidades empregadoras não estarem em posição de cumprir as sentenças, ainda que limitado aos casos e aos termos previstos no citado diploma legal de Hong Kong.
12.º
  Em prossecução do referido objecto social, o primeiro Requerente, em obediência às disposições regulamentares aplicáveis, e face à demora injustificada no cumprimento por parte das Requeridas, já pagou ao segundo requerente, B portador do Bilhete de Identidade de
Residente de Hong Kong n.º XXXXX47(7), a quantia de HKD1.256.678,20 a título de pagamento assistencial ao abrigo da section 16 da citada E pelo acidente de trabalho ocorrido a 24 de Junho de 2005 quando este trabalhava por conta das Requeridas.
13.º
  Montante esse que era, e continua, a ser devido pelas Requeridas.
14.º
  O primeiro Requerente ficou, por conseguinte, plenamente subrogado na posição jurídica activa de B, nos termos do disposto no artigo 37.º da “E”, conforme parecer jurídico de Hong Kong, devidamente traduzido, que se junta como Doc. 4.
15.º
  Lê-se na página 8 do referido parecer que, ao abrigo do Direito de Hong Kong e de acordo com as disposições aí citadas:
“23. O facto de o Fundo ter concedido assistência monetária ao trabalhador lesado, não significa que a entidade empregadora, o- empreiteiro principal ou a seguradora (consoante o caso), que é o verdadeiro lesante condenado pela sentença em causa, esteja livre para ir à vida. (...) o Fundo fica subrogado na posição jurídica do trabalhador lesado (…)”.
16.º
  Com efeito, decorre do Direito de Hong Kong aplicável, à semelhança do que sucederia no ordenamento de Macau, caso fosse aplicável, que não podem as Rés, ora Requeridas, já condenadas por sentença transitada em julgado ao pagamento de indemnização, virem a ser beneficiadas pelo não cumprimento voluntário da sentença, independentemente de um terceiro ter pago ao trabalhador, como é o caso sub judice.
17.º
  Caso assim não se entendesse, sem conceder, sempre a subrogação se teria dado por via negocial, em documento formalizado no passado dia 29.01.2015 (Doc. 5) que se junta acompanhado de tradução.
18.º
  Ainda à cautela, e caso assim não se entenda, sempre sem conceder, B, simultaneamente cedeu os créditos e apresenta-se também como requerente da presente, tendo conferido poderes de representação, incluindo forenses, nos termos do documento que se junta como Doc. 6, acompanhado da devida tradução.

As sentenças
19.º
  B propôs na Região Administrativa Especial de Hong Kong duas acções declarativas especiais de condenação contra as Requeridas, pedindo indemnização pelo acidente ocorrido a 24 de Junho de 2005.
20.º
  Foi proposta mais de uma acção porque, inicialmente, não era claro quem era a entidade empregadora.
21.º
  As acções correram os seus termos em processos diferentes, respectivamente, sob o n.º DCEC 193/2007 e D750/2007.
22.º
  No âmbito do processo nº DCEC 750/2007, e antes da consolidação a que se refere no artigo seguinte, a primeira Requerida C foi no dia 21 de Novembro de 2008 condenada nos custos (da interlocutory application) por sentença de 21 de Agosto de 2008, que se junta como Doc. 3 (a já referida Sentença Intercalar).
23.º
  Tendo-se apurado no decurso das acções que a primeira Requerida era a entidade empregadora e a segunda Requerida a dona da obra responsável (principal contractor), foram as duas acções consolidadas numa só, sob o n.º “DCEC 193 & 750/2007(Consolidado)”.
24.º
  A acção, assim consolidada, foi julgada procedente, condenando as Requeridas em decisão de 29 de Março de 2011 do District Court de Hong Kong cuja certidão constitui o Doc. 1 em anexo (a já referida Sentença).
25.º
  As Requeridas interpuseram recurso, ao qual foi negado provimento por unanimidade em Acórdão de 25 de Julho de 2012 do Court of Appeal of the HKSAR High Court (Doc. 2) (o já referido Acórdão), com os fundamentos expostos no judgment (fundamentos da decisão), que se junta como Doc. 7, devidamente traduzido.
26.º
  O Acórdão do Court of Appeal of the HKSAR Hiqh Court (Doc. 2) transitou em julgado, bem como as Sentença Intercalar e a Sentença.
27.º
  Os documentos de onde constam a Sentença Intercalar, a Sentença e o Acórdão, respectivamente, são autênticos e as decisões inteligíveis.
28.º
  A Sentença Intercalar, a Sentença e o Acórdão, respectivamente, foram proferidos por tribunais competentes, sem litispendência nem caso julgado.
29.º
  A Sentença Intercalar e a Sentença são compatíveis com a ordem pública de Macau.
30.º
  Pelo que nada obsta à revisão e confirmação da Sentença Intercalar e da Sentença revidendos.
31.º
  Posteriormente, foram apurados meros lapsos ostensivos de escrita nas
denominações das Requeridas, lapsos esses que foram mandados corrigir por Order of Amendment do High Court de 17 de Setembro de 2014, que se junta como Doc. 8, devidamente traduzido.
32.º
  O primeiro lapso consistiu escrever-se por extenso “COMPANY LIMITED” em vez da forma abreviada “CO. LTD.” com o mesmo significado e o segundo lapso em constar a grafia “Macao” em vez de “Macau”, também sem alteração no significado veículado, mas que é aquela que consta na denominação social oficialmente registada na Conservatória do Registo Comercial e de Bens Móveis da Região Administrativa Especial de Macau e, portanto, constitui a única denominação correcta.
33.º
  As sentenças, cuja confirmação se requer, transitaram em julgado na jurisdição de origem, ao abrigo do direito processual e de acordo com todo o ordenamento jurídico da Região Administrativa Especial de Hong Kong, conforme exposto em maior detalhe no parecer jurídico emitido por advogados daquela praça, que se junta como Doc. 9, devidamente traduzido.
34.º
  Decorre do exposto que estão reunidos todos os pressupostos para a revisão e confirmação das duas sentenças em questão.
Nestes termos e demais de Direito que o Tribunal se dignar a suprir, devem a Sentença Intercalar e a Sentença ser revistas e, nos termos do disposto no artigo 1200.º do Código de Processo Civil, também confirmados para produzir efeitos legais na ordem jurídica da Região Administrativa Especial de Macau.

Citadas, ambas as requeridas contestaram, por excepção e por impugnação.

Dentre as excepções e impugnações deduzidas pelas requeridas, é de destacar uma impugnação apoiada no disposto nos artºs 1200º/1-c), primeira parte, e 1202º/2 do CPC, que para nós já constitui de per si fundamento suficiente para negar o exequatur.

Então vamo-nos debruçar sobre esta impugnação.

A 2ª requerida C Limitada alega que:
C - 出現其他可影響給與確認的法律問題
48. 聲請書第12條,與聲請書文件4均指出,根據香港《僱員補償條例》(Empoyees Compenstaion Assistance Ordinance)第16章規定作出,然而,第一被聲請人未能從申請審查及確認的三個裁決中,能查證聲請書第12條所指之賠償金額,港幣$1,256,678.20 ;
49. 第一被聲請人僅僅可以從聲請書文件1,即香港區或法院於2011年3月29日作出第2007年第193號及第750號案件(卷宗編號為193及750/2007,性質為『勞工賠償卷宗』)的文件上,知悉判給第二聲請人的賠償金額為港幣$146,054.00,並自行為發生之日起計,至作出裁判之日期間以年利率百分之四(4%)計算利息,以及自作出裁判之日起計直至實際作出之日,每年利率8%計算利息。
50. 再沒有其他關於聲請書第12條表述賠償金額HKD$1,256,678.20的計算方程式資料。
51. 雖然,聲請書文件四為一份法律意見書,其內作出了一些闡述,但根據現行法例,對於這些法律意見書,本身並非可予證明的依據。
52. 第一被聲請人實不明白第一及第二聲請人呈交有關文件及在聲請書作出的表述,目的何在?
53. 然而,在知悉有關訴訟所產生的司法成本(Custos Judiciais)時,第一被聲請人甚感警呀!因為所計算的司法訴訟費用高達HKD$1,071,377.00,較第二聲請人獲得的勞工損害賠償金額 HKD$146,054.00多達七倍,這是否違背了善良風俗呢?!
54. 雖然,第一被聲請人不明白第二聲請人為何不在澳門法院提出勞動爭議案件,尤其眾人皆知,作為大陸法系的澳門司法系統,司法爭訟的成本遠遠較香港的司法爭訟便宜,那麼,第二聲請人為何不在澳門法院提出而選擇在香港法院提出。
55. 雖然,勞動爭議案件非屬《澳門民事訴訟法典》第20條規定的澳門法院專屬司法管轄權的範園,然而,第二聲請人的行為所引致非屬實體問題的司法訴訟成本高達HKD$1,071,377.00,實在較第一被聲請人難以認同。
56. 事實上,根據《澳門民事訴訟法典》第16條及第17條,以及第9/2003號所核准的《勞動訴訟法典》規定,第二聲請人也可以在澳門提出勞動司法爭訟,這情況並不損害第二聲請人的利益。
57. 第一被聲請人作為澳門法人企業,本身負責人也不熟悉香港法律,但從司法援助制度的不一致,司法爭訟的成本,第二聲請人不選擇與本次具體勞動爭議案有較多關聯性因素的澳門法院,而選擇僅僅基於自己為香港居民的香港法院,且不依據國際私法的衝突適用原則,不選擇以澳門勞動法例作為實體法審理,是出於惡意的表現。
58. 這是不能認同及不應支持的。
59. 因此,應予裁定不具備審查及確認該三個香港法院作出的裁決,以及作出不予確認的裁決。

A 2ª requerida C entende que a escolha dos tribunais da RAEHK para instauração da acção de indemnização demonstra a má-fé por parte do sinistrado, 2º requerente B, dado que em vez de optar por propor a acção na RAEM, onde os tribunais são competentes face às normas de competência internacional de Macau e que tem mais elementos de conexão com as relações controvertidas da causa, ele resolveu accionar as requeridas nos tribunais daquela região administrativa especial vizinha onde tem a sua residência e os custos judiciais são bem superiores em comparação com os custos judiciais praticados na RAEM. E no caso sub judice, tendo sido o valor do pedido e da condenação apenas de HKD$146.054,00, as requeridas foram condenadas a suportar os custos judiciais que atingem o valor de HKD$1.071.377,00, o que, na óptica da requerida C, prejudica os seus interesses, e por isso, a revisão não pode ser concedida.

Como se sabe, a regra geral na matéria de revisão e confirmação das sentenças do exterior é a revisão formal.

No entanto, quando está em causa o obstáculo à confirmação previsto no artº1202º/2 do CPC, o tribunal de exequatur tem de apreciar se a decisão do exterior, tanto pela sua decisão em si mesma como pelos seus fundamentos, está em conformidade real com ou antes contrária às disposições do direito material do local de revisão, a fim de a confirmar na primeira hipótese e de negar o exequátur na segunda – no mesmo sentido cf. o Acórdão do TSI tirado em 10JUN2004, no processo nº 29/2003.

Na verdade, tirando a não verificação de qualquer um dos requisitos necessários para a confirmação das sentenças proferidas pelos tribunais do exterior elencados no artº 1200º/1 do CPC, o nosso legislador teve, desde há muito tempo, o cuidado de garantir, mediante a imposição da revisão de mérito, o justo tratamento dos residentes de Macau, quando estes são accionados no exterior.

Pois, pelo menos, já na vigência do código de 1939, o tratamento mais favorável face ao direito material interno funciona sempre como requisito negativo, de conhecimento oficioso, da concessão da revisão e confirmação, justamente por ter sido consagrado no seu artº 1102º/7 o princípio da revisão de mérito, por força do qual para que a sentença seja confirmada é necessário que, tendo sido proferida contra português, não ofenda as disposições do direito privado português, quando por este devesse ser resolvida a questão segundo as regras de conflitos do direito português – vide Alberto dos Reis, in Processos Especiais, II, pág. 186.

Esta norma encontra-se hoje mantida e refinada no artº 1202º/2 do CPC, à luz do qual se a decisão tiver sido proferida contra residente de Macau, a impugnação pode ainda fundar-se em que o resultado da acção lhe teria sido mais favorável se tivesse sido aplicado o direito material de Macau, quando por este devesse ser resolvida a questão, segundo as normas de conflitos de Macau.

De acordo com a matéria fáctica não controvertida, na acção de cuja sentença ora se requer a revisão e confirmação foi peticionado o valor de HKD$146.054,00.

Mas em sede do julgamento de recurso decorrido no Court of Appeal da RAEHK ambas as requeridas acabaram por ser condenadas, em conjunto (jointly) a suportar o valor de HKD$901.377,00 e a 2ª requerida C, sozinha, condenada a pagar o valor de HK$170.000,00, a título de custas e tributações judiciais por ter o tribunal superior da região vizinha considerado o recurso interposto pelas ora requeridas unmeritorious e oppressive – cf. as fls. 45 e 97 dos presentes autos.

Salta à vista um valor extremamente desproporcional, senão exagerado!

E inaceitável perante o nosso ordenamento jurídico.

Bom, há quem afirma que a justiça é um bem económico, pois o recurso aos tribunais é tributado.

Não obstante a nossa relutância na aceitação integral dessa afirmação, o certo é que temos o «Regime das Custas nos Tribunais», aprovado pelo Decreto-Lei nº 63/99/M, nos termos do qual, à excepção das isenções subjectivas e objectivas, são sempre objecto da tributação as acções, os processos, incidentes processuais assim como os actos processuais avulsos.

Nós compreendemos perfeitamente a razão de ser das custas e taxas aplicadas nos processos judiciais, pois tendo em conta a escassez dos recursos humanos e materiais da máquina de justiça, é preciso que seja estabelecido o equilíbrio entre a necessidade de evitar recurso abusivo aos serviços judiciais ou a banalização dos tribunais por conflitos bagatelares e a garantia do exercício efectivo e válido do direito de aceder à justiça.

É justamente na esteira desse pensamento, no nosso sistema, à excepção das situações extremas, nomeadamente a condenação do litigante de má-fé, a parte vencida, quer na primeira instância quer nas instâncias recursórias, em caso algum, pode vir a ser sancionada com a condenação nas custas ou taxas judiciais no valor consideravelmente superior ao da utilidade económica dos interesses reivindicados ou defendidos na acção, pois de outro modo, o livre e efectivo exercício do direito de acesso à justiça, constitucionalmente tutelado na Lei Básica, seria inevitavelmente constrangido pelo risco, que o seu titular não quer correr, de vir a ser severamente sancionado com a perda da causa ou do recurso.

In casu, a soma dos valores das custas judiciais ou taxas atinge mais de um milhão de dólares de Hong Kong, enquanto o valor da indemnização peticionado é apenas de HKD$146.054,00.

Tendo em conta os factos relatados no teor das decisões revidendas que instruíram a petição inicial e a relação controvertida configurada pelo seu Autor, ora requerente B, o objecto da acção instaurada nos tribunais de Hong Kong é um pedido de indemnização pelos danos alegadamente causados num acidente de trabalho ocorrido em Macau a um trabalhador residente de Hong Kong contratado por uma empresa sediada em Macau.

Segundo as nossas normas de conflito, a questão de indemnização deve ser resolvida pelo direito material de Macau – artº 44º/1 do CC.

Só que assim não sucedeu, pois flui do teor das decisões revidendas que não foi sequer contemplado o direito material de Macau pelos tribunais de Hong Kong.

Por outro lado, tirando as duas expressões meramente conclusivas, unmeritorious e oppressive, utilizadas na decisão proferida pelo Court of Appeal de Hong Kong, nenhum facto concreto e material resulta do teor da fundamentação das sentenças revidendas capaz de sustentar o juízo de censura, exigido pelo nosso direito para a condenação das requeridas pela litigância de má-fé, sobre a atitude processual tomada e a posição processual assumida pelas aqui requeridas, ao longo daquele processo que correu os termos nos tribunais de Hong Kong.

Portanto, face ao direito material de Macau, in casu aplicável segundo as nossas normas de conflitos, as partes vencidas, as ora requeridas, em caso algum poderiam vir a ser condenadas a suportar, só a título de custas ou taxas de justiça, um valor que corresponde a sete vezes superiores ao da quantia peticionada!

Posto isto, é de concluir que se a acção tivesse sido instaurada nos tribunais de Macau, o resultado da acção teria sido mais favorável às requeridas.

Para além de ser obstáculo suficiente à concessão do exequatur (artº 1202º/2), este tratamento desfavorável aos residentes de Macau, por tributação extremamente pesada, injustificadamente exagerada e manifestamente desproporcional à utilidade económica do pedido da acção, constitui também a ofensa à ordem pública de Macau (artº 1200º/1-f do CPC).

Segundo os ensinamentos de Mota Pinto, entende-se por ordem pública o conjunto dos princípios fundamentais, subjacentes ao sistema jurídico, que o Estado e a sociedade estão substancialmente interessados em que prevaleçam e que têm uma acuidade tão forte que devem prevalecer sobre as convenções privadas – in Teoria Geral do Direito Civil, 3ª edição actualizada, pág. 551; e outro define a ordem pública como conjunto de princípios basilares de uma dada ordem jurídica, fundados em valores de moralidade, de justiça ou de segurança social, que regulam interesses gerais e considerados fundamentais da colectividade, e que informam um conjunto de disposições legais – Ana Prata, in Dicionário Jurídico.

Evidentemente, o direito do acesso à justiça é indubitavelmente um dos valores em que se funda o conjuntos dos princípios fundamentais do nosso ordenamento jurídico.

Na verdade, o risco de poder vir a ser condenado a suportar custas judiciais ou taxa de justiça desproporcionais e exageradas compromete inevitável e injustificadamente o exercício livre e efectivo do direito de acesso à justiça, bem jurídico esse que é constitucionalmente tutelado na nossa Lei Básica e constitui a razão de ser das leis ordinárias na matéria do acesso à justiça.

Por outro lado, por conhecimento derivado do exercício das nossas funções jurisdicionais, sabemos que, se demandadas nos tribunais de Macau, as ora requeridas poderiam ter beneficiado de alguns mecanismos processuais especificamente previstos nos processos especiais destinados à efectivação de direitos dos sinistrados resultantes de acidente de trabalho no ordenamento jurídico de Macau, nomeadamente o patrocínio oficioso do Ministério Público, a obrigatoriedade da fase conciliatória que precede a fase contenciosa e o chamamento obrigatório da seguradora à demanda – artºs 7º e s.s, 47º e s.s., 53º e 60º do CTP.

Não obstante o aparente índole meramente processual destes mecanismos especiais, é de averiguar se os preceitos que os regulam são de carácter substancial, e não simples regras de processo (nesse sentido defende Alberto dos Reis, in Processos Especiais, II, pág. 192).

Tendo em conta os bens jurídicos que os tais mecanismos visam tutelar, nomeadamente a possibilidade de alcançar a solução amigável e consensual, por forma não contenciosa, expedita e económica quanto à questão da responsabilidades resultantes para o sinistrado de acidentes de trabalho, a inexistência do encargo resultante do reembolso, a título da procuradoria, ao Ministério Público quando agir como patrono oficioso do sinistrado, e a transferência da responsabilidade civil de indemnização da entidade patronal para a seguradora, cremos que a preterição desses mecanismos todos, nos processos decorridos nos tribunais de Hong Kong, representa a violação do direito material, e não mero direito processual de Macau.

Portanto, mais uma vez, é de concluir que se as ora requeridas tivessem sido demandadas nos tribunais de Macau ou não obstante demandadas em Hong Kong, tivesse sido aplicado ali o direito material de Macau, o resultado das acções ter-lhes-ia sido sempre mais favorável.

Assim, qualquer desses três fundamentos, dois consistentes no tratamento hipoteticamente mais favorável às requeridas se aplicado o direito material de Macau ou se demandadas nos tribunais de Macau, um por ofensa à ordem pública de Macau, é de per si suficiente para nos levar a decidir negar o exequatur das decisões revidendas proferidas pelos tribunais de Hong Kong.

Posto isto tudo, fica prejudicado o conhecimento as restantes excepções e impugnações deduzidas pelas requeridas nas suas contestações.

Sem mais delonga, é de concluir e decidir.

Em conclusão:

1. A regra geral na matéria de revisão e confirmação das sentenças do exterior é a da revisão formal. No entanto, quando está em causa o obstáculo à confirmação previsto no artº1202º/2 do CPC, o tribunal de exequatur tem de apreciar se a decisão do exterior, tanto pela sua decisão em si mesma como pelos seus fundamentos, está em conformidade real com ou antes contrária às disposições do direito material do local de revisão, a fim de a confirmar na primeira hipótese e de negar o exequátur na segunda.

2. O artº 1202º/2 do CPC visa garantir, mediante a imposição da revisão de mérito, o justo tratamento dos residentes de Macau, quando estes forem accionados no exterior.

3. Ao condenar as partes vencidas, numa acção de indemnização em que foi peticionado o valor de HKD$146.054,00, a suportar custas judiciais ou taxa de justiça, mesmo do carácter sancionatório, no valor superior a um milhão de dólares de Hong Kong, a sentença de condenação revidenda nestes termos proferida pelos tribunais de Hong Kong ofende a ordem pública de Macau onde, sendo um bem jurídico constitucionalmente tutelado, o exercício livre e efectivo do direito de acesso à justiça pelo seu titular, em caso algum, pode ser injustificadamente limitado ou comprometido, nomeadamente pelo risco de o seu titular vir a ser condenado em quantia exagerada, o que é sempre assustador de quem pretende reivindicar ou defender os direitos nos tribunais.

4. Na matéria de revisão e confirmação da sentença do exterior, regulada nos artº 1199º e s. s. do CPC, a preterição na acção de indemnização pelos danos resultantes de acidente de trabalho, processada no tribunal do exterior onde foi proferida a sentença revidenda, da fase conciliatória, do patrocínio oficioso do Ministério Público e da intervenção obrigatória da seguradora, especificamente previstos nos processos destinados à efectivação dos direitos das vítimas de acidente de trabalho e dos beneficiários legais da indemnização, previstos no Código de Processo de Trabalho de Macau, represente violação do direito material de Macau e pode constituir obstáculo à concessão da exequatur da sentença revidenda, nos termos do disposto no artº 1202º/2 do CPC.

Em face de tudo quanto acima exposto, acordam em negar a revisão e a confirmação das decisões revidendas.

Custas pelos requerentes.

Registe e notifique.

RAEM, 06DEZ2018
_________________________
Lai Kin Hong
_________________________
Fong Man Chong
_________________________
Ho Wai Neng
(votei a decisão com fundamento no tratamento mais favorável)
Ac. 393/2015-18