Processo nº 1048/2018 Data: 24.01.2019
(Autos de recurso penal)
Assuntos : Crime de “abuso sexual de pessoa incapaz de resistência”.
Erro notório na apreciação da prova.
Livre apreciação da prova.
Regras de experiência.
Reenvio.
SUMÁRIO
1. O erro notório na apreciação da prova apenas existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores.
O princípio da livre apreciação da prova, significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que pré-determinam ou hierarquizam o valor dos diversos meios de apreciação da prova, pressupondo o apelo às “regras de experiência” que funcionam como argumentos que ajudam a explicar o caso particular com base no que é “normal” acontecer.
2. Existe erro notório na apreciação da prova se a “decisão da matéria de facto” do Tribunal se apresentar contrária às “regras de experiência” e à “normalidade das coisas”.
O relator,
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José Maria Dias Azedo
Processo nº 1048/2018
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. Por Acórdão do T.J.B. de 19.07.2018 decidiu-se absolver o arguido, A, da imputada prática como autor de 1 crime de “abuso sexual de pessoa incapaz de resistência”, p. e p. pelo art. 159°, n.° 2 do C.P.M.; (cfr., fls. 298 a 304 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Inconformado com a decretada absolvição do arguido, o Ministério Público recorreu, imputando ao Acórdão recorrido o vício de “erro notório na apreciação da prova” e “contradição insanável da fundamentação”; (cfr., fls. 311 a 315).
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Sem resposta e admitido o recurso, vieram os autos a este T.S.I., onde, em sede de vista, juntou o Ilustre Procurador Adjunto douto Parecer pugnando também pela verificação dos vícios de “erro notório na apreciação da prova” e “contradição insanável da fundamentação”; (cfr., fls. 332 a 333-v).
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Adequadamente processados os autos e nada parecendo obstar, passa-se a decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Estão “provados” e “não provados” os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 299-v a 301, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.
Do direito
3. Vem o Ministério Público recorrer do Acórdão pelo Colectivo do T.J.B. proferido que absolveu o arguido da prática, como autor, de 1 crime de “abuso sexual de pessoa incapaz de resistência”, p. e p. pelo art. 159°, n.° 2 do C.P.M., que lhe era imputado.
E, como se referiu, entende que se terá incorrido no vício de “erro notório na apreciação da prova” e “contradição insanável da fundamentação”.
Começando pelo apontado “erro”, apresenta-se-nos ter o Exmo. Recorrente razão.
Vejamos.
Repetidamente tem este T.S.I. considerado que “O erro notório na apreciação da prova apenas existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores”.
De facto, “É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 04.04.2018, Proc. n.° 912/2017, de 17.05.2018, Proc. n.° 236/2018 e de 19.07.2018, Proc. n.° 538/2018).
Como também já tivemos oportunidade de afirmar:
“Erro” é toda a ignorância ou falsa representação de uma realidade. Daí que já não seja “erro” aquele que possa traduzir-se numa “leitura possível, aceitável ou razoável, da prova produzida”.
Sempre que a convicção do Tribunal recorrido se mostre ser uma convicção razoavelmente possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve a mesma ser acolhida e respeitada pelo Tribunal de recurso.
O princípio da livre apreciação da prova, significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que pré-determinam ou hierarquizam o valor dos diversos meios de apreciação da prova, pressupondo o apelo às “regras de experiência” que funcionam como argumentos que ajudam a explicar o caso particular com base no que é “normal” acontecer.
Com o mesmo, consagra-se um modo não estritamente vinculado na apreciação da prova, orientado no sentido da descoberta da verdade processualmente relevante pautado pela razão, pela lógica e pelos ensinamentos que se colhem da experiência comum, e limitado pelas excepções decorrentes da “prova vinculada”, (v.g., caso julgado, prova pericial, documentos autênticos e autenticados), estando sujeita aos princípios estruturantes do processo penal, entre os quais se destaca o da legalidade da prova e o do “in dubio pro reo”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 04.04.2018, Proc. n.° 151/2018, de 07.06.2018, Proc. n.° 376/2018 e de 11.10.2018, Proc. n.° 772/2018).
No caso dos autos, e da análise e reflexão que nos foi possível fazer, cremos que incorre o Tribunal a quo no assacado “erro” por “violação das regras de experiência” e da “normalidade das coisas”, (muito não se afigurando necessário consignar).
Com efeito, (e em síntese), a matéria de facto dada como “provada” dá-nos conta que, na madrugada do dia 05.12.2016, a ofendida, após consumir bebidas alcoólicas com um grupo de colegas de trabalho, de entre os quais o arguido, ficou “embriagada”, que “neste estado” foi pelo arguido “encaminhada” para uma pensão onde este alugou um quarto para o qual a levou, que no interior do quarto a ofendida chorou (demoradamente, ao ponto de o empregado da pensão ir indagar do que se passava), provado estando também que no período de tempo em que permaneceram no quarto tiveram relações sexuais.
Porém, deu o Colectivo como “não provado” que as ditas relações foram contra a vontade da ofendida, que esta, devido ao estado de “embriagada” em que se encontrava não foi capaz de opor resistência ao arguido, e que este agiu livre, conscientemente e com conhecimento da ilicitude da sua conduta.
E tendo presente as “circunstâncias” em que ocorreram os factos, certo sendo que a ofendida estava “embriagada”, tendo chorado no quarto (ao ponto de o empregado da pensão ter ido bater a porta para saber do que se passava), atenta a queixa (por “violação”) pela ofendida apresentada na Polícia Judiciária (apenas) horas depois da ocorrência, assim como aos registos das comunicações que a ofendida efectuou aos seus amigos pouco tempo depois dos factos, (cerca de uma hora), “pedindo ajuda”, “dizendo que não sabia onde estava”, e que “o arguido a tinha violado”, mais lógico e de acordo com as regras da experiência seria dar-se como “assente” a atrás referida factualidade tida como “não provada”; (cfr., fls. 2 a 3 e 77 a 81-v).
Não se quer com isto dizer que, em situações como a dos autos, o Tribunal não podia decidir como decidiu, apreciando as provas de acordo com o “princípio da livre apreciação da prova”, como foi o caso.
Como é óbvio, podia.
Contudo, in casu, a explicação dada – não dando crédito à versão da ofendida com base nas suas declarações em audiência, que considerou (algo) “confusas” – não nos convence da bondade do decidido.
Na verdade, e atenta a “sequência factual” que se referiu, fica um conjunto de aspectos por esclarecer…
Porque o choro da ofendida no “momento” em que se encontrava no quarto com o arguido e onde tiveram relações sexuais?
Porque as comunicações da ofendida aos seus amigos (logo) a seguir ao sucedido, pedindo ajuda, dizendo mesmo que foi “violada pelo arguido” (que identificou pelo nome)?
E, porquê a queixa na Polícia Judiciária, poucas horas depois, relatando o sucedido?
Ora, como é óbvio, o Tribunal não está vinculado a dar como provada a versão da ofendida, (ou de qual quer outro interveniente processual), certo sendo que não se olvida também das especificidades e dificuldades neste tipo de processos e matérias…
Todavia, numa situação como a dos autos, e apreciadas aquelas circunstâncias em conformidade com as “regras de experiência” e da “normalidade das coisas”, afastada parece dever ficar a aversão do arguido no sentido da prática de “sexo consensual”…
O que terá levado a ofendida a acompanhar o arguido à pensão e a um quarto desta, a chorar enquanto aí esteve, a ter relações sexuais com aquele, e, pouco depois, a dizer aos amigos que foi “violada”, indo ao ponto de apresentar uma queixa contra o mesmo?
Como é evidente, “há razões que a razão desconhece”, e nem tudo o que acontece tem explicação (lógica).
Porém, a situação dos autos, (infelizmente), não se nos apresenta assim tão fora do comum…
E, sem prejuízo do muito respeito por outro entendimento, afigura-se-nos que a factualidade dada provada, (e até a própria ausência de outra que justificasse versão diversa), apresenta-se-nos, atentas as ditas regras de experiência, que a versão da ofendida, (porque de acordo com a normalidade das coisas), merece uma mais cuidada e ponderada análise.
Seja como for, e especialmente em processos desta natureza, teria – deveria – o Tribunal explicitar, mais pormenorizadamente, as razões da sua decisão.
Não o tendo feito, impõe-se-nos concluir que a decisão recorrida viola as regras de experiência, verificado estando desta forma o vício de “erro notório” que, porque insanável, implica o reenvio do processo para novo julgamento na parte em questão; (cfr., art. 418° do C.P.P.M.).
Nesta conformidade, e prejudicada ficando a apreciação da também apontada contradição, (até porque diz respeito à mesma matéria), resta decidir como segue.
Decisão
4. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam conceder provimento ao recurso, decretando-se o reenvio do processo para novo julgamento no T.J.B..
Pagará o arguido a taxa de justiça de 6 UCs.
Registe e notifique.
Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.
Macau, aos 24 de Janeiro de 2019
José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa
Proc. 1048/2018 Pág. 14
Proc. 1048/2018 Pág. 13