Processo nº 892/2018 Data: 24.01.2019
(Autos de recurso penal)
Assuntos : Crime de “falsificação de documentos”; (art. 18° da Lei n.° 6/2004).
Omissão de pronúncia.
Erro notório.
Livre apreciação da prova.
SUMÁRIO
1. Existe “omissão de pronúncia” quando o Tribunal nada diz sobre um “facto” alegado ou “questão” suscitada.
Não há omissão de pronúncia em sede da “decisão da matéria de facto”, se o Tribunal proferiu decisão sobre toda a “matéria de facto” que lhe competia decidir, abrangendo toda a “matéria objecto do processo”, elencando a que resultou “provada” e, (referindo-se mesmo à contestação do ora recorrente), identificando os “factos não provados”.
2. Uma “certidão de casamento” apenas comprova a “celebração do casamento entre duas pessoas em determinada data e local”, não constituindo nenhum obstáculo quanto à prova da “motivação” e “objectivos” do mesmo.
O relator,
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José Maria Dias Azedo
Processo nº 892/2018
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. A (A), (1°) arguido com os restantes sinais dos autos, vem recorrer do Acórdão do T.J.B. que o condenou como co-autor da prática 1 crime de “falsificação de documentos”, p. e p. pelo art. 18°, n.° 1 e 2 da Lei n.° 6/2004, na pena de 2 anos e 9 meses de prisão, suspensa na sua execução por 4 anos; (cfr., fls. 275 a 279-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Inconformado, o arguido recorreu.
Motivou para, em síntese, concluir afirmando que o Acórdão recorrido padece de “omissão de pronúncia”, “erro notório na apreciação da prova” e “errada aplicação de directo”; (cfr., fls. 288 a 318).
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Respondendo, diz o Ministério Público que o recurso não merece provimento; (cfr., fls. 321 a 326).
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Neste T.S.I., e em sede de vista, juntou o Exmo. Representante do Ministério Público o seguinte douto Parecer:
“Submetido a julgamento em processo comum perante tribunal colectivo, foi o ora recorrente A condenado na pena de 2 anos e 9 meses de prisão, suspensa na sua execução por quatro anos, pela co-autoria de um crime de falsificação de documentos da previsão do artigo 18.°, n.° 2, da Lei n.° 6/2004.
Vem interpor recurso do acórdão condenatório, imputando-lhe nulidade por omissão de pronúncia, erro notório na apreciação da prova e violação das regras sobre a impugnação de documentos autênticos e sobre o valor probatório do registo, tendo o Ministério Público, na sua resposta, refutado os argumentos do recorrente e defendido a bondade do acórdão.
Vejamos a questão da omissão de pronúncia.
Alega o recorrente que o acórdão não se pronunciou sobre os factos articulados pela defesa nos artigos 4.°, 8.° e 12.° da sua contestação.
Em matéria de nulidades dos acórdãos/sentenças, e para o que ora interessa, o artigo 360.° do Código de Processo Penal fulmina de nulidade a falta das menções referidas no n.° 2 do artigo 355.° do Código de Processo Penal, entre as quais se conta a enumeração dos factos provados e não provados. Visto o acórdão, constata-se que, de entre os factos pertinentes, ele considerou não provados aqueles que foram alegados pela defesa em contrário dos factos considerados provados.
Como se vê, o acórdão pronunciou-se sobre a matéria de facto alegada na contestação. De resto, os referidos pontos (artigos 4.°, 8.° e 12.°) não contêm matéria de facto.
Improcede este fundamento do recurso.
Quanto ao erro notório, o recorrente traça a sua própria leitura da prova, onde evidencia uma visão manifestamente afeiçoada ao interesse directo que tem no desfecho do caso. Ao ponto de usar argumentos que se voltam contra si, como o de ter casado com uma velha quando poderia ter optado por casar com uma jovem. Parece que todos, ou quase todos, mentiram ao tribunal menos ele. O que o recorrente verdadeiramente põe em causa é a apreciação das provas feita pelo tribunal, actividade que, como é sabido, está coberta pelo princípio da livre apreciação da prova, o que a torna, em princípio, insindicável.
O erro notório na apreciação da prova pressupõe que a partir de um facto se extraia uma conclusão inaceitável, que sejam preteridas regras sobre o valor da prova vinculada ou tarifada, ou que se violem as regras da experiência ou as leges artis na apreciação da prova – acórdão do Tribunal de Última Instância, de 4 de Março de 2015, exarado no Processo n.° 9/2015 – o que, em boa verdade, não vem posto em causa.
Improcede também este fundamento do recurso.
Finalmente, socorrendo-se de regras atinentes à impugnação de documentos autênticos e ao valor probatório do registo civil em matéria de estado das pessoas, o recorrente insinua que não podia ter sido condenado penalmente sem que antes fosse impugnada a autenticidade da certidão do seu casamento e cancelado o respectivo registo.
Engana-se. No processo penal vigora o princípio da suficiência, sendo lícito ao tribunal resolver todas as questões que interessem à decisão da causa, sem necessidade de esperar pela resolução de qualquer questão noutro foro – artigo 7.° do Código de Processo Penal.
Provado que ficou, no processo penal, que o recorrente simulou um casamento com uma residente local como forma de obter autorização de residência em Macau, tendo logrado, através da exibição de certidão desse casamento falso, obter o BIR de Macau, haverá que extrair, dentro do ordenamento jurídico de Macau, todas as consequências daí derivadas, quer em termos penais, quer em termos civis. Digamos que o raciocínio a utilizar é o contrário daquele que o recorrente parece preconizar.
Também este fundamento do recurso claudica.
Improcedem os vícios imputados ao acórdão, que não é merecedor de qualquer censura, pelo que deve negar-se provimento ao recurso”; (cfr., fls. 378 a 379).
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Nada obstando, passa-se a decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Estão “provados” e “não provados” os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 276-v a 277, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.
Do direito
3. Vem o arguido recorrer do Acórdão que o condenou como co-autor da prática 1 crime de “falsificação de documentos”, p. e p. pelo art. 18°, n.° 1 e 2 da Lei n.° 6/2004, na pena de 2 anos e 9 meses de prisão, suspensa na sua execução por 4 anos.
Afirma que o Acórdão recorrido padece do vício de “omissão de pronúncia”, “erro notório na apreciação da prova” e “errada aplicação de direito”.
Como bem o demonstra o Ministério Público na sua resposta ao recurso e posterior Parecer que atrás se deixou transcrito, ao recorrente não assiste razão, censura não merecendo o veredicto recorrido.
Vejamos.
–– Quanto à apontada “omissão de pronúncia”.
Diz o recorrente que o Colectivo a que não se pronunciou sobre factos por ele alegados em sede da sua contestação; (cfr., fls. 182 a 186).
Todavia, como se deixou adiantado, não tem razão.
Existe “omissão de pronúncia” quando o Tribunal nada diz sobre um “facto” alegado ou em relação a uma “questão” (jurídica) – legalmente – suscitada.
E, no caso dos autos, nenhuma “omissão de pronúncia” ocorreu dado que o Colectivo a quo proferiu decisão sobre toda a “matéria de facto” que lhe competia decidir, abrangendo toda a “matéria objecto do processo”, elencando a que resultou “provada” e, (referindo-se mesmo à contestação do ora recorrente), identificando os “factos não provados”.
Em relação a estes últimos, fez-o, é verdade, sem os explicitar individualmente, como, certamente, seria desejável.
Porém, deixou claro qual a matéria que da audiência de julgamento resultou não provada, adequado não sendo considerar-se que incorreu no imputado vício.
Continuemos.
–– Sobre o vício de “erro notório” tem este T.S.I. consignado que:
“O erro notório na apreciação da prova apenas existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores”.
De facto, “É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 04.04.2018, Proc. n.° 912/2017, de 17.05.2018, Proc. n.° 236/2018 e de 19.07.2018, Proc. n.° 538/2018).
Como também já tivemos oportunidade de afirmar:
“Erro” é toda a ignorância ou falsa representação de uma realidade. Daí que já não seja “erro” aquele que possa traduzir-se numa “leitura possível, aceitável ou razoável, da prova produzida”.
Sempre que a convicção do Tribunal recorrido se mostre ser uma convicção razoavelmente possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve a mesma ser acolhida e respeitada pelo Tribunal de recurso.
O princípio da livre apreciação da prova, significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que pré-determinam ou hierarquizam o valor dos diversos meios de apreciação da prova, pressupondo o apelo às “regras de experiência” que funcionam como argumentos que ajudam a explicar o caso particular com base no que é “normal” acontecer.
No caso, sendo este o “sentido” e “alcance” do vício em questão, motivos não temos para censurar a decisão recorrida.
Vejamos.
Invoca o recorrente a natureza de “documento autêntico” da sua “certidão de casamento”, considerando-o elemento de prova excluído à livre apreciação do Tribunal.
Porém, se bem ajuizamos, e independentemente do demais, há equívoco.
Com efeito, e antes de mais, importa ter presente que em lado algum da sua decisão diz o Colectivo do T.J.B. que os (1° e 2ª) arguidos dos autos “não celebraram casamento”.
A comprovar tal realidade basta ler o que consta do “facto provado” referenciado no “ponto 3”, onde consta expressamente que os arguidos “contraíram casamento na cidade de Zhongshan em 31.07.2008”.
E, nesta conformidade, evidente é que não pôs, (minimamente), em causa nenhum “documento”, o pelo recorrente aludido, ou qualquer outro, pois que mesmo uma “certidão de casamento” apenas comprova a prática do “acto”, ou seja, a “celebração do casamento entre duas pessoas em determinada data e local”, não constituindo nenhum obstáculo quanto à prova da “motivação” e “objectivos” do mesmo (casamento), matéria esta, aliás, do “foro pessoal” (e subjectivo), não abrangida pelo aludido documento, e como tal, sujeita à livre apreciação do Tribunal, nenhum erro assim existindo na decisão da matéria de facto proferida.
–– Por fim, e em sede do alegado “erro na aplicação do direito”, diz o recorrente que errada é a sua condenação nos termos a que já se fez referência, sem que previamente tenha sido impugnada a “autenticidade da certidão do seu casamento”, com o necessário “cancelamento do respectivo registo”.
Pois bem, cremos que, uma vez mais, incorre o recorrente em equívoco.
Com efeito, analisados os autos, não se vislumbra nos mesmos qualquer “documento”, (“certidão”), como o referido pelo ora recorrente.
Existe sim, uma (mera) “fotocópia” da dita certidão, (cfr., fls. 58 a 59), que, como é óbvio, não constitui um “documento autêntico”, emitido por uma autoridade, oficial e local, sendo de referir ainda que também não foi aquele objecto de qualquer “revisão e confirmação” nos termos do art. 1199° do C.P.C.M..
Por sua vez, e no que toca ao alegado “registo”, a mesma se apresenta ser a situação, pois que, dos autos, (também) não consta que o alegado casamento tenha sido “objecto de registo” na competente conservatória da R.A.E. de Macau.
Porém, seja como for, independentemente do demais, importa ter presente que, tal como no aludido Parecer se refere, “No processo penal vigora o princípio da suficiência, sendo lícito ao tribunal resolver todas as questões que interessem à decisão da causa, sem necessidade de esperar pela resolução de qualquer questão noutro foro – artigo 7.° do Código de Processo Penal”.
Dest’arte, vista está a solução.
Com efeito, provado está que os arguidos, de forma livre, deliberada e na sequência de um plano, celebraram, em Zhongshan, um “casamento de conveniência” que não correspondia à sua real vontade, tão só para, desta forma, declarar posteriormente perante os Serviços de Identificação que estavam “casados” entre si, e assim, permitir que o (1°) arguido A, (ora recorrente), obtivesse autorização de residência e o B.I.R. da R.A.E.M., como efectivamente sucedeu.
Por sua vez, provado estando também que agiram sabendo que o casamento que celebraram era “fictício”, (cfr., facto n.° 4), e que agiram com “conhecimento da ilicitude da sua conduta”, (cfr., facto provado n.° 9), preenchidos estão todos os elementos típicos, objectivos e subjectivos, do crime pelo qual foram condenados.
Afigurando-se-nos que resolvidas ficaram todas as questões pelo recorrente colocadas, resta decidir.
Decisão
4. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam negar provimento ao recurso.
Pagará o arguido a taxa de justiça de 8 UCs.
Registe e notifique.
Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.
Macau, aos 24 de Janeiro de 2019
José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa
Proc. 892/2018 Pág. 16
Proc. 892/2018 Pág. 17