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ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório
A, Chefe de 1.ª do Corpo de Bombeiros, B, Comissário C, Subcomissário e D, Comissária, estes do Corpo de Polícia Segurança Pública, interpuseram recurso contencioso de anulação dos despachos do Secretário para a Segurança, de 7 de Dezembro de 2005, que negaram provimento a recursos hierárquicos interpostos de despachos do Director da Direcção dos Serviços das Forças de Segurança, no qual este decidiu que, para efeitos de atribuição do prémio de antiguidade, não conta o período de tempo do Curso de Formação de Oficiais.
Por acórdãos de 91 e 302 de Novembro de 2006, o Tribunal de Segunda Instância, (TSI) deu provimento aos recursos, anulando os actos administrativos, com o fundamento de que o Regulamento Administrativo n.º 9/2004, com base no qual foram praticados os actos recorridos, é ilegal.
Inconformado, interpõe o Secretário para a Segurança recurso jurisdicional para o Tribunal de Última Instância (TUI) formulando as seguintes conclusões:
1. O acórdão recorrido anula o despacho do Secretário para a Segurança que negou ao(s) recorrente(s) a pretensão de ver contado o período de formação no Curso de Formação de Oficiais da Escola Superior das Forças de Segurança de Macau para efeitos de atribuição de um prémio de antiguidade por cada cinco anos de serviço, e fá-lo por uma dupla ordem de razões.
a) lnsindicabilidade, do n.º 4 do artigo 101.º do EMFSM aprovado pelo DL n.º 66/94/M, de 30 de Dezembro em virtude de a norma ter sido introduzida pelo Regulamento Executivo n.º 9/2004, o que é entendido como ilegal por considerar que as alterações aos decretos-leis apenas podem ser produzidas por via legislativa e não por regulamento administrativo.
b) lrrevogabilidade, nos termos ao artigo 130.º, n.º 1 do CPA, de um direito constituido na esfera jurídica do(s) recorrente(s) há mais de um ano, e como tal já insusceptível de recurso contencioso (cujo prazo máximo coincide com o limite temporal para a revogação de actos anuláveis).
2. O acórdão recorrido reconhece todavia que, não obstante considerar tratar-se de acto irrevogável pelas razões expostas em l.b) supra, a interpretação do artigo 181.º do ETAPM que subjaz à decisão recorrida é a correcta, não devendo o tempo de formação na ESFSM contar para efeitos de atribuição do prémio de antiguidade.
3. A norma recusada aplicar, porém, não constitui fundamento da decisão impugnada, sendo que a sua invocação no respectivo texto, surge apenas para fazer lembrar ao(s) recorrente (s) a não extensão do seu regime ao tempo de serviço para atribuição do prémio de antiguidade.
4. Não constituindo fundamento da decisão impugnada, nem integrando o objecto do recurso contencioso nem o respectivo pedido, a apreciação ex-ofício da legalidade da norma é surpreendente para além de violadora dos princípios do contraditório (artigo 3.º do CPCivil), da congruência (artigo 42.º do CPAC) da estabilidade da instância (art.º 212.º do CPCivil) e do dispositivo (art.º 564.º, n.º 1 do CPCivil).
5. Ademais de surpreender a entidade recorrida [quiçá, também o(s) recorrente (s)], exorbitando do objecto do recurso e não tendo a norma recusada aplicar constituído fundamento do despacho impugnado, a decisão de que ora se recorre resulta extravagante em relação aos fins do recurso contencioso, o qual é essencialmente de anulação, violando-se assim o artigo 20.º do CPAC.
6. Como resulta, também, e em consequência, violado o princípio da adequação formal, a que se refere o art. 7.º do CPCivil, porquanto sendo despropositada a fiscalização concreta, a norma apenas poderia ser sindicada nos termos e forma prescritos no artigo 88.º do CPAC (processo de impugnação de normas).
7. Ademais, e sem que se prescinda, sempre se deverá concluir que a alteração introduzida pelo RA n.º 9/2004, ao artigo n.º 101.º do EMFSM, aprovado pelo Dec.lei n.º 66/94/M, de 30 de Dezembro, versa matéria de natureza puramente regulamentar, tem natureza interpretativa de uma norma que lhe antecede, contendo-se assim dentro dos limites da deslegalização a que opera o artigo 8.º da lei Básica, e inscrevendo-se no âmbito das competências do Chefe do Executivo que lhe confere o artigo 50.º n.º 5 da mesma lei, cujos preceitos aqui enunciados são violados.
8. Com efeito, ela não tange a reserva de lei da Assembleia Legislativa; não versa sobre qualquer direito fundamental, não altera o núcleo essencial do normativo pré-vigente nem do diploma em que se insere; bem como daquilo que para a relação controvertida se dispõe no regime geral vigente da administração pública; consta de regulamento administrativo e não de diploma de grau inferior, pelo que, em nosso entendimento e no de alguma reconhecida doutrina, o douto Acórdão recorrido se desaqua ao disposto no artigo 8.º, da Lei Básica violando-o em consequência.
9. Por outro lado, o Tribunal a quo qualificou de Acto Administrativo constitutivo de direitos uma mera operação material de execução burocrática cuja forma jamais preenche os requisitos da existência de um Acto Administrativo, erro de qualificação jurídica que afecta o douto Acórdão, pelo menos quanto a este seu segmento decisório, do vício de violação de lei, decorrente da afronta ao disposto artigos 110.º, 112.º e 113.º, n.º 1, alínea a), c), e), g) e h) do CPA.
10. E, ao prevalecer-se da existência de um pretenso acto administrativo, efectivamente inexistente na ordem jurídica, abre caminho para a violação do Decreto-Lei n.º 59/94/M, de 5 de Dezembro, designadamente o seu artigo 7.º, relativo à prescrição do dever de repor as quantias indevidamente abonadas pela administração pública.
11. Mas mesmo que se entenda que estamos perante operações de execução, constitutivas de direitos como parece defender a doutrina dominante, tal entendimento restringe-se única e simplesmente ao conteúdo material das mesmas. Isto é, ao direito de reter para si, não as devolvendo aos cofres da fazenda pública, quantias indevidamente recebidas há mais de um ano, prazo máximo para a impugnação contenciosa.
12. Tornar esse efeito, como faz o douto Acórdão recorrido, extensivo ao direito subjectivo de ver contado como tempo de serviço elegível para atribuição de um prémio de antiguidade, o período de formação na ESFSM, é decidir contra legem, em violação do art.º 181.º do ETAPM e, bem assim, a contrário, do disposto no 130.º, n.º 1 do CPA.
13. Violado resulta, no âmbito do mesmo regime jurídico, o princípio da igualdade plasmado no artigo 5.º, n.º l do CPA em face da posição de vantagem dos recorrentes relativamente a camaradas, cuja diferença estatutária seria apenas não terem beneficiado de um lapso burocrático.
14. Em síntese, o Acórdão recorrido violou os preceitos e princípios que se escrutinam nos seguintes normativos:
- Lei Básica: Artigos 8.º e 50.º n.º 5;
- Código do Proc Administrativo: Artigos 5.º, 110.º, 112.º, 113.º n.º 1, alíneas a) c) e) g) e h);
- Estatuto dos Trabalhadores da Adm Pública: Artigo 181.º n.º 1;
- Código do Procedimento Administrativo Contencioso: Artigos 20.º, 42.º e 88.º;
- Código de Processo Civil: Artigos 3.º, 7.º, 212.º e 564.º,n.º 1;
- Decreto-Lei n.º 59/94 de 5 de Dezembro.
A Ex. ma Procuradora-Adjunta emitiu parecer em que se pronuncia pelo provimento do recurso.

II - Os Factos
Uma vez que a decisão de facto fixada nos Acórdãos recorridos do TSI não foi impugnada nem há lugar a qualquer alteração da mesma, remete-se quanto aos factos relevantes, para aquela decisão, nos termos dos arts. 652.º e 631.º, n.º 6 do Código de Processo Civil, aplicável subsidiariamente, nos termos do art. 1.º do Código de Processo Administrativo Contencioso.
Transcreve-se dos mesmos Acórdãos recorridos apenas o acto administrativo que foi objecto do recurso contencioso e que é igual em todos os casos:
O Secretário para a Segurança proferiu em 7 de Dezembro de 2005 o seguinte despacho, indeferindo o recurso interposto pelo interessado do despacho proferido pelo Director Substituto da Direcção dos Serviços das Forças de Segurança de Macau quanto à da contagem do prémio de antiguidade:
“O recorrente, melhor identificado supra, o que aqui por brevidade se dá por inteiramente reproduzido, insurge-se por esta via de recurso hierárquico contra a decisão do director dos Serviços das Forças de Segurança de Macau através da qual não considera elegível para efeitos de percepção do prémio de antiguidade – artigo 180.º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau, aprovado pelo Dec.Lei n.º 87/89/M, de 21 de Dezembro – o período de frequência do Curso de Formação de Oficiais, na Escola Superior das Forças de Segurança de Macau.
Tal decisão prevalece-se dos fundamentos constantes de Informação-proposta n.º XXXX/XX/XXXX, formulada no Processo n.º XXX-XXXX da DSFSM, os quais subscrevo e faço integrar neste meu despacho. Na verdade, não pode considerar-se como extensivo ao direito de percepção do prémio de antiguidade, o direito conferido pela norma do n.º 4 do artigo 101.º do Estatuto dos Militarizados das Forças de Segurança de Macau – na redacção que lhe é dada pelo RA n.º 9/2004–, devendo a mesma conter-se nos limites estatuídos no seu n.º 5, ou seja limitada à relevância para efeitos de “calculo da pensão de aposentação .../”. Aliás, e em rigor, uma análise sistemática do regime aplicável firma-me a convicção de que a alteração introduzida pelo Regulamento Administrativo n.º 9/2004, tem natureza interpretativa, porquanto, mesmo à luz da anterior redacção do artigo 101.º, parece não subsistirem dúvidas quanto à relevância jurídica do período de formação na contagem de tempo de serviço para efeitos de aposentação.
Por outro lado, se é certo que a lei não é clara quanto à natureza da remuneração conferida no Curso de Formação de Oficiais, a verdade é que a mesma jamais pode ser considerada vencimento. Daí a necessidade de haver lei que, especialmente, a tal a equipare para efeitos da relevância jurídica pretendida.
Os desvios à norma-padrão, regulados por preceitos que especializam determinadas situações jurídicas em relação ao regime geral têm, obrigatoriamente, que constar especificadamente do texto da lei. Não cabe aqui, especialmente quando da mesma resultam encargos financeiros, ficcionar-se efeitos jurídicos, mesmo com recurso à integração de lacunas. “In casu” não estamos, aliás, perante uma lacuna, mas sim perante a vontade do legislador que não pretendeu levar tão longe a sua benevolência. Se o pretendesse teria à luz do preceituado no artigo 181.°, n.º 2 do citado ETAPM, determinado expressamente a extensão dos efeitos retroactivos da contagem do tempo de serviço à atribuição do prémio de antiguidade.
Esta norma faz coincidir o início da contagem do tempo de serviço para efeitos de atribuição do primeiro prémio de antiguidade com a data do ingresso na função pública, não fazendo qualquer sentido que uma antiguidade, funcional, por definição, retroagisse ao tempo da discência. Aliás, para perceber tal absurdo bastaria fazer uma reflexão sobre a eventualidade de, a vingar a tese reclamada, se contar como tempo de serviço relevante para a atribuição do prémio de antiguidade, a anuidade ou a unidades correspondentes a repetição lectiva, por falta de aproveitamento escolar.
E, este, é o entendimento extensivo a todos os formandos independentemente da data do ingresso no CFO, sendo que, a haver qualquer desigualdade de tratamento, a mesma não deixará de ser reparada no sentido do que aqui se pretende estabilizar.
Nestes termos, e nos do artigo 181°, n.º 2 do ETAPM, Nego Provimento ao presente recurso hierárquico, confirmando a decisão impugnada quanto ao determina que a contagem do tempo de serviço para efeitos de atribuição do prémio de antiguidade tenha início apenas no momento do ingresso (pela posse) na função pública”.

III – O Direito
1. As questões a apreciar
Os actos administrativos recorridos decidiram que, para efeitos de atribuição aos oficiais das Forças de Segurança do prémio de antiguidade a que se refere o art. 180.º, n.º 1 do Estatuto dos Trabalhadores da Função Pública de Macau (ETAPM) – segundo o qual “Os funcionários e agentes em efectividade de serviço, ou em situação legal que confira direito a auferir vencimento têm direito a um prémio de antiguidade, por cada 5 anos de serviço prestado, até ao limite de 7, no montante previsto na tabela 2” – não conta o tempo de frequência da Escola Superior das Forças de Segurança de Macau.
Os recorrente, oficiais das forças de segurança, no recurso contencioso, propugnam por interpretação diversa e pretendem a contagem de tal tempo de serviço, para os referidos efeitos.
O TSI, com fundamento em que o acto recorrido citou os n. os 4 e 5 do art. 101.º do Estatuto dos Militarizados das Forças de Segurança de Macau, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 66/94/M, de 30 de Dezembro, com alteração introduzida pelo Regulamento Administrativo n.º 9/2004, de 29 de Março e que um regulamento administrativo não pode alterar ou revogar decretos-leis, anulou os actos recorridos.
Não obstante, os Acórdãos recorridos entenderam que, mesmo na redacção original do EMFSM, os recorrentes dos recursos contenciosos não teriam direito à contagem do tempo de frequência da Escola Superior das Forças de Segurança de Macau. Mas, apesar disso, anularam os actos recorridos.
São estas as questões a resolver, bem como outras que o Secretário para a Segurança, ora recorrente, suscita como impeditivas das decisões tomadas pelo TSI (violação dos princípios do contraditório e da adequação formal e do art. 88.º do Código de Processo Administrativo Contencioso).

2. Violação do princípio do contraditório. Nulidade processual
Vejamos se os Acórdãos recorridos violaram o princípio do contraditório, por não ter sido facultada às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre a questão da possibilidade de regulamento alterar decreto-lei.
Efectivamente, os Acórdãos recorridos suscitaram oficiosamente a questão da possibilidade de regulamento alterar decreto-lei, que não foi arguida pelos recorrentes nos recursos, nem nunca foi discutida nos processos.
Concorda-se que, aparentemente, foi violado o disposto no n.º 3 do artigo 3.º do Código de Processo Civil, segundo o qual, o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
Simplesmente, a violação do disposto no n.º 3 do artigo 3.º do Código de Processo Civil terá consistido numa nulidade processual, a da omissão do convite às partes para se pronunciarem sobre a questão, omissão esta que influiu na decisão da causa (artigo 147.º, n.º 1 do Código de Processo Civil)3.
Ou seja, não foram os Acórdãos recorridos que praticaram a violação processual mencionada. Com a notificação dos Acórdãos recorridos as partes ficaram a saber que houve uma omissão de um acto processual, que ocorreu antes da prolação dos Acórdãos, que terá dado origem a uma nulidade processual, e deveriam tê-la suscitado no momento e pelo meio próprios, que é uma reclamação (artigo 148.º do Código de Processo Civil), para o relator do processo – e não por meio de recurso para um tribunal superior – nos termos previstos no n.º 1 do artigo 151.º do Código de Processo Civil. E, a ser procedente a nulidade processual, esta conduziria à anulação dos actos posteriores, nos termos do n.º 2 do artigo 147.º do Código de Processo Civil (o Acórdão recorrido e actos complementares) a fim de ter lugar o acto omitido e, após pronúncia das partes, ou decorrido o prazo para tal, seria, então, proferido novo Acórdão4, que poderia ser no mesmo sentido do anterior ou com outro conteúdo.
Em suma, há que distinguir a nulidade processual - que no caso terá consistido numa omissão de um acto processual e de que cabia reclamação para o relator do processo no TSI – do recurso jurisdicional para um tribunal superior - que tem por objecto um erro de julgamento, que não está em causa na questão em apreciação.
  Improcede, pois, a questão suscitada.

3. Recurso contencioso e impugnação de normas para declaração de ilegalidade com força obrigatória geral. O conhecimento incidental da ilegalidade dos regulamentos
Examinemos, agora, se os Acórdãos recorridos violaram o princípio da adequação formal – previsto no artigo 7.º do Código de Processo Civil - por não terem dado cumprimento ao disposto no artigo 88.º do Código de Processo Administrativo Contencioso (os artigos 88.º a 93.º deste diploma legal referem-se a um meio processual denominado impugnação de normas). Ou se foi violado o princípio dispositivo ou o princípio da estabilidade da instância, por se ter condenado em coisa diversa do pedido.
A invocação do artigo 88.º do Código de Processo Administrativo Contencioso e do artigo 36.º, alínea 9) da Lei de Bases da Organização Judiciária, bem como a chamada à colação do princípio da adequação formal – previsto no artigo 7.º do Código de Processo Civil - ou do princípio dispositivo e do princípio da estabilidade da instância, por, alegadamente, se ter condenado em coisa diversa do pedido, tem na sua base um equívoco de natureza processual.
Na verdade, o meio processual utilizado pelos recorrentes foi o recurso contencioso de anulação - e bem - já que pediram a anulação de um acto administrativo. É o que decorre do disposto no artigo 20.º do Código de Processo Administrativo Contencioso. Isto, porque é doutrina corrente que é o pedido deduzido pela parte que determina a forma de processo a utilizar.
O meio processual dos artigos 88.º e seguintes do Código de Processo Administrativo Contencioso é outra coisa: visa a declaração de ilegalidade, com força obrigatória geral, de norma regulamentar. Ou seja, tem por finalidade expurgar da Ordem Jurídica uma norma regulamentar ilegal.
Não foi isso que foi pedido nos autos, nem foi isso que os Acórdãos recorridos decidiram. Estes limitaram-se a anular um acto administrativo por ter na sua base normas regulamentares ilegais. Mas não declararam a ilegalidade, com força obrigatória geral, de norma regulamentar. Mesmo que a tese dos Acórdãos recorridos prevalecesse, o Regulamento Administrativo n.º 9/2004 continuaria a vigorar e poderia ser aplicado em outros casos pela Administração ou pelos tribunais. O julgado só obrigaria no caso concreto em apreciação.
O que os Acórdãos recorridos fizeram foi conhecer, a título incidental, da legalidade de um Regulamento que os acto administrativos aplicaram. Ora, “a título incidental qualquer tribunal poderá conhecer da legalidade dos regulamentos”5. Mas esta questão nunca foi controvertida. Veja-se, por exemplo, a lição de MARCELLO CAETANO6: “não é possível o recurso directo das disposições regulamentares, que constem de decreto7, mas pode-se recorrer do acto administrativo que as aplique, com fundamento em violação de lei resultante da contradição entre o regulamento e a lei a que deve obedecer”.
E o conhecimento incidental da ilegalidade de um regulamento, oficiosamente, pelo juiz, no recurso contencioso de acto administrativo, também nunca suscitou dúvidas, com fundamento no princípio da hierarquia das normas. F. ALVES CORREIA8 explica, seguindo a lição de AFONSO QUEIRÓ9, que o princípio da hierarquia das normas conduz não apenas à recusa de aplicação pelo tribunal – independentemente de ser ou não requerida - de uma norma regulamentar que contrarie a lei, mas também a desaplicação no caso sub judicio de uma norma regulamentar que viole outra norma regulamentar hierarquicamente superior.
Logo daqui se vê que não é de aceitar a invocação de violações dos princípios da adequação formal, dispositivo ou da estabilidade da instância.
Improcedem as questões suscitadas.

4. Violação do princípio dispositivo e do princípio da estabilidade da instância no que se refere à parte do Acórdão recorrido em que considerou que o acto administrativo não podia ter alterado as datas do recebimento do prémio de antiguidade
Já tem razão o Secretário para a Segurança em invocar violação do princípio dispositivo e do princípio da estabilidade da instância no que se refere à parte dos Acórdãos recorridos (3. Fundamentação legal da decisão, 3.) em que consideraram que o acto administrativo não podia ter alterado as datas do recebimento do prémio de antiguidade, porque a ilegalidade já estaria sanada por ter passado o prazo do recurso contencioso, havendo assim violação do disposto no art. 130.º do Código do Procedimento Administrativo.
Ora, quanto a este hipotético vício do acto, o Tribunal não podia dele ter conhecido oficiosamente – porque gerador apenas de anulabilidade e não de nulidade (arts. 122.º, 123.º, n.º 1, 124.º e 130.º do Código do Procedimento Administrativo) – sendo certo que os interessados não o suscitaram oportunamente.
Declara-se, pois, nesta parte, a nulidade dos Acórdãos recorridos, por excesso de pronúncia [arts. 571.º, n.º 1, alínea d), parte final, e 563.º, n.º 3 do Código de Processo Civil].

5. Decreto-Lei. Regulamento Administrativo. Alteração e revogação de decreto-lei por regulamento administrativo.
Entremos, agora, na apreciação do mérito da causa.
Os actos administrativos recorridos decidiram que, para efeitos de atribuição aos oficiais das Forças de Segurança, do prémio de antiguidade a que se refere o art. 180.º, n.º 1 do ETAPM, não conta o tempo de frequência da Escola Superior das Forças de Segurança de Macau.
Os recorrentes, oficiais das forças de segurança, no recurso contencioso, propugnaram por interpretação diversa e pretendem a contagem de tal tempo de serviço, para os referidos efeitos.
O TSI, com fundamento em que o acto recorrido citou os n. os 4 e 5 do art. 101.º do Estatuto dos Militarizados das Forças de Segurança de Macau, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 66/94/M, de 30 de Dezembro, com alteração introduzida pelo Regulamento Administrativo n.º 9/2004, de 29 de Março e que um regulamento administrativo não pode alterar ou revogar decretos-leis, anulou os actos recorridos.
Não obstante, os Acórdãos recorridos entenderam que, mesmo na redacção original do Estatuto dos Militarizados das Forças de Segurança de Macau, os recorrentes dos recursos contenciosos não teriam direito à contagem do tempo de frequência da Escola Superior das Forças de Segurança de Macau. Mas, apesar disso, anulou os actos recorridos.
Na verdade, o Estatuto dos Militarizados das Forças de Segurança de Macau foi aprovado pelo Decreto-Lei n.º 66/94/M.
Entretanto, o Regulamento Administrativo n.º 9/2004 alterou vários artigos deste Estatuto, entre eles o art. 101.º. Relativamente a este artigo aditou uma nova norma, o n.º 4 e o anterior n.º 4 passou a ser o n.º 5.
Mas, de acordo com os Acórdãos recorridos, o artigo do Estatuto dos Militarizados das Forças de Segurança de Macau (art. 101.º) alterado pelo Regulamento Administrativo n.º 9/2004, é estranho ao problema em discussão.
E efectivamente é assim. O n.º 2 do art. 101.º deste Estatuto na redacção original - e que se mantém - estatui que se conta como tempo de serviço o da frequência da Escola Superior das Forças de Segurança de Macau. O novo n.º 4, aditado pelo Regulamento Administrativo n.º 9/2004 limitou-se a dizer que, para efeitos do n.º 2, se conta o tempo de frequência da Escola Superior das Forças de Segurança anterior à entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 66/94/M, que aprovou o Estatuto.
Mas esta questão (do tempo de frequência da Escola Superior das Forças de Segurança anterior à entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 66/94/M) não está nem nunca esteve em discussão nos casos dos autos.
A norma pertinente para a decisão foi antes a do art. 181.º, n.º 2 do ETAPM, segundo o qual a contagem do tempo de serviço para efeitos de prémio de antiguidade é feita a partir do ingresso na função pública, conjugada com o n.º 1 do art. 79.º do Estatuto dos Militarizados das Forças de Segurança de Macau – norma não alterada pelo Regulamento Administrativo n.º 9/2004 – que determina que o ingresso nos quadros das carreiras superiores das Forças de Segurança – e portanto, na função pública - se faz nos postos de subcomissário ou chefe assistente, após a conclusão dos cursos de formação.
Ou seja, a alteração do Estatuto dos Militarizados das Forças de Segurança de Macau (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 66/94/M) executada pelo Regulamento Administrativo n.º 9/2004, foi completamente irrelevante para a decisão das questões que foram suscitadas nos recursos contenciosos pelos interessados.
Por isso, os próprios Acórdãos recorridos consideraram que mesmo à face da redacção original do Estatuto dos Militarizados das Forças de Segurança de Macau (Decreto-Lei n.º 66/94/M) os requerimentos dos interessados teriam de ser - como foram – indeferidos pela Administração.
Suscita, assim, as maiores perplexidades o fundamento para os Acórdãos recorridos terem anulado os actos recorridos (a impossibilidade de um regulamento administrativo poder alterar, suspender ou revogar normas aprovadas por decreto-lei), dado que as normas pertinentes do Decreto-Lei em causa, para a decisão administrativa, não foram objecto de qualquer alteração pelo Regulamento Administrativo n.º 9/2004, o que os Acórdãos recorridos reconhecem.
Nem se diga que os actos administrativos recorridos fizeram referência ao Regulamento Administrativo, já que tais actos referem que a alteração ao art. 101.º do Estatuto dos Militarizados tem natureza interpretativa, sendo que não modificou o direito da redacção original, aliás ambas irrelevantes para a decisão do caso.

6. Poderes vinculados e poderes discricionários. Princípio do aproveitamento dos actos administrativos proferidos no uso de poderes vinculados
Mas há outra razão, ligada à anterior, que imporia decisão diversa por parte do TSI.
Indiscutivelmente a concessão de prémios de antiguidade aos funcionários públicos insere-se no exercício de poderes vinculados que são aqueles em que a Administração não tem margem de decisão: tem que se limitar a aplicar a lei, sem qualquer poder discricionário na escolha de uma entre várias decisões possíveis.
É clássica a explicação que MARCELLO CAETANO10 dá para distinguir os poderes vinculados e discricionários dos órgão administrativos: “umas vezes a lei ou os estatutos regulam as circunstâncias em que o órgão deve exercer o poder que lhe está confiado, impondo-lhe que actue sempre que concorram essas circunstâncias, e determinam o modo de actuar e o conteúdo do acto.
Outras vezes a norma deixa ao órgão certa liberdade de apreciação acerca da conveniência e da oportunidade de exercer o poder, e até sobre o modo desse exercício e o conteúdo do acto, permitindo-lhe que escolha uma das várias atitudes ou soluções que os termos da lei admitam”.
No primeiro caso trata-se de poder vinculado. No segundo, o poder é discricionário.
Ora, tendo os Acórdãos recorridos entendido que, na redacção original do Estatuto dos Militarizados das Forças de Segurança de Macau – aquela que na sua perspectiva era relevante - os interessados não tinham o direito que se arrogavam, então, por força do princípio do aproveitamento dos actos administrativos proferidos no uso de poderes vinculados – segundo o qual não se deve invalidar o acto administrativo, apesar do vício de violação de lei constatado, se o sentido da decisão do acto for aquele que o bom direito imporia - teria de ter negado provimento aos recursos contenciosos, ainda que os actos administrativos tivessem aplicado mal a lei ou tivessem invocado normas legais ou regulamentares inaplicáveis, o que nem foi o caso.11

7. Prémio de antiguidade
Quanto ao fundo da causa não assiste razão aos recorrentes dos recursos contenciosos.
De acordo com o art. 181.º, n.º 2 do ETAPM, a contagem do tempo de serviço para efeitos de prémio de antiguidade é feita a partir do ingresso na função pública.
Nos termos do n.º 1 do art. 79.º do Estatuto dos Militarizados das Forças de Segurança de Macau, o ingresso nos quadros das carreiras superiores das Forças de Segurança – e portanto, na função pública – faz-se nos postos de subcomissário ou chefe assistente, após a conclusão dos cursos de formação.
Logo, os mencionados recorrentes dos recursos contenciosos, Oficiais das Forças de Segurança, só têm direito ao prémio de antiguidade a partir da sua nomeação como subcomissários ou chefes assistentes, após a conclusão dos cursos de formação.
Assim tendo decidido, não merecem censura os actos administrativos impugnados.
Impõe-se, portanto, a revogação dos Acórdãos recorridos.

IV - Decisão
Face ao expendido:
A) Declaram nulos os Acórdãos recorridos na parte em que consideraram que os actos administrativos não podiam ter alterado as datas do recebimento do prémio de antiguidade (3. Fundamentação legal da decisão, 3.);
B) Revogam na parte restante os Acórdãos recorridos;
C) Em consequência, negam provimento aos recursos contenciosos.
Custas individuais pelos recorrentes dos recursos contenciosos nas duas instâncias, sendo a taxa de justiça fixada em 6 UC para o recurso contencioso e em 4 UC para o recurso jurisdicional. Procuradoria: 1/4 da taxa de justiça.

Macau, 30 de Abril de 2008.

   Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) - Sam Hou Fai - Chu Kin

A Magistrada do Ministério Público
presente na conferência: Song Man Lei

1 Quanto a A, C, e D.
2 Quanto a B
.
3 A. ANSELMO DE CASTRO, Direito Processual Civil Declaratório, Coimbra, Almedina, 1981, Vol. III, p. 109 e M. TEIXEIRA DE SOUSA, Introdução ao Processo Civil, Lisboa, Lex, 2000, 2.ª ed., p. 54 e 55.
4 Exactamente neste sentido, cfr. J. LEBRE DE FREITAS, A. MONTALVÃO MACHADO e RUI PINTO, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, Coimbra, Coimbra Editora, 2001, p. 664 e 665 e J. LEBRE DE FREITAS, JOÃO REDINHA E RUI PINTO, Código de Processo Civil Anotado, Volume 1.º, Coimbra, Coimbra Editora, 1999, p. 351. Cfr., também, VIRIATO LIMA, Manual de Direito Processual Civil, Macau, Centro de Formação Jurídica e Judiciária, 2005, p. 386 a 389.
5 SANTOS BOTELHO, Contencioso Administrativo, Coimbra, Almedina, 2.ª ed., 1999, p.322.
6 MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, Coimbra, Almedina, 9.ª ed., Tomo II, p. 1350.
7 Era esse o regime legal ao tempo.
8 F. ALVES CORREIA, A impugnação jurisdicional de normas administrativas, Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 16, p. 18.
9 AFONSO QUEIRÓ, Teoria dos regulamentos, in Revista de Direito e Estudos Sociais, Janeiro-Março de 1986, Ano I (2.ª Série), n.º 1, p. 30.
10 MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, Coimbra, Livraria Almedina, 10.ª ed. I vol., 1980, p. 214.
11 Cfr., sobre o princípio do aproveitamento dos actos administrativos, os Acórdãos deste TUI de 17 de Dezembro de 2003, no Processo n.º 29/2003 e de 10 de Maio de 2006, no Processo n.º 7/2006.
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23
Processos n. os 10, 13, 14 e 16/2007