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Processo nº 1038/2018 Data: 31.01.2019
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Declarações para memória futura.
Leitura.



SUMÁRIO

1. A falta de intervenção do arguido em sede de “declarações para memória futura” por, no momento, não estar identificado (e constituído arguido), não impede que, em audiência de julgamento, se proceda à sua leitura, visto que as ditas declarações não integram “prova plena”, à qual está o Tribunal vinculado a decidir em conformidade, constituindo, antes, um elemento probatório sujeito à sua livre apreciação nos termos do art. 114° do C.P.P.M., certo sendo também que em relação ao seu teor pode o arguido defender-se como bem entender em sede da audiência em que aquelas forem lidas.

2. Assim, nada impede que se proceda à leitura de umas “declarações para memória futura” pelo ofendido dos autos nesta qualidade prestadas noutro processo sobre a “mesma matéria e crime”, ainda que o arguido não tenha tido intervenção porque, no momento, ainda não identificado, e cuja certidão – regulamente extraída – se encontra junta ao processo.

O relator,

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José Maria Dias Azedo


Processo nº 1038/2018
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Por sentença do T.J.B. de 27.07.2018 decidiu-se absolver A, arguido com os sinais dos autos, da imputada prática como co-autor material de 1 crime de “usura para jogo”, p. e p. pelo art. 13° da Lei n.° 8/96/M e art. 219°, n.° 1 do C.P.M.; (cfr., fls. 261 a 264-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Do assim decidido, recorreu o Ministério Público.

No âmbito deste seu recurso, impugna uma “decisão datada de 18.07.2018”, pelo Tribunal proferida em audiência de julgamento e que indeferiu a leitura de umas declarações para memória futura pelo ofendido dos autos prestadas em sede de um outro processo, assacando à “decisão final”, o vício de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”, “erro notório na apreciação da prova” e “erro na aplicação do directo”; (cfr., fls. 272 a 274-v).

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Respondendo, diz o arguido que o recurso não merece provimento; (cfr., fls. 277 a 284-v).

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Neste T.S.I., e em sede de vista, juntou o Exmo. Representante do Ministério Público o seguinte douto Parecer:

“O Ministério Público interpôs recurso do despacho de 18 de Julho de 2018, exarado em acta de audiência de julgamento no processo CR5-18-0114-PCS, e da sentença que se seguiu, de 27 de Julho de 2018.
Quanto ao despacho, questiona-se a recusa de leitura em audiência do depoimento para memória futura prestado pelo ofendido, recusa que o recurso considera baseada em errada interpretação dos normativos aplicáveis; relativamente à sentença, aduz-se que, por via daquela recusa de leitura, acabou por incorrer em insuficiência da matéria de facto para a decisão e em erro notório na apreciação da prova.
Na sua minuta de resposta, o arguido defende a bondade das decisões recorridas.
Vejamos, começando pelo despacho de 18 de Julho de 2018 ditado em audiência.
Está em causa o seguinte:
No final da sua acusação, em que imputou ao arguido A a co-autoria de um crime de usura para jogo, em que fora ofendido B, o Ministério Público requereu a leitura, em audiência de julgamento, do depoimento do referido B, prestado para memória futura perante o Juiz de Instrução Criminal, tendo, na própria audiência, o representante do Ministério Público reiterado idêntico pedido.
O Mm.° juiz indeferiu a requerida leitura pelos fundamentos exarados em acta, que, em suma, apontam a impossibilidade da leitura pela circunstância de o depoimento haver sido prestado no âmbito de um outro processo, o CR4-16-0402-PCC, e não como testemunha na presente causa, o que impedia o seu enquadramento na hipótese do artigo 337.°, n.° 2, alínea a), do Código de Processo Penal.
Na sua motivação de recurso, o Ministério Público contrapõe que há íntima conexão entre os dois processos, tratando-se do mesmo caso, apenas não tendo o arguido A sido acusado no processo CR4-16-0402-PCC porque só mais tarde veio a ser identificado.
Quid juris?
É verdade que o depoimento para memória futura não foi efectuado como diligência própria e original do presente processo. Mas, na verdade, consta dele, por via de certidão, cuja extracção e junção foram ordenadas pelas autoridades judiciárias competentes, nenhuma irregularidade tendo sido apontada a essas extracção e junção. E é também exacto que a substância dos dois processos é a mesma. A investigação levada a cabo no Inquérito 1650/2017, que deu origem ao presente processo em recurso, deve-se ao facto de o ora arguido A não haver sido identificado durante a primitiva investigação do caso, levada a cabo no Inquérito 3424/2016, que deu origem ao processo CR4-16-0402- PCC.
Pois bem, a jurisprudência tem entendido que é possível realizar validamente uma diligência de declarações/depoimento para memória futura, mesmo que ainda não haja arguido constituído. Ponto é que estejam verificados os pressupostos do artigo 253.°, n.° 1, do Código de Processo Penal. E salienta também que a lei não restringe a leitura das declarações para memória futura àquelas em que o arguido esteve presente ou lhe foi dada a oportunidade de estar presente. E mais, assevera que, nesta hipótese, sempre o arguido tem assegurado o contraditório em audiência de julgamento, com a vantagem de poder previamente conhecer o teor das declarações prestadas para memória futura – cf., v.g., acórdãos de 27/09/2012, Processo 657/2012, e de 11/12/2014, Processo 462/2014, ambos do Tribunal de Segunda Instância. Também o Tribunal de Última Instância aponta para idêntica solução, nomeadamente no acórdão de 22 de Julho de 2011, Processo 29/2011, onde se pode ler que a tomada de declarações para memória futura, quando ainda não há arguido constituído, não prejudica o seu direito de defesa, pois tal prova não tem valor absoluto e o futuro arguido pode sempre apresentar contra-prova em sua defesa.
A situação que se nos depara no presente recurso é substancialmente igual àquelas que foram apreciadas nos acórdãos citados, pois, aquando do depoimento para memória futura prestado por B no Inquérito 3424/2016, reproduzido na certidão de fls.131 e seguintes, e relativos à matéria agora imputada ao arguido A, ainda este não era arguido, não havia sido constituído arguido, o que se devia à circunstância de não ter sido identificado até à tomada das declarações. Não podia, pois, ser notificado para assistir, querendo, à diligência, diligência que se realizou na estrita observância do artigo 253.° do Código de Processo Penal, e para a qual foi convocado o arguido então conhecido, C.
Cremos, pois, que estavam reunidos os requisitos para que o depoimento de B, constante de fls. 131 e seguintes, pudesse ser lido em audiência, sujeito ao contraditório e valorado, a final, pelo tribunal adentro da sua liberdade de apreciação probatória.
Ao recusar a requerida leitura, o despacho recorrido incorreu em erro de interpretação dos aludidos normativos dos artigos 337.°, n.° 2, alínea a), e 253.° do Código de Processo Penal.
Daí que, no provimento do recurso na parte relativa ao impugnado despacho, deva mandar-se proceder à indeferida leitura de depoimento para memória futura, aulando-se o processado posterior ao referido despacho, com o que fica prejudicado o conhecimento da parte recursiva relativa à sentença”; (cfr., fls. 356 a 358).

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Sendo (igualmente) tempestivo o recurso relativamente à “decisão de 18.07.2018”, e nada parecendo obstar o seu conhecimento, passa-se a decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Estão “provados” e “não provados” os factos como tal elencados na sentença recorrida a fls. 262 a 262-v, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.

Do direito

3. Como se deixou relatado, o presente recurso pelo Ministério Público trazido a este T.S.I. tem como objecto (a) um “despacho datado de 18.07.2018, pelo Tribunal a quo proferido em audiência de julgamento” e (b) a “sentença” a final prolatada.

E, da reflexão que sobre as questões colocadas nos foi possível efectuar, cremos que ao Exmo. Recorrente assiste razão no que toca ao seu inconformismo em relação à decisão do Tribunal a quo de 18.07.2018, o que acaba por implicar a inutilização do posteriormente processado, prejudicado ficando igualmente o recurso da decisão final.

Nesta conformidade, vejamos.

–– Do recurso da “decisão de 18.07.2018”.

Com esta decisão indeferiu-se a leitura de umas declarações para memória futura pelo ofendido prestadas, por as mesmas não terem sido prestadas no âmbito dos presentes autos.

E, ainda que à primeira vista, atenta a dita “circunstância”, a situação possa parecer (algo) “estranha”, (cremos que) não reveste grande complexidade.

Pois bem, antes de mais, importa ter em conta que as ditas “declarações”, para além de terem sido pelo ofendido dos autos prestadas em conformidade com o estatuído no art. 253° do C.P.P.M., dizem respeito à mesma matéria (e crime) dos presentes autos.

É verdade, foram prestadas no âmbito de outro processo que tinha outro arguido, dado que, na altura, identificado ainda não estava o arguido dos presentes autos.

E, a ser assim, certo sendo que as ditas declarações constam de certidão regularmente extraída do processo onde foram prestadas (especificamente) para ser (junta e) oportunamente “utilizada” nestes autos, motivos não vislumbramos para a decisão que indeferiu a sua leitura.

É sabido que “cada processo é um processo”, mantendo-se entre eles a sua “autonomia”, a não ser que haja uma “junção”, “apensação” ou “incorporação” processual.

Porém, e embora em termos formais assim não tenha sucedido nos presentes autos, há que referir que nos confrontamos com uma situação, no mínimo, muito próxima, (ou até, materialmente idêntica).

Com efeito, as declarações agora em questão foram prestadas no âmbito de um “processo” que tinha como matéria o “mesmo crime” dos presentes autos e em que o ora arguido (aí) não figurava como tal porque ainda não tinha sido identificado.

Sendo que esta identificação apenas veio a ocorrer posteriormente, em momento que o referido processo já não podia incluí-lo como arguido, deu-se início aos presentes autos, para este remetendo-se a referida certidão da qual constam as declarações em causa.

E, nesta conformidade, e como dissemos, estamos numa situação muito próxima duma “incorporação processual”.

Dir-se-à que como o arguido dos autos não figurava no processo onde as declarações foram prestadas, não pode intervir, exercendo o contraditório e o seu direito de defesa.

É verdade.

Porém, se nem sequer figurava no processo, como pretender-se que, no mesmo, tivesse (qualquer) intervenção?

Aliás, a situação aqui em questão apresenta-se-nos (quase) idêntica à que foi apreciada no âmbito do Ac. deste T.S.I. de 28.04.2011, Proc. n.° 415/2010, cuja decisão foi confirmada pelo Ac. do Vdo T.U.I. de 22.07.2011, Proc. n.° 29/2011, pois que aí também se questionava da validade de umas declarações para memória futura prestadas noutro processo que foram – aqui sim, formalmente – incorporadas nos autos onde se veio a efectuar a sua leitura.

E, como aí se consignou, prejudicado não estava o direito de defesa de ninguém que na altura ainda não figurava no processo como arguido, até porque as ditas declarações não constituem “prova plena”, à qual está o Tribunal vinculado a decidir em conformidade, constituindo, antes, um elemento probatório livremente apreciado nos termos do art. 114° do C.P.P.M., certo sendo também que em relação ao seu teor pode o arguido defender-se como bem entender em sede da audiência em que aquelas forem lidas.

Dest’arte, e crendo nós que clara se apresenta a solução a adoptar, impõe-se a revogação do decidido indeferimento que, como se referiu, implica a inutilização do posteriormente processado, prejudicado ficando o conhecimento do recurso pelo Ministério Público interposto da sentença.

Decisão

4. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam conceder provimento ao recurso interposto do despacho de 18.07.2018, prejudicado finado o recurso interposto da sentença.

Custas pelo arguido com a taxa de justiça de 5 UCs.

Registe e notifique.

Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.

Macau, aos 31 de Janeiro de 2019
José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa
Proc. 1038/2018 Pág. 14

Proc. 1038/2018 Pág. 15